Jorge Amaury Maia Nunes
Praticamente todos os dias, os militantes do Direito ouvem ou leem algo relativo a prazo prescricional, prescrição, prescritibilidade, actio nata e outras coisas do gênero. Prescrição é tema do dia a dia do Direito.
A prescrição não existe por si. É sempre o limite de uma função temporal para o exercício de uma pretensão relativa a alegado direito de seu titular contra o legitimado. É uma espécie de qualidade temporal da pretensão a ser exercida e com ela se imbrica de tal sorte que acaba por ser contaminada. Nem por outro motivo se fala em prescrição penal, prescrição tributária, civil, trabalhista, administrativa, etc.
Ao que parece, a teoria da prescrição extintiva tem sua origem no Direito Romano (influência helênica?). HENRI DE PAGE, saudoso professor da Universidade de Bruxelas, no seu primoroso Traité Élémentaire de Droit Civil Belge, caminha nesse sentido e acrescenta que o direito alemão, o direito canônico, as ordenações e os costumes nada mais fizeram do que emendá-la ou completá-la.i
O direito romano, nos seus primórdios, não conhecia a prescrição. O titular de supostos direitos poderia fazê-los valer a qualquer tempo (vale o registro de que o Direito romano valorizava as actiones e não propriamente os direitos subjetivos, tais como os concebemos). Quando, entretanto, ingressamos no chamado período formulário, que corresponde ao segundo período da fase do Ordo Iudiciorum Privatorumii, o pretor peregrino, que era responsável pela solução das lides entre romanos e estrangeiros, criava uma fórmula representativa do alegado direito das partes. Esse comando habitualmente possuía quatro elementos (intentio, demonstratio, adjudicatio e condemnatio), porém, antes dos referidos quatro elementos, o pretor lançava (pré-escrevia, de prae scribere), na parte superior da fórmula, o prazo dentro do qual as partes deveriam ir perante o juiz privado para solucionar a contenda. Essa prescrição temporal era normalmente de um ano.
Provavelmente, a mencionada fixação temporal era uma decorrência do fato de que esse era o tempo de mandato do pretor peregrino. Depois disso, passaram a ser fixados prazos para o exercício de ações imobiliárias nas províncias (dez anos entre presentes e vinte anos inter absentes). Finalmente, uma Constituição de Teodósio II, já no sec. V da nossa era, estabeleceu que o prazo mais longo para propositura de ações seria de trinta anos (praescriptio longissimum tempus). Com essa norma legal, todas as ações passaram a ser temporais. Adverte CHARLES MAYNZiii, entretanto, que as ações que prescreviam no prazo mais longo continuaram a ser chamadas ações perpétuas; temporais seriam, apenas, as que fossem submetidas a prazo prescricional menor.
Desde então, na perspectiva de sua apreciação pelo Judiciário, a prescrição sempre foi considerada uma defesa indireta de mérito que, uma vez alegada e acolhida, impedia o exame de qualquer outra matéria de mérito.
No direito brasileiro, ao lado da prescrição, que atinge e recobre a pretensão ao exercício do direito, o novo Código Civil também cuidou da decadência, fazendo-o de forma robusta e, em certo sentido, assistemática, sendo certo, entretanto, que os dois institutos têm forte base temporal como premissa de incidência.
Exatamente por isso, diferenciar prescrição e decadência não é tarefa das mais fáceis. Parece que o critério mais seguro é aquele proposto por AGNELO DE AMORIM FILHO, a respeito da natureza dos direitos. Diante do exercício de pretensão, o que supõe uma relação jurídica obrigacional (em decorrência da qual alguém tem o direito de exigir de outrem que dê, faça ou deixe de fazer algo), a resposta estatal, se positiva, terá evidente conteúdo patrimonial. Para esse tipo de atividade, que envolve direitos dotados de pretensão, o direito material fixou prazo de exercício, após o qual a pretensão ficará encoberta pela prescrição. Já nos direitos formativos, potestativos, isto é, direitos desdotados de pretensão, a parte ré não teria que fazer algo; somente sujeitar-se ao exercício do direito por parte do autor (direito constitutivo ou constitutivo negativo). Exemplo clássico disso era a anulação do casamento, na vigência do Código Civil de 1916, quando o marido descobria que a mulher não era mais casta. Se ele propusesse a ação anulatória do casamento, e fosse vitorioso, nada deveria ser feito pela mulher. Ela não seria condenada a nenhum agir, justamente porque o direito em jogo não tinha a feição de uma relação obrigacional. A situação jurídica era simplesmente desconstituída.
