Guilherme Pupe da Nóbrega
A questão sobre a (in)admissibilidade de pedido genérico de indenização de indenização por danos morais não é, absolutamente, nova, remontando, ao menos, ao Código de Processo Civil de 1973.
Naquele Codex, previa o artigo 286 que o pedido contido na petição inicial haveria de ser certo ou (rectius, leia-se a conjunção aditiva “e” em lugar de “ou”) determinado.
O próprio dispositivo, contudo, trazia exceções em seus incisos, admitindo a formulação do chamado pedido genérico (i.e., certo quanto ao gênero, mas indeterminado quanto à qualidade, quantidade e/ou extensão) em determinadas hipóteses, dentre as quais quando não fosse possível “determinar, de modo definitivo, as conseqüências do ato ou do fato ilícito”.
Aquela exceção específica, enunciada no inciso II do artigo 286, veio bem a calhar como solução para um dilema enfrentado pelos advogados: se o pedido determinado de indenização por danos morais em patamar alto era desestimulado pelo risco de elevados ônus na hipótese de sucumbência recíproca1, o quantum em menor monta trazia consigo o perigo de limitar o juízo — lembre-mo-nos da congruência, da adstrição e do princípio dispositivo — a pretensão deficitária, que admitiria maior monta que aquela conservadoramente indicada pelo autor em sua inicial.
Daí a conveniência trazida pelo artigo 286, II, a dar vazão à possibilidade de que se deduzisse pedido genérico de indenização por danos morais, relegando ao juízo a sua fixação.
Em 2006, sobreveio o enunciado sumular 326 do STJ, a dispor que “na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca.”
Precisamente em resposta ao dilema exposto mais acima, o entendimento jurisprudencial consolidado na súmula em questão buscou evitar que a sucumbência recíproca em pedido determinado de indenização por danos morais produzisse como resultado um valor devido pelo autor a título de honorários advocatícios superior à indenização a que viesse a fazer jus. Bem a propósito, vale transcrever excerto de um dos arestos que culminou na edição da súmula, ilustrativo do raciocínio engendrado: “Nos casos de indenização por danos morais, fixado o valor indenizatório menor do que o indicado na inicial, não se pode, para fins de arbitramento de sucumbência, incidir no paradoxo de impor-se à vítima o pagamento de honorários advocatícios superiores ao deferido a título indenizatório.”2
Conquanto o enunciado quiçá visasse a dissuadir a dedução de pedido genérico de indenização por danos morais, o fato é que o artifício, já disseminado, seguiu permeando a prática jurídica, encontrando agasalho na jurisprudência do STJ3, a despeito de algumas críticas doutrinárias abordadas mais à frente.
O debate, porém, ganhou novo capítulo com a edição do CPC/15.
É que, embora seja certo que o artigo 324, § 1º, II, haja mantido, na essência, a norma inserta no artigo 286, II, do Código anterior, o artigo 292, V, ao versar sobre parâmetros para atribuição de valor à causa, passou a dispor que o “valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será (...) na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido”.
À luz do aludido dispositivo, vozes autorizadas passaram a defender que o CPC/15 teria ido contra a jurisprudência do STJ, impondo, mesmo, a caducidade da súmula 326.4
De nossa parte, porém, esse entendimento merece ressalvas.
É que, em nossa opinião, situações há em que o abalo moral se protrai no tempo, não sendo possível impor ao autor a pronta delimitação do valor apto a reparação por danos cuja extensão ainda é desconhecida.
Tome-se por exemplo publicação vexatória veiculada na internet. Não é dado ao autor, no momento do ajuizamento da ação — que pode ocorrer de imediato, sobretudo quando pleiteada tutela provisória de urgência com vistas a interromper a publicação —, saber por quanto tempo a ofensa perdurará até virtual sentença de procedência ou, ainda, a difusão que o ilícito merecerá nesse interregno.
Se é certo que ao juiz será dado levar em conta esses fatores no momento da quantificação da indenização (artigo 493), é no mínimo discutível a capacidade por parte do autor de divisá-los no momento de aviamento da ação.
Noutra vertente de argumentação, não vislumbramos com a facilidade que o artigo 292, V, haja de algum modo derrogado ou relativizado o artigo 324, § 1º, II, para o fim de excluir do âmbito de vigência material desta norma o pedido de indenização por danos morais.
O artigo 292, como dito, versa acerca de parâmetros para fixação de valor da causa; o artigo 324, de sua vez, regra a formulação de pedido. Não há, pois, em nosso sentir, norma específica a excepcionar norma geral, pelo simples fato de que os objetos de regulação são distintos.
Buscando maior clareza, valor da causa e pedido não categorias processuais diferentes. É certo que há, entre elas, uma relação de proximidade. Essa relação, contudo, se dá no sentido de a determinação do pedido — quando ocorrer — reverberar necessariamente no valor da causa, não o contrário.
Dito ainda de outro modo, se é verdade que na “ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral”, o valor da causa deve espelhar o valor pretendido (dicção do artigo 292, V), disso não decorre que deva haver sempre um valor determinado a ser pretendido em ações indenizatórias.
