Processo e Procedimento

Ainda há (muito) o que falar sobre causa de pedir

Ainda há (muito) o que falar sobre causa de pedir.

22/11/2016

Guilherme Pupe da Nóbrega

A causa de pedir é elemento da petição inicial. Se petição inicial é, em essência, instrumentalização da dedução de pretensão que busca retirar o Judiciário da inércia, chamando-o a prestar a jurisdição, imprescindível que se lhe confira esteio a justificar a atração das consequências jurídicas propugnadas pela parte autora. Quem pede deve sustentar o pedido em fundamentos: a relação jurídica de direito material e a valoração jurídica de seus desdobramentos. É dizer, o exercício do direito de ação deve ser encarado como verbo transitivo direto e indireto, pois quem pede deve pedir algo a alguém com base em alguma coisa.

Surgem, todavia, questões, inerentes à causa de pedir, importantes para a compreensão do instituto em todo seu escopo, questões essas que, muitas vezes, passam ao largo de explicação mais simplista — como a do parágrafo anterior, propositadamente superficial. Neste pequeno espaço, nos propomos a tratar de algumas delas.

Inicialmente, cumpre de pronto distinguir causas de pedir remota (relação de direito material) e próxima (fundamentos jurídicos). Como a ilustração pelo exemplo facilita a explicação, valemo-nos de um, trazido por Scarpinella Bueno: ação de despejo. A causa de pedir remota, relação jurídica, é o contrato de aluguel. A causa de pedir próxima, fundamento jurídico, pode ser mais de uma, mas imaginemos o não-pagamento, juridicamente entendido como inadimplemento a resolver o contrato.

Essas distinções, elementares, são importantes para o exame proposto: investigada a causa de pedir próxima, especificamente, verificar (i) sua repercussão nos limites da coisa julgada e (ii) a (in)exigência, para fundamentação jurídica, de fundamentação legal. Ao analisar esses pontos, este escrito privilegiará, em detrimento da simples resposta, a justificativa, por vezes negligenciada, por que se conclui em tal ou qual sentido.

Sobre o que sumariado em (i), o CPC adotou a teoria da substanciação em contraposição à da individuação. Nessa última, basta que o autor narre a relação de direito material (contrato de aluguel) e peça o despejo, sendo considerados alegados todos os fatos e fundamentos deduzidos e dedutíveis. Mais bem explicando, supondo que o autor peça o despejo e o fundamente — embora não precise — no inadimplemento, uma vez resolvido o mérito, há coisa julgada que frustra o ajuizamento futuro de ação baseada naquela relação de direito material, ainda que com fundamentos outros (reforma indevida, por exemplo). Assim se dá porque a causa de pedir remota independe da causa de pedir próxima que funda o pedido e porque a coisa julgada material privilegia a causa de pedir remota, abarcando, por tabela, com eficácia preclusiva, causas de pedir próximas deduzidas e dedutíveis.

Já na teoria da substanciação, o autor narra a relação jurídica e fundamenta, no direito, as consequências que pretende aperfeiçoadas. A causa de pedir, assim, dirá respeito, além da relação de direito material (contrato de aluguel, casamento, acidente), à valoração jurídica de fato dela oriundo (inadimplemento, quebra de dever matrimonial, responsabilidade civil), culminando no pedido (resolução/despejo, divórcio litigioso, indenização). Isso quer dizer que, no primeiro exemplo, se o autor possui mais de um fundamento, mas somente alega o inadimplemento — deixa de cumular ações — e não logra o despejo, nada obsta futura ação com mesmo pedido, mas causa de pedir diversa, não abarcada pela coisa julgada, o que somente é possível porque, vale rememorar, adotada a teoria da substanciação.

A norma inserta no artigo 508 do CPC1 — antigo artigo 474 do CPC/1973 — só alcança a ação em que formada a coisa julgada. Sendo certo que a causa de pedir, a exemplo das as partes e do pedido, é elemento da ação, a ação fundada em causa de pedir diversa é ação nova, não atingida pela coisa julgada material formada em ação anterior.

Indo além, sobre o que sumariado em (ii) no quarto parágrafo deste texto, isto é, sobre a dúvida quanto à (des)necessidade de fundamentação legal, você, leitor, provavelmente já sabe que a doutrina é tranquila em afirmar que a fundamentação jurídica dispensa citação da lei. Interessante, contudo, é entender o porquê de assim serem as coisas. Para isso, alguns pontos hão de ser enfatizados.

O primeiro desses pontos consiste em demonstrar que é possível fundamentar juridicamente sem invocar norma legal. Ora, sabemos que o Direito possui fontes além da lei (doutrina, jurisprudência, costumes, analogia e princípios gerais do direito). Retomando nosso exemplo, celebrado contrato de aluguel inadimplido pelo réu, é possível pedir o despejo sem invocar dispositivos. O autor mencionará costumes, o princípio da exceção do contrato não cumprido, precedentes: fundamentará juridicamente, sem necessariamente fundamentar legalmente.