Ressalvada essa distinção, há em comum o fato de que tanto na prescrição quanto na decadência há um prazo para exercício ou da pretensão de reparação ou da constituição de estado novo. Se esse não é exercido, perde-se o direito por força da decadência. Se, nas relações obrigacionais, não se exerce a pretensão, o direito continua sendo do titular, só que desdotado de pretensão.
Uma ressalva há de ser feita, não ao critério, mas à percepção que a comunidade dos juristas possui em relação à pretensão. Há uma tendência de universalização desse conceito (indevida universalização, é fato) que faz com que toda ação aviada em juízo pareça ser dotada de pretensão. A ser assim, o critério distintivo proposto por AGNELO DE AMORIM FILHO ficaria tão esmaecido a ponto de tornar-se imprestável. É necessário ter sempre presente, portanto, um discrímen proposto, no Brasil, pelo professor OVÍDIO ARAÚJO BATISTA DA SILVA, em diversas de suas muitas obras sobre processo civil: há que perceber (i) uma pretensão, relativa à relação jurídica processual, que o autor exerce contra ou em face do Estado; (ii) outra pretensão, de direito material, exercida contra o adversário.
É justamente no âmbito do direito material ou substancial que devem ser procuradas aquelas situações em que há pretensão, assim identificada a possibilidade da exigência de um agir por parte do adversário com o fito de realizar o direito do autor. Haverá, por certo, em que a busca de um direito perante o Judiciário não implicará, para sua efetivação, a necessidade de nenhuma atividade por parte do legitimado passivo.
Como já antecipado, a defesa relativa à prescrição ou decadência dispensa análise de qualquer outra circunstância de mérito, exatamente porque tanto prescrição como decadência são consideradas institutos de direito material. Os prazos respectivos não são processuais; referem-se ao direito material. Bem por isso, não se enquadram entre as questões preliminares do artigo 335 do CPC/15. Coerente com o sistema que elegeu, o legislador dispõe no artigo 487, II do mesmo código, que há resolução de mérito quando o juiz pronuncia a decadência ou a prescrição. Algumas coisas são claras a esse respeito: ambos os prazos são previstos no Código Civil, lei material, e o Código de Processo Civil com toda a evidência possível considerou essa matéria como pertinente ao mérito da causa. Há, entretanto, o entendimento daqueles que, como CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, apelidam essas sentenças que examinam a decadência de falsas sentenças de mérito, porque o prazo decadencial não seria de direito material. Se o argumento valer para a decadência, valerá também para a prescrição, sobretudo porque, desde 2006, em decorrência da dicção da lei 11.280, de 2006, que revogou o art. 104 do Código Civil, o magistrado passou a poder pronunciar a prescrição independentemente de alegação da parte.
Era usual dizer-se, até então, que a prescrição constituía exceção de direito material, enquanto que a decadência era objeção de direito material, justamente com fulcro no discrímen doutrinário segundo o qual objeções são cognoscíveis de ofício enquanto que exceções são matérias de defesa que exigem provocação da parte e sem a qual o juiz não pode manifestar-se. Agora, essa distinção não faz mais sentido.
Vale o apontamento de que, do ponto de vista da ortodoxia, não é feliz a disseminada expressão prejudicial de mérito para qualificar a matéria prescricional. A prescrição não prejudica o mérito! Prejudicial vem de juízo prévio (praejudicium) buscando significar a matéria que deve ser analisada antes de outra, e sem a qual a outra não pode ser examinada. Questões prejudiciais, segundo a boa doutrina, sempre podem constituir objeto autônomo de determinado processo, sem vínculo nenhum com a matéria cuja cognição é por ela limitada.