Um raciocínio simples falseia a inferência levada a cabo por aqueles que defendem a impossibilidade de pedido genérico de indenização por dano moral em razão do artigo 292, V: se da exigência de correspondência entre pretensão em ações indenizatórias e valor da causa decorresse a premissa de que deve haver sempre um pedido determinado de valor a ser indenizado, também se poderia mais admitir pedido genérico em reparação por danos materiais.
A leitura do artigo 292, V, que merece ser prestigiada a nosso ver, pois, é a de que, nas ações indenizatórias, incluídas as fundadas em dano moral, o valor da causa deve espelhar o pedido quando este, por óbvio, for determinado. Lado outro, em situações em que não for possível exigir do autor conhecer de pronto a extensão das consequências do ato ou do fato reputado ilícito, admitir-se-á o pedido genérico, de sorte que o valor a ser atribuído à causa deverá sê-lo com base em estimativa. Em nossa opinião, é essa a solução que mais bem harmoniza os artigos 292, V, e 324, § 1º, II, além de homenagear a jurisprudência do STJ, inobstante consolidada sob a égide do CPC anterior.5
Natural que essa posição possa sofrer críticas, notadamente aquelas já ventiladas pela doutrina no sentido de que (i) o pedido genérico de indenização por danos morais vulneraria o contraditório da parte ré, na medida em que inviabilizaria o debate sobre a extensão de possível condenação, e (ii) esvaziaria o interesse recursal por parte do autor que pretendesse se insurgir contra sentença que, com base nos critérios a respeito dos quais haja este assumido o risco, fixasse valor a menor do que o idealizado pelo ofendido.
Sem embargo, responderíamos, quanto ao que sumariado em (i) no parágrafo anterior, que a incerteza sobre o patamar a ser adotado pelo juízo na fixação de indenização, quando genérico o pedido, paira não apenas sobre o réu, mas, também, sobre o autor, sendo certo que ambas as partes, em igualdade, poderão buscar influenciar os tais critérios judiciais a serem adotados para o arbitramento da reparação, entendimento esse, aliás, já defendido por Ada Pellegrini Grinover em parecer sobre o assunto.6
Doutra banda, sobre o que sumariado em (ii), releva rememorar que a utilidade é nota do interesse processual que se faz plenamente presente na hipótese de sentença que, julgando pedido genérico de dano moral, fixa valor considerado ínfimo pelo autor. E assim se dá pelo fato de que, a par de haver proveito na busca pelo autor na majoração da condenação — o que evidencia a utilidade —, do pedido genérico não se pode extrair autorização ou assunção de risco por parte do autor a admitir decisões teratológicas, que deixem de observar a proporcionalidade da reparação em relação ao dano, consoante, bem a propósito, já consignou a jurisprudência.7
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1 "Se a parte indicou, desde logo, o montante da indenização pretendida, pedindo explicitamente a condenação do réu ao pagamento de um quantitativo certo, assumiu os riscos decorrentes da parcial sucumbência." STJ, REsp 71.576, rel. Min. Nilson Naves, DJ de 16.3.1998.
2 STJ, AgRg no Ag 459509, rel. Min. Luiz Fux, DJ de 19.12.2003.
3 A título ilustrativo, vale mencionar recentíssimo acórdão da Terceira Turma, noticiado neste informativo jurídico, que reiterou a remansosa jurisprudência a respeito do tema.
4 Nesse sentido: CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2016, p. 194; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Salvador: JusPodium, 2016, p. 531; DELFINO, Lúcio; SOUSA, Diego Crevelin in: clique aqui; e DELLORE, Luiz in: clique aqui.
5 É essa também a posição de CRAMER, Ronaldo in CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (coords.). Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 458; e de CUNHA, Leonardo Carneiro da in clique aqui.
6 "É que da generalidade do pedido, nesse caso, não decorre qualquer prejuízo para o réu, desde que, como ressaltado anteriormente, os critérios informativos da quantificação sejam objeto de adequado debate, em contraditório, quer em processo de liquidação, quer na própria fase cognitiva condenatória, no curso da respectiva instrução." GRINOVER, Ada Pellegrini. Parecer referente ao Agravo de Instrumento nº 113.088.4/0, TJSP, in Dano Moral. Observações sobre a ação de responsabilidade civil por danos morais decorrentes de abuso da liberdade de imprensa. São Paulo: Ed. Fisco e Contribuinte, 1999.
7 "Ordinariamente, o demandante tem duas oportunidades, dois momentos em que, amplamente, suscitam-se, discutem-se e se decidem as questões. De tal sorte, admite-se, sempre, que a princípio o pedido formulado seja apreciado e julgado em ambos os graus de jurisdição. Daí, se se pediu que o juiz arbitrasse a indenização, era lícito ao autor, inconformado com o arbitramento, pedir ao Tribunal que revisse o valor arbitrado pelo juiz. Em tal caso, não faltava, como não falta, interesse para recorrer (Cód. de Pr. Civil, art. 3º e 499). Recurso especial conhecido e provido, a fim de que se retome o julgamento da apelação." STJ, REsp 123.523, rel. Min. Nilson Naves, DJ de 28.6.1999.