Em segundo lugar, é o juiz quem diz o direito: iura novit curia. O advogado, habilitado tecnicamente, postula em juízo direito da parte. Dele — do advogado — não se exige indicar, acertada e definitivamente, a norma incidente, conquanto seja habilitado tecnicamente. O advogado alicerça juridicamente pretensão/resistência, mas não resolve o mérito, porque age parcialmente e porque não é investido de jurisdição. A propósito disso, no Juizado Especial Cível (artigo 9º da lei 9.099/95), no Processo do Trabalho (artigo 791 da CLT; ADI 1.127-8; súm. 425/TST) e na ação de alimentos (artigo 2º da lei 5.478/68), há hipóteses que autorizam à parte atuar sem advogado. Nessa senda, é exigido do autor saber que artigos citar em sua petição inicial para fundamentar uma pretensão? Não. A petição inicial não será inepta, não lhe faltará causa de pedir (artigo 330, parágrafo único, I, do CPC) se não contiver normas explicitadas.

Mudemos o exemplo: supondo que o advogado indique fundamentos legais, mas equivocadamente: propõe ação pleiteando indenização e fundamenta no Código Civil a responsabilidade extracontratual, quando a relação, na verdade, é contratual e de consumo. Foi narrada a relação jurídica? Sim. Foram indicados fundamentos jurídicos que autorizam o resultado pretendido "indenização"? Sim. A petição é inepta? Não. Pode o juiz, investido de jurisdição, desvincular-se do fundamento jurídico equivocadamente indicado? Claro, se não pelas razões expostas, para não prejudicar a parte pela atecnia de seu advogado. Essa sentença, ademais, não será extra ou ultra petita, porque o pedido deduzido (reparação) foi respeitado. A fundamentação adotada pelo juiz é que foi e pode ser diferente — se a fundamentação vinculasse o juiz, todo pedido seria procedente.

Ainda outro ponto: a causa de pedir como elemento da inicial ignora se há maior chance de êxito se citada a lei. Aqui, não se discute mérito, e sim se a petição é apta. Não há inépcia porque não citada a lei. Basta que haja relação e fundamentação jurídica a embasar pedido e a petição possuirá o condão de romper a inércia. Somente em não havendo causa de pedir é que não haverá sobre o que o juiz possa se manifestar ou sobre o que a outra parte possa se defender — o contraditório restará prejudicado. O conteúdo da causa de pedir será analisado no mérito, se deferida a inicial, quando o juiz poderá decidir, mesmo, pela improcedência do pedido.

Demais disso tudo, releva ainda a lembrança de que a coisa julgada material é limitada pela causa de pedir que fundamenta juridicamente o pedido e que dispensa a legal.

À derradeira, há mais um ponto interessante que merece ser oportunamente enfrentado na esteira dessas considerações sobre causa de pedir.

É que, como já tratamos neste espaço virtual, a dimensão conferida pelo CPC à fundamentação foi hipertrofiada, migrando da noção de suficiente para exauriente, a teor, dentre outras normas, do multicitado artigo 489, § 1º, do CPC.

Com relação ao referido dispositivo, recebeu maior atenção da doutrina o inciso IV, que considera deficiente a fundamentação de decisão judicial que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.

A relação que há de ser estabelecida entre o aludido inciso e a causa de pedir reside no fato de que, no que tange ao autor, o principal elemento gerador de ônus argumentativo para o Juízo será, exatamente, o da fundamentação jurídica contida na petição inicial.

Dito de outro modo, é ao fundamentar juridicamente a pretensão que o autor erige argumentos que, capazes de influenciar a conclusão judicial, haverão de ser necessariamente enfrentados.

Daí por que é possível dizer que a fundamentação jurídica, para além de alicerce da pretensão, deve ser atualmente compreendida como potencial parâmetro de controle para aferição sobre a deficiência ou não da fundamentação da decisão judicial a ser futuramente proferida.

Natural, leitora, leitor, que de muitas das questões acima você provavelmente já soubesse. O importante, contudo, é — e desse propósito se imbuiu este escrito — estimular que, de quando em vez, (re)visitemos as bases de institutos processuais muito referidos, mas nem sempre muito bem compreendidos.

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1 Art. 508. Transitada em julgado a decisão de mérito, considerar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor tanto ao acolhimento quanto à rejeição do pedido

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Guilherme Pupe da Nóbrega é advogado. Especialista em Direito Constitucional e Mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor de Direito Processual Civil na graduação e na pós-graduação lato sensu do IDP. Coordenador do Grupo de Estudos "Instituições de Processo Civil" do IDP. Coordenador da disciplina de Processo da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal (ESA-OAB/DF). Autor de livro e artigos jurídicos.

Jorge Amaury Maia Nunes é advogado. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), onde lecionou a disciplina Direito Processual Civil na graduação e na pós-graduação stricto sensu. Diretor da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal (ESA-OAB/DF). Autor de livro e artigos jurídicos.