Ora, ninguém vai a juízo para pedir prescrição extintiva de direito, embora possa ir a juízo para alegar prescrição aquisitiva de direitos, como ocorre nas ações de usucapião. A prescrição aquisitiva, entretanto, figura em outro rol. As duas formas de prescrição dependem do curso do tempo (de prazos1, portanto), mas esta, aquisitiva, não é direito obrigacional. A sentença a ela relativa é de natureza meramente declaratória.
Em outra perspectiva, no conceito tradicional, a prescrição sempre esteve vinculada ao princípio da actio nata que, em análise simples, pode ser identificado como o reitor do período dentro do qual a pretensão de fazer valer o direito pode ser exercida. Identifica-se o momento inicial com o momento da violação do direito. Verificado o momento da lesão, dispara-se o contador do tempo, fixado em lei para o exercício da pretensão, ressalvada a incidência de alguma das causas que impedem ou suspendem a fluência do prazo prescricional (art. 197 a 201 do Código Civil Brasileiro). Esgotado o prazo legalmente fixado e tendo permanecido o titular em situação de inação, estará caracterizada a ocorrência da prescrição, que, como visto, poderá ser alegada como defesa indireta de mérito.
Estabelece o art. 189 do Código Civil, verbis:
Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.
Da dicção legal, parece claro que o direito da parte continua a existir. Existirá, entretanto, desacompanhado da pretensão. Se é verdade que não há mais falar em exigibilidade do direito cuja pretensão foi recoberta pela prescrição, também o é o fato de que o direito conserva algumas de suas virtualidades. Assim o era na Regência do Código Civil de 1916, assim o é na vigência do atual Código Civil. Com efeito, ao regular o chamado pagamento indevido, a norma material evidencia que todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir. Se não restituir, o direito confere àquele que pagou a possibilidade de propor uma ação de repetição do indébito.
De maneira diversa, se o que recebeu possuía um crédito prescrito (que não podia ser exigido em juízo), aquele que pagou não pode pedir a restituição, nem propor ação de repetição do indébito. O artigo 882 do Código Civil é explícito.
Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.
Convém anotar que, na esfera não penal, o direito processual civil brasileiro e o direito civil brasileiro não cuidavam da chamada prescrição intercorrente. Somente a lei de execução fiscal continha previsão a esse respeito.
Essa matéria, entretanto, será tema da nossa próxima conversa.
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1 Se fosse possível adotar a classificação dos prazos processuais para a prescrição e a decadência, poder-se-ia dizer, adotando a teoria clássica (e não a adotada pelo CPC), que o prazo prescricional é peremptório, no sentido de que a pretensão há de ser exercida dentro dele; já o prazo decadencial é dilatório (prazo de afastamento), significando que ele há de fluir antes que a ação possa ser proposta.
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i Tome Septième (volume II), Bruxeles: Établissements Émile Bruylant, 1943, p. 1023.
ii Em absurda simplificação, podemos separar a história do processo civil romano em duas fases: a primeira, desde a sua fundação até o século III da nossa era, denominada fase da Ordem jurídica privada, e a segunda, desde então até a morte de Justiniano, em 565, denominada fase da cognitio extraordinaria. A primeira fase pode ser dividida em dois períodos: o primeiro, denominado período das ações da lei (legis actiones), que vai desde a fundação da Roma, em 754 ou 753, até uma data imprecisa. É que vários eventos compuseram o fim desse período: a edição da Lex Aebutia, datada entre 149 e 125 a. C.; a criação da magistratura do pretor peregrino, em 242 a.C; e a Lex Julia do ano 17 a.C.
iii Cours de Droit Romain, cinquième édition, Tome premier. Paris: A Durand & Pedone-Lauriel. 1891, p. 544.