Estávamos todos em compasso de espera, com grande ansiedade, quanto à definição do STF sobre estar ou não em harmonia com nossa Constituição Federal, o art. 16 da LACP. O julgamento do RE 1.101.937/SP deveria ocorrer, se não tivesse sido tirado de pauta, no próximo dia 16 de dezembro.
No julgamento deste recurso, o STF deverá esclarecer ser ou não constitucional a regra no sentido de que a coisa julgada nas ações civis públicas ocorre erga omnes nos limites da competência territorial do órgão prolator da decisão.
Já houve inúmeras idas e vindas, principalmente do STJ, no que diz respeito a essa definição. Muitas vezes, aliás, o artigo foi afastado sem que se tenha dito que seria inconstitucional.
Trata-se de tema de evidente relevância para o país, sobre o qual os tribunais superiores precisam estabilizar de uma vez por todas sua jurisprudência, imperativo de segurança jurídica.
A jurisprudência quanto a este tema vem oscilando de modo inadmissível ao longo do tempo.
No âmbito do STJ, por cerca de uma década (2001 a 2011), o posicionamento adotado foi no sentido de aceitar a literalidade do dispositivo antes referido e restringir a eficácia subjetiva da sentença coletiva aos limites territoriais do órgão prolator.
Em 2011, no entanto, no julgamento do REsp n. 1.243.887/PR, sob o regime dos recursos repetitivos, houve uma guinada na jurisprudência daquela Corte, que alterou bruscamente seu entendimento, fixando tese no sentido da eficácia nacional. O acórdão transitou em julgado em 2016. A partir daí, foram vários os Tribunais locais que aderiram a esse posicionamento.
Ocorre, entretanto, que, nesse REsp n. 1.243.887/PR, a afetação foi restrita (ou seja, o tema que ensejou a afetação) ao "foro competente para a liquidação individual da sentença coletiva”, tendo a decisão, portanto, ido além do tema afetado, o que foi reconhecido em outros acórdãos do próprio STJ, que continuaram considerando em pleno vigor o art. 16 da lei 7.347/19851". O que se disse sobre o art.16, no REsp n. 1.243.887/PR, foi, inequivocamente, um obiter dictum.
Diante desse quadro de indefinição e por que a questão é, verdadeiramente, de índole constitucional, revela-se imprescindível a manifestação do STF. A relevância de que se reveste o assunto além de ser imensa, é multifacetada: social, jurídica, econômica e política.
Ainda que em cognição sumária, para análise da concessão da liminar, o STF já se pronunciou sobre a constitucionalidade do mencionado dispositivo legal. Na ADI nº 1.576-1, o STF indeferiu a medida cautelar requerida pelos demandantes no que concernia à suspensão da eficácia do art. 3º da Medida Provisória nº 1.570/1997 (convertida na lei 9.494/1997), por entender que o art. 16 da lei 7.347/1985 não viola a ordem constitucional.2
Também em outra oportunidade, o STF reconheceu a natureza constitucional da matéria e a repercussão geral em recurso em que estava em discussão “a extensão dos efeitos de sentença proferida em ação coletiva ordinária proposta por entidade associativa de caráter civil”. Foi o que ocorreu no RE 612.043-RG/PR, que reconheceu a constitucionalidade do art. 2º-A da Lei 9494/1997, para declarar que os beneficiários do título executivo, no caso de ação proposta por associação, são aqueles residentes na área compreendida na jurisdição do órgão julgador, que detinham, antes do ajuizamento, a condição de filiados e constaram de lista apresentada com a peça inicial. Ou seja, o acórdão reconheceu a constitucionalidade de norma que fixa critério temporal e territorial para fins de delimitação da eficácia subjetiva da coisajulgada em ação coletiva.
Embora sob outra perspectiva (agora, do art. 16 da lei 7.347/1985), o STF é chamado a se pronunciar sobre a imposição de limites à eficácia subjetiva da sentença coletiva, tema de indiscutível envergadura.
Ainda que as decisões acima mencionadas não possam ser consideradas precedentes vinculantes em sentido estrito, não há dúvida de que ambas demonstram a índole constitucional do tema relacionado à limitação da eficácia subjetiva da coisa julgada em ação coletiva. Mais ainda, sinalizam no sentido da absoluta idoneidade do critério territorial para tanto, ou seja, são reveladoras de que se trata de tema constitucional, revestido de repercussão geral, e de certo modo, também a inclinação de pensamento da Corte, que, a nosso ver, é fruto de uma visão extremamente racional do problema.
