Guilherme Pupe da Nóbrega
A execução é atividade jurisdicional voltada para a satisfação de direito já reconhecido, seja por construção que culmina em decisão judicial, seja por atribuição legal de certeza, liquidez e exigibilidade a uma obrigação.
O rito que deverá reger a execução variará conforme se trate de título executivo judicial ou extrajudicial. Há, contudo, outras peculiaridades que terão o condão de repercutir no procedimento que levará a cabo a execução.
É esse o caso da execução de obrigação de pagar quantia certa direcionada contra a Fazenda Pública, modalidade especial de execução que se justifica, primordialmente, em razão do regime constitucional de precatórios (artigo 100 da Constituição)1, que impõe à Fazenda Pública forma diferenciada de pagamento judicial em razão (i) da indisponibilidade e da impenhorabilidade dos bens públicos; (ii) da isonomia e (iii) do necessário planejamento orçamentário.
Mais bem explicando, uma vez instada a pagar judicialmente um débito já reconhecido por decisão judicial ou dotado de liquidez, certeza e exigibilidade por força de lei, descabe à Fazenda Pública escolher ou não pagar ou que débitos pagar, notadamente à falta de dotação orçamentária para tanto. Não há espaço, tampouco, para que o ente Fazendário, não podendo realizar o pagamento espontaneamente, sofra constrição de patrimônio que, ao fim e ao cabo, é afetado ao interesse público e protegido constitucionalmente. Daí o regime de precatórios, que, por força, mesmo, de hierarquia normativa, subordina o regramento processual da execução de obrigação de pagar quantia certa contra a Fazenda Pública, para destacá-la da vala comum.
No Código de Processo Civil de 1973, a execução contra a Fazenda Pública era regulada pelos artigos 730 e 731, dispositivo imune à mudança implementada pela lei 11.232/2005, que introduziu o rito do cumprimento de sentença.
Isso quer dizer que, sob a égide do Código anterior, a execução de obrigação de pagar quantia certa contra a Fazenda Pública seguia, sempre, o rito da execução fundada em título extrajudicial, a exigir aviamento de petição inicial e nova citação, na contramão do sincretismo propugnado pelas minirreformas processuais levadas a cabo ao longo dos anos.
Com o CPC/2015, contudo, houve a cisão: a execução de obrigação de pagar quantia certa contra a Fazenda Pública fundada em título judicial passou a seguir o rito do cumprimento de sentença, regulado pelos artigos 534 a 535; a execução fundada em título extrajudicial, de sua vez, encontrou normatização no artigo 910.
Por força do § 3º do artigo 910, grande parte da execução fundada em título extrajudicial é regulada pelos dispositivos regentes do cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública, motivo por que nosso exame se concentra, à partida, no artigo 534.
Pois bem, o caput e os incisos do artigo 534 replicam o artigo 524 do CPC/2015, elucidando o que deverá constar do demonstrativo de cálculo do crédito exequendo. São duas, apenas, as diferenças: no cumprimento e na execução contra a Fazenda Pública somente é exigida a qualificação do exequente, dispensada a do executado; e é afastada, por certo, a possibilidade de indicação de bens penhoráveis, prevista no inciso VII do artigo 524. O § 1º do artigo 534 vai além para dispor que, em havendo mais de um credor-exequente, cada um deverá apresentar o seu próprio demonstrativo, sem prejuízo da possibilidade de limitação ao litisconsórcio multitudinário (§§ 1º e 2º do artigo 113) em prol da razoável duração do processo e da proteção ao contraditório e à ampla defesa, também titularizados pela Fazenda Pública.
O § 2º do artigo 534 consagra o que, para muitos, à luz da jurisprudência2, seria uma obviedade: não cabe contra a Fazenda Pública a multa de dez por cento pelo não-pagamento espontâneo no prazo de quinze dias a contar da intimação, prevista no artigo 523, § 1º. A aparente lógica reside no fato de que não poderia incidir nenhuma apenação contra a Fazenda Pública pela não-prática de um ato que não pode por ela ser praticado, dado o fato de o já mencionado regime constitucional de precatório submeter o pagamento judicial pelo ente Fazendário.
Há espaço, todavia, para que se defenda que mais bem resguardaria a isonomia, em lugar do afastamento indiscriminado da multa prevista no § 1º do artigo 523, a simples alteração do momento de sua incidência: em vez de prever o cabimento da multa a partir da intimação da Fazenda Pública, não haveria por que dispensá-la após o exaurimento do prazo constitucional previsto pelo artigo 100, § 5º, da Constituição, ou, em âmbito federal, quanto à requisição de pequeno valor, pelo artigo 17 da lei 10.259/2001 e agora, também, pelo artigo 535, § 3º, II, do CPC/2015. Não foi essa, contudo, a opção legislativa.
Indo além, especificamente no que tange ao cumprimento de sentença, o artigo 535 reitera a regra da intimação pessoal do representante judicial da Fazenda Pública para, querendo, no prazo de trinta dias, ofertar impugnação, em que poderá alegar (i) falta ou nulidade da citação se, na fase de conhecimento, o processo correu à revelia; (ii) ilegitimidade de parte; (iii) inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação; (iv) excesso de execução ou cumulação indevida de execuções; (v) incompetência absoluta ou relativa do juízo da execução; (vi) qualquer causa modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que supervenientes ao trânsito em julgado da sentença, vedada, por óbvio, a discussão a respeito de tudo que haja sido alcançado pela eficácia preclusiva da coisa julgada.
No que tange à execução fundada em título extrajudicial, vereda outra, a Fazenda Pública será citada para, também no prazo de trinta dias, opor embargos à execução, nos quais poderá alegar "qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de conhecimento", a teor do que enunciam o caput do artigo 910 e seu § 2º.
Questão importante, e que já foi objeto de nossos estudos neste espaço, mas que vale ser repisada, diz respeito ao excesso de execução como matéria alegada pela Fazenda Pública em impugnação ou em embargos.
O excesso de execução consta do inciso V do artigo 525 como matéria de impugnação e do inciso III do artigo 917 como matéria de embargos. Há o ônus para o impugnante/embargante, porém, de que seja indicado exatamente em que consiste o excesso (§ 4º do artigo 525 e § 3º do artigo 917).
Sob a égide do CPC/1973, a lei 11.382/2006, que introduziu a exigência de declinação do quantum no § 5º do artigo 739-