Questão de Direito

Concorrência desleal no ambiente digital – Atualidades sobre provas

Concorrência desleal no ambiente digital – Atualidades sobre provas.

15/1/2021

No segundo semestre de 2020, residentes de vários Estados brasileiros, relataram o recebimento, pelo correio, de pacotes com sementes vindas da China, sem qualquer solicitação1.

O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos concluiu que as encomendas podem estar relacionadas a uma fraude conhecida como "brushing", que funciona da seguinte maneira: um vendedor toma posse, indevidamente, de dados pessoais na internet e os utiliza para criar uma conta falsa em algum site de e-commerce, em nome da vítima. Em seguida, efetua a compra de um determinado produto de sua loja virtual e despacha a "encomenda". Quando a "mercadoria" (no caso as sementes) chega na residência do "cliente", o vendedor deixa um comentário positivo no site. E quanto mais avaliações positivas, melhor o ranking dessa loja virtual no site de e-commerce.

Esse golpe configura concorrência desleal, pois há utilização de método desonesto para desvio de clientela alheia (art.195, III, lei 9.279/96). Como ocorre nos ilícitos dessa natureza, o ato fraudulento não se revela facilmente, o que dificulta a sua comprovação. No caso narrado haveria a necessidade de uma prova emprestada e transnacional.

Em recente julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), foi reconhecida a existência de concorrência desleal porque a ré adquiriu um termo de busca no google, que consistia justamente na marca de sua concorrente. Assim que o consumidor fazia a busca na ferramenta do google, pela marca da concorrente era direcionado a um link de uma loja virtual da ré. O ato ilícito foi comprovado por meio de: i-) atas notariais (art.384, parágrafo único, CPC), que demonstraram o passo a passo até o direcionamento ao site da ré; ii-) a resposta da empresa Google ao ofício enviado pelo Juízo, em que foi informado que, de fato, a ré fez a aquisição do termo de busca que consistia na marca da autora, assim como o número de vezes em que ocorreu a busca por meio daquele termo e o direcionamento ao site da ré2.

A dificuldade de comprovação da versão dos fatos em um processo é diretamente proporcional à complexidade desses fatos e, também, da prova a ser produzida. Essas duas circunstâncias (elementos fáticos complexos e produção de provas complexa) estão presentes, na maior parte dos casos envolvendo concorrência desleal.

Disso decorre a necessidade de se apurar, a dinâmica dos fatos, quem os praticou, onde foram praticados e o proveito econômico obtido por meio do ilícito, antes do ajuizamento de ação buscando a abstenção da prática de concorrência desleal e compensação por danos (materiais ou morais), ou repressão ao ato ilícito (lucro de intervenção).

A parte pode lançar mão de investigações particulares. Porém, é necessário fazer a ressalva de que sem o crivo do contraditório essa prova poderá ser impugnada na esfera judicial. Oportuno mencionar, ainda, que a ata notarial, meio de desjudicializar a prova, tem sido amplamente utilizada. Para coleta de depoimentos, vistorias, comprovação de fatos, certificação de conteúdo de sites, como autorizado pelos arts. 384 e 405, CPC. Essas provas poderiam ser produzidas unilateralmente pela parte (por exemplo, a impressão das páginas do site), mas talvez por uma questão cultural, a certificação de um notário, traz a presunção de legalidade, tornando-a muito popular atualmente.

A ação judicial para produção antecipada da prova, de outro lado, mostra-se, também, importante meio para obtenção de provas. Após o resultado dessa ação o autor pode desistir de ajuizar a ação, pois pode concluir que não há elementos suficientes para o seu ajuizamento, ou, ainda, conduzir as partes a um acordo extrajudicial ou judicial (art.381, II e III, CPC). Por esses motivos, a medida tem sido denominada de ação para produção autônoma de prova, pois em alguns casos a ação principal, não será ajuizada. E mesmo que a parte tenha de antemão conhecimento da dinâmica dos fatos e da autoria, aguardar o momento da instrução probatória no processo, poderá significar a perda das evidências, especialmente nos atos ilícitos praticados em ambiente digital. Nesses casos, a produção antecipada da prova servirá para a preservação da prova e garantia do resultado útil do processo. É possível requerê-la para produção de qualquer espécie de prova e mesmo que não haja periculum in mora: testemunhal, pericial, exibição de documentos, vistoria etc.

Em julgado recente, o TJ/SP manifestou-se pela limitação do objeto dessa ação, asseverando que esta não poderá ser sucedâneo do procedimento criminal investigatório, pois o art. 381, CPC exige que o autor descreva precisamente os fatos sobre os quais deverá recair a prova. O caso envolvia renomada empresa que presta informações para concessão de crédito, que buscava evidências a respeito da apropriação indevida de dados eletrônicos de sua titularidade, e sobre o proveito econômico decorrente da prática supostamente ilícita. Para tanto foi requerido o exame pericial dos registros em computadores e demais dispositivos de informática, além de registros contábeis.