São fundamentalmente três as críticas feitas ao critério fixado no art. 16 da lei 7.347/1985, de limitação à eficácia subjetiva da coisa julgada nas ações coletivas: afirma-se que o legislador teria "confundido" conceitos processuais, quebrando a boa técnica processual; que tal critério acabaria por esvaziar a tutela coletiva, privando-a da sua eficácia plena; e que praticamente geraria o caos, estimulando a propositura de infinitas demandas coletivas.
Deve-se, todavia, sublinhar que, embora a coisa julgada seja uma das expressões, no plano jurisdicional, da segurança jurídica, a CF deixa à lei ordinária a função de traçar os contornos do instituto. Basta dizer que o CPC criou a ação rescisória, que jamais foi tachada de inconstitucional.
A expressão "eficácia erga omnes", contida no art. 103 do CDC, é usada para indicar que determinado ato atingirá "todos". No caso de uma decisão judicial, significa que atingirá muito mais do que as partes fisicamente presentes no processo, diferentemente do que ocorre nos procedimentos comuns individuais. Significa que transcenderá as partes litigantes, para atingir uma coletividade.
O art. 16 da lei 7347/1985 estabeleceu até onde se opera a transcendência, sendo certo que, ao afirmar que determinado ato gera efeitos erga omnes, não significa, necessariamente, que "atingirá todo o país".
O entendimento em sentido contrário, que, à primeira vista parece atender às necessidades da nossa sociedade, na verdade acaba por gerar situações caóticas. Isto por que, como não são bons( rectius, são equivocados) os critérios para detectar a litispendência, o que acaba por ocorrer é a multiplicidade de ações idênticas, em vários Estados, todas com eficácia para todo o país, (erga omnes – de forma ilimitada) , com o risco evidente de se produzirem toneladas de liminares e de sentenças contraditórias.
Para fixar a abrangência da eficácia subjetiva da coisa julgada, o legislador, então, elegeu critérios de natureza territorial, emprestados das regras de competência. O que há é um empréstimo e não uma confusão...Sua intenção foi, claramente, a de limitar o alcance subjetivo das decisões proferidas nas ações civis públicas, isso até mesmo em função das dimensões continentais do nosso país.
O art. 16 da lei 7.347/1985 estabelece contornos de razoabilidade ao efeito transcendente (ou erga omnes) das ações coletivas, evitando que, nas mãos de um único juiz singular, de qualquer parte do país, às vezes até mesmo por meio de uma mera LIMINAR, se possa, por exemplo, paralisar as atividades de uma empresa em todo o país, e afinal, fique o destino de questões relevantes, de abrangência nacional.
Dentre os direitos que recebem tratamento coletivo, aqueles que mais se coadunam, para fins da limitação da eficácia subjetiva, com o critério da limitação da eficácia da tutela a partir dos limites desenhados pela competência territorial, são os direitos individuais homogêneos, por serem direitos DIVISÍVEIS, de titulares perfeitamente determináveis [IDENTIFICÁVEIS]. Na sua essência, não são direitos coletivos, mas são direitos apenas acidentalmente coletivos, diferentemente dos difusos e coletivos stricto sensu.
A limitação da eficácia subjetiva da coisa julgada, nas ações coletivas, é a que mais se ajusta ao princípio federativo (e com as garantias da competência e territorialidade), fundamento constitucional da organização político-administrativa do Estado brasileiro, nos termos do artigo 1º da Constituição Federal, tanto que, foi baseado nisso que o STF rejeitou a medida liminar da ADI nº 1576.
Por ocasião desse julgamento, os Ministros, que então integravam o Supremo Tribunal Federal, afirmaram que a limitação de eficácia da sentença proferida em ação coletiva TINHA SIDO ÓBVIA, e não apenas pertinente, porque a falta de limitação da eficácia erga omnes implicaria "inversão total do critério da competência e da territorialidade", corolários do princípio federativo (art. 1º da CF). Seria, em alguma medida, como equiparar o juízo singular ao STF, pois a este caberia proferir decisão com efeitos para o país inteiro! É evidente a ausência de racionalidade jurídica que está por trás desta posição.3
O art. 16 da lei 7.347/1985, ainda, prestigia o princípio do juiz natural, pois a atribuição de eficácia nacional à sentença proferida em ação coletiva, tal como sustentam aqueles que apregoam a inconstitucionalidade daquele dispositivo legal, traz o grave risco de permitir a ESCOLHA do juiz que, com efeito erga omnes, decidirá o caso, prática que se costuma chamar de forum shopping e que não deve ser estimulada.
