Questão de Direito

A cisão societária e a impossibilidade de responsabilização, por inadimplemento, entre cindida e cindenda

A cisão societária e a impossibilidade de responsabilização, por inadimplemento, entre cindida e cindenda.

16/2/2021

Em março de 2020, a 3ª Turma do STJ julgou dois recursos especiais que traziam importante provocação: a possibilidade de empresas cindendas pleitearem a responsabilização da empresa cindida, por suposto inadimplemento de obrigação originada da cisão. O primeiro, nº 1.829.083/SP, relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva; e o segundo, nº 1.839.673/SP, relatado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino. 

Ambos foram extraídos de ações indenizatórias propostas por empresas constituídas a partir de uma cisão societária parcial, ocorrida há muitos anos. Na época, parte dos sócios que compunham a sociedade original decidiram dela se desligar, constituindo novas empresas a partir da versão de parte dos ativos da cindida.

Entre os ativos vertidos, o principal consubstanciava-se em terreno litorâneo que, embora contasse com expectativa bastante promissora de vir a se tornar um loteamento de luxo, detinha desafios registrais. Basicamente, tratava-se de área bruta, anotada em transcrições imobiliárias, porém pendente de abertura de matrícula junto ao Registro de Imóveis.

Cerca de duas décadas após essa cisão societária parcial, as empresas cindendas acionaram judicialmente a cindida, sustentando que, em função das pendências registrais do terreno, não teria sido possível levar a efeito o registro de propriedade perante o cartório competente. Invocando a regra prevista no art. 1.245 do Código Civil, sustentaram fazer jus ao recebimento de indenização, equivalente ao valor de mercado do imóvel vertido na cisão, bem como ao pagamento de lucros cessantes.

Depois de tramitar por cerca de 11 anos perante a Justiça Estadual de São Paulo, a questão ascendeu ao Superior Tribunal de Justiça, em 2019.

Por ocasião do julgamento dos recursos especiais já citados, a 3ª Turma concluiu que, na cisão societária, "não há espaço para falar em eventual responsabilidade da sociedade cindida por vícios redibitórios, evicção ou suposta falha da documentação de titularidade dominial dos bens vertidos à sociedade cindenda, pois não se trata de alienação de bens".

Do voto prolatado, extrai-se que principal fundamento a alicerçar esse entendimento é o de que a cisão societária qualifica-se como ato jurídico sem onerosidade, que tem natureza de fragmentação patrimonial1-2. Trata-se de mera transposição de bens, em que a sociedade receptora sucede a cindida, em seus direitos e obrigações relativos ao patrimônio cindido. Não se trata, a cisão, de operação equiparável a contratos em que as condições do bem são asseguradas.

Se assim é, ou seja, estando-se em face de operação que não envolve contraprestações (mas somente realocação de patrimônio entre as empresas cindida e receptora), não é admissível invocar-se o inadimplemento decorrente da cisão. Muito menos, de inadimplemento caracterizável pela dificuldade de transferência, perante o Registro de Imóveis, do imóvel vertido. 

Como se extrai do art. 229, parágrafo 1º, da Lei das S/As, quando o ativo é vertido de uma empresa para outra, isso ocorre nas exatas condições em que era detido3-4. Se, enquanto integrou o patrimônio da cindida, o imóvel vertido apresentava pendências de regularização registral, a cindenda o recebeu nas mesas condições, sucedendo as obrigações e direitos a ele inerentes.

Na operação que originou os Recursos Especiais referidos, a Corte concluiu que as empresas cindendas sucederam a cindida inclusive no ônus da regularização registral, não sendo admissível o pleito de indenização por inadimplemento da cisão. O voto prolatado pelo Relator no RESP n. 1.829.083 ainda destacou que "os acionistas da sociedade cindenda não podem ser considerados terceiros nessa operação porque já era, anteriormente à cisão, titulares indiretos dos bens vertidos, não podendo alegar desconhecimento quanto à situação dos referidos bens".

E é a partir dessa comparação que também ficam claras as razões pelas quais o parágrafo 1º do art. 1.245 do CCB (do qual se extrai que a transferência da propriedade imobiliária se consuma com o registro de imóveis) não ajuda a solucionar a discussão que foi proposta pelas cindendas. Com efeito, o ato de cisão representa o ato de transferência, como o são os documentos particulares para bens móveis e direitos e a escritura pública para os bens imóveis. É isso o que se extrai do art. 234 da Lei das S/As.5

A partir disso, a Corte Superior afastou pleito ressarcitório, concluindo que as sociedades receptoras não tiveram qualquer prejuízo. Por meio de seus sócios, permaneceram titulares de imóvel com pendências de registro: primeiro, quando integrava o patrimônio na cindida e depois, com a dissidência dos sócios, quando o imóvel passou a integrar o patrimônio das cindendas.               

A tese de inadimplemento de cisão, portanto, é algo completamente contrário à natureza do instituto – que se constitui negócio jurídico desassociativo, sempre implicando fracionamento patrimonial não oneroso.

*Daniela Peretti D'Ávila é mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Advogada e sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

__________

1 Modesto Carvalhosa, em parecer jurídico apresentado nos autos dos referidos Recursos Especiais, esclareceu que a natureza não onerosa da cisão decorre do fato de que "a sociedade cindida nada receberá em compensação pela transferência de parte de seu patrimônio, cabendo aos seus acionistas (e não a ela) a subscrição de ações da sociedade cindenda. Caso se atribuísse uma contrapartida à sociedade cindida não ficaria configurada a cisão, mas sim a alienação de ativos ou a conferência de bens ou direitos em aumento de capital."

2 A esse respeito, em oportunidades anteriores, a Corte já havia registrado que a CISÃO "é forma sem onerosidade de sucessão entre pessoas jurídicas, em que o patrimônio da sucedida ou cindida é vertido, total ou parcialmente, para uma ou mais sucessoras, sem contraprestação destas para aquela." REsp 553.042/SE, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 25/11/2003, DJ 14/06/2004, p. 234.

3 Art. 229. A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão.

§ 1º Sem prejuízo do disposto no artigo 233, a sociedade que absorver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato da cisão; no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida sucederão a esta, na proporção dos patrimônios líquidos transferidos, nos direitos e obrigações não relacionados.

4 Ao comentar esse dispositivo, Modesto Carvalhosa registra: "O negócio de cisão acarreta a sucessão ope legis, a título universal, da parcela do patrimônio social transferido para o capital de nova sociedade ou de sociedade já existente. Assim, todos os direitos, obrigações e responsabilidade inerentes a essa mesma parcela do patrimônio transferido são assumidos pelas sociedades beneficiárias, novas ou existentes." Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, 4º Volume. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 303.

5 Lei das S/As: “"Art. 234. A certidão, passada pelo registro do comércio, da incorporação, fusão ou cisão, é documento hábil para a averbação, nos registros públicos competentes, da sucessão, decorrente da operação, em bens, direitos e obrigações."

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Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.