Jorge Amaury Maia Nunes
Na nossa última conversa, estabelecemos as noções gerais sobre prescrição, desde a Roma antiga, até os dias presentes. Hoje, vamos abordar a chamada prescrição intercorrente, tal como concebida no processo civil brasileiro atual, investigando, também, o ponto de vista da doutrina e da jurisprudência.
Em primeiro lugar, convém deixar claro que a chamada prescrição intercorrente não se ajusta ao conceito que se tem de prescrição. Lembremo-nos que a prescrição era a o encobrimento da pretensão de postular um direito em juízo em decorrência da inércia de seu titular. Dito de outra forma, o jurisdicionado possuía, em tese, um direito a exigir reparação em juízo. A lei especificava prazo dentro do qual o Judiciário poderia ser acionado. Sem embargo disso, o titular deixara fluir in albis o prazo em questão. Nessas circunstâncias, a falta de provocação do Judiciário implicava a ocorrência da prescrição e a impossibilidade, desde então, de postular em juízo e de forma eficaz a reparação do direito lesado.
Por outro lado, tem-se como certo que era estranha ao Direito antigo a chamada prescrição intercorrente. Uma vez exercida a pretensão, não mais cabia falar em prescrição. Mais modernamente, e não se tem ao certo o ponto original da ocorrência, houve uma espécie de deturpação desse instituto de direito material, o qual, de fluência exterior e anterior à instauração da relação processual, passou à condição de ocorrência endoprocessual. Prazo que corre dentro de processo, como se fosse qualquer situação de abandono da causa, ou especificamente de perempção (que supõe o abandono da causa pelo autor, dando azo à extinção do processo por três vezes, na forma do disposto no art. 485, V, combinado com o § 3º do art. 486 do CPC/2015).
Parece ser possível encontrar os primeiros sinais dessa tendência na edição do decreto 20.910, de 1932, que dispunha sobre o prazo quinquenal para cobrança das dívidas passivas da União, dos Estados e dos municípios, bem assim para o exercício de todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, estadual ou municipal. O art. 9º desse decreto dispunha que a prescrição interrompida recomeçaria a correr, pela metade do prazo, da data do ato que a interrompeu ou do último ato ou termo do respectivo processo. Ainda que não fosse clara a parte final do dispositivo, foi justamente com base nele que começaram os primeiros sinais do novo instituto: prescrição depois de iniciado o processo.
Também na lei de execução fiscal, lei 6.830, de 1980, a matéria relativa à prescrição intercorrente recebeu regência específica, com a alteração por que passou a partir de 2004. Com efeito, por força da inserção promovida pela lei 11.051, o art. 40 da nossa Lei de Execuções Fiscais passou a contar com um § 4º com esta redação: Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.
Daí para a jurisprudência começar a elastecer o âmbito de vigência material da norma foi só um passo. Passou-se, como que por encanto, a reconhecer a ocorrência da prescrição intercorrente relativamente a outras situações que não aquelas previstas na lei do executivo fiscal. Agora, com o advento do novo Código de Processo Civil, o novo instituto ganhou hospedagem com aposentos próprios no nosso Direito, por força do disposto nos arts. 921 e 924, a seguir parcialmente reproduzidos:
Art. 921. Suspende-se a execução:
......
III - quando o executado não possuir bens penhoráveis;
......
§ 1o Na hipótese do inciso III, o juiz suspenderá a execução pelo prazo de 1 (um) ano, durante o qual se suspenderá a prescrição.
§ 2o Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano sem que seja localizado o executado ou que sejam encontrados bens penhoráveis, o juiz ordenará o arquivamento dos autos.
§ 3o Os autos serão desarquivados para prosseguimento da execução se a qualquer tempo forem encontrados bens penhoráveis.
§ 4o Decorrido o prazo de que trata o § 1o sem manifestação do exequente, começa a correr o prazo de prescrição intercorrente.
Art. 924. Extingue-se a execução quando:
.........
Antes de mais nada, é preciso ter presente que o casamento desses dois dispositivos sugere existir, antes da fluência do prazo prescricional, um prazo dilatório de um ano. Mais bem especificando, o juiz suspenderá a execução pelo prazo de um ano quando o executado não possuir bens penhoráveis. Se, nesse entretempo, não forem localizados bens penhoráveis, começa a fluir o prazo prescricional que seja aplicável à espécie, não sendo demais lembrar a dicção da súmula 150 do STF: prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação.
Ainda dentro do tema, recentemente, o STJ admitiu um IAC (incidente de assunção de competência no REsp 1.604.412/SC), com fundamento no art. 947, § 4º do CPC/2015, a fim de que a douta segunda seção examine a necessidade ou não de intimação prévia do credor para que possa fluir o prazo da prescrição intercorrente.
O eminente relator aduziu que o novel instituto, nascido de disposição expressa do Código de Processo Civil, destina-se, entre outros fins, à prevenção e composição de divergência jurisprudencial, cujos efeitos são inegavelmente perversos para a segurança jurídica e previsibilidade do sistema processual.
A suscitação ex officio do incidente de assunção de competência, conceda-se, abrirá ensanchas para apaziguar as dúvidas e hesitações da jurisprudência. É claro, por obediência ao texto codificado, o aplicador da lei ficará de mãos amarradas e terá de aplicar o instituto apelidado de prescrição, mas que se afasta da verdadeira prescrição. Deveras, a histórica prescrição visa a evitar uma situação de insegurança gerada exclusivamente pelo credor que não movimenta a máquina judiciária por longo período, fazendo com que sua inação seja capaz de impedir a pacificação social.
No que concerne à prescrição intercorrente, a situação é outra, muito outra: o Judiciário foi provocado, houve a incoação do procedimento executivo, porque o credor exeqüente acreditou na norma do art. 789 do CPC: o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei. Sem embargo de haver agido (não se trata de inação), o credor, cidadão comum, não dispõe de meios para localizar os bens eventualmente ocultados pelo devedor/executado recalcitrante. O Judiciário, por acúmulo de trabalho, inércia, ou qualquer outro motivo, não age e transfere a consequência do seu não-agir para o cidadão, declarando a ocorrência da prescrição intercorrente, premiando o executado ladino, hábil prestidigitador da ocultação patrimonial, que, após a declaração da ocorrência da prescrição poderá "repatriar" seu patrimônio para a claridade solar, em verdadeiro deboche ao direito do credor, que nada mais poderá fazer.
Mais triste, ainda, é o argumento do Judiciário que dizia, mesmo antes deste CPC, aplicar a prescrição intercorrente em homenagem à segurança jurídica. Que segurança? Em defesa de quem? Parece, aqui, que tinha razão, mais uma vez, o saudoso J. J. Calmon de Passos, ao afirmar: o Brasil é o paraíso dos devedores!