O TJ/SP autorizou a extração de cópia de todo o acervo disponível, determinando que o perito examinasse se as rés acessaram e copiaram a base de dados da autora e como se deu esse acesso. O TJSP vedou que houvesse a quebra do sigilo de dados, por meio do exame de discos rígidos contendo informações contábeis, por exemplo. Permitiu, apenas, a extração de cópia de todo o material que ficaria depositado em cartório, para utilização em momento apropriado (quantificação dos lucros auferidos)3. Por fim, o TJSP decretou o sigilo, impedindo o acesso aos autos pela ré, até a apresentação do laudo pericial.

Causa surpresa a decretação de sigilo nessa extensão. Todavia, o fundamento legal para tanto seria o art. 382, parágrafo 4º, CPC, considerado como inconstitucional, por não autorizar a apresentação de defesa e recurso por parte do réu/interessado. Em defesa, o réu poderá requerer a decretação da inconstitucionalidade incidental desse dispositivo, para alegar, por exemplo, o não cabimento da produção da prova, o abuso do direito à produção da prova, o sigilo dos dados, etc.

Em decisão proferida pelo TJDF foi permitida a quebra do sigilo de dados armazenados no gmail e google drive, mediante autorização judicial, em investigação de crime de concorrência desleal (art. 195, lei 9.279/96). Segundo o Tribunal não incidiria a vedação da Lei de Interceptações Telefônicas (lei 9296/96) para os crimes apenados com detenção (caso da concorrência desleal), pois o marco civil da internet (lei 12.965/2014) autorizou a quebra do sigilo de dados armazenados, mediante autorização judicial. Fazendo a distinção, portanto, entre dados em fluxo de comunicação e dados armazenados4.

Todavia mesmo a prova produzida em processo criminal encontra limites. Por exemplo, na negativa de fornecimento de senha para acessar dados em sistema IOS de aparelho celular (já que o réu não é obrigado a fazer prova contra si). Outro limite seria a alegação de impossibilidade de fornecimento de acesso a segredo industrial. Por exemplo, ao funcionamento de algoritmos protegidos pelo segredo industrial, nos termos do art.20 da LGPD (lei 13.709/2018)5.

Nos procedimentos criminais e cíveis envolvendo provas digitais, importante se atentar sempre à cadeia de custódia, cuja definição legal veio com a Lei Anticrime (13.964/19) em 2019 e introdução dos arts. 158-A a 158-F no CPP. Ou seja, deve sempre haver a preocupação com todo o percurso da prova desde a sua identificação até a sua eliminação, com o escopo de garantir a sua integridade. Recomenda-se o exame da ABNT/ISO 27037 de 2014, que descreve as "Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital".

O tema sobre provas em concorrência desleal, evidentemente desperta o interesse da academia, porém as questões práticas são infindáveis e extremamente desafiadoras, especialmente as que decorrem da evolução do meio digital.

*Priscila Kei Sato é doutora em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professora do Curso de Especialização em Direito Processual Civil da PUC/SP. Membro da AASP. Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

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1 'Brushing', a fraude que pode explicar origem das 'sementes misteriosa', artigo capturado em 30/12/2020.

2 TJ/SP - AC: 10044393920198260562 SP 1004439-39.2019.8.26.0562, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 30/09/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 01/10/2020.

3 TJ/SP - AI: 22158025920198260000 SP 2215802-59.2019.8.26.0000, Relator: Rebello Pinho, Data de Julgamento: 03/02/2020, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 26/02/2020.

4 TJ-DF 07146192420208070000 - Segredo de Justiça 0714619-24.2020.8.07.0000, Relator: JOÃO TIMÓTEO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 19/08/2020, Câmara Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 01/09/2020 . Pág.: Sem Página Cadastrada.

5 Recentemente o STF reconheceu a constitucionalidade do "compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil - em que se define o lançamento do tributo - com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional". (RE 1055941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-243  DIVULG 05-10-2020  PUBLIC 06-10-2020)Tema 990 pelo STF. (RE 1055941, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-243  DIVULG 05-10-2020  PUBLIC 06-10-2020).

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Colunistas

Maria Lúcia Lins Conceição é doutora e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Conselho de Apoio e Pesquisa da Revista de Processo, Thomson Reuters – Revista dos Tribunais. Advogada sócia-fundadora do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

Teresa Arruda Alvim é livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora Associada nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa. Membro nato do Conselho do IBDP. Honorary Executive Secretary General da International Association of Procedural Law. Membro Honorário da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile. Membro da Accademia delle Scienze dell’Istituto di Bologna, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da International Association of Procedural Law, do Instituto Português de Processo Civil. Membro do Conselho de Assessores Internacionais do Instituto de Derecho Procesal y Practica Forense de la Asociación Argentina de Justicia Constitucional. Coordenadora da Revista de Processo – RePro. Relatora da Comissão de Juristas, designada pelo Senado Federal em 2009, que redigiu o Anteprojeto de Código de Processo Civil. Relatora do Anteprojeto de Lei de Ações de Tutela de Direitos Coletivos e Difusos, elaborado por Comissão nomeada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2019, (PL 4778/20). Advogada.