O argumento de que a regra de prevenção, prevista no art. 2º, parágrafo único, da lei 7.347/1985 impediria a referida prática, não se sustenta, uma vez que a primeira demanda já pode ter sido proposta com base nessa estratégia, atraindo para esse juízo as demais ações. A se manter o entendimento pela eficácia nacional da sentença coletiva, nem seria o caso de reunião das ações, pela conexão, mas de verdadeira litispendência.Ou seja, as demais ações deveriam ser extintas pela identidade de pedido, causa de pedir e partes. Isso porque todos esses legitimados agem no interesse das mesmas comunidades, dos mesmos sujeitos. Encontram-se, por assim dizer, numa mesma posição jurídica. Por isso, haverá litispendência.
Ao contrário do que se apregoa, a limitação de eficácia disposta no art. 16 da LACP não "inviabiliza" os processos coletivos. Ao contrário, torna essas ações mais confiáveis.
A outorga de legitimidade a determinados órgãos para agirem em defesa de direitos difusos, coletivos e até individuais, desde que decorrentes de origem comum, bem como a possibilidade de a coisa julgada atingir quem não tenha sido parte, fisicamente, do processo, promoveram a facilitação do acesso à tutela jurisdicional de questões que, de outra forma, dificilmente seriam levadas pelos interessados, individualmente, ao conhecimento do Poder Judiciário, seja por sua pequena expressão econômica, dificuldade de comprovação ou outra razão.
A previsão de limites à transcendência da coisa julgada não compromete esse papel desempenhado pelas ações coletivas.
Quanto ao risco de a incidência da regra do art. 16 da LACP acabar gerando a propositura de mais ações coletivas e desuniformidade de tratamento...na verdade esse risco já existe! Não é apenas um risco, mas uma realidade que desacredita o sistema das ações coletivas no Brasil.
Ademais também existe em relação à tutela jurisdicional individual. Mas este argumento perdeu força diante dos instrumentos, trazidos e aprimorados pelo CPC de 2015, voltados especificamente à formação de precedentes e a evitar que os órgãos fracionários do Poder Judiciário decidam diferentemente sobre o mesmo tema, no mesmo momento histórico.
O incidente de resolução de demandas repetitivas, novidade do CPC/15, é um deles. A repercussão geral e o regime de julgamento dos recursos repetitivos – que já se encontrava inserido em nossa ordem processual desde 2006, por meio da lei Federal 11.418 - é outro exemplo.
A existência de ações em vários Estados pode até levar a certas incoerências em um primeiro momento, mas depois, permite que haja, nos tribunais superiores – únicos que têm competência para produzir precedente vinculante com eficácia erga omnes, em todo o território nacional - um debate muito mais qualificado. Racionalidade acima de tudo, é o de que precisamos para lidar com este tema, que, quando tratado com paixões, leva a soluções inadequadas. O empobrecimento da discussão e o risco de se decidir de maneira prematura, a prevalecer o entendimento pela eficácia nacional da sentença coletiva, é inegável.
O tema que iria ser decidido dia 16 de dezembro pelo STF é, de fato, daqueles que despertam paixões. Paixões podem até ser boas nas nossas vidas pessoais mas, no direito, com a mais absoluta certeza, não nos guiam para os melhores resultados.
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1 REsp 1.114.035/PR, j. 07.10.2014, Rel. p/ acórdão, Min. João Otávio Noronha, e EDcl no REsp 1.272.491, sob relatoria do Ministro Og Fernandes, julgado em 08/10/2019.
2 Em seu voto, o Min. Marco Aurélio salientou, "tenho a mudança de redação como pedagógica, a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do Juízo e, portanto, o respeito à competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não implica esvaziamento da ação civil pública nem, tampouco, ingerência indevida do Poder Executivo no Judiciário".
3 O art. 92, § 2º da CF reforça esse entendimento, ao dispor que somente o "Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores têm jurisdição em todo o território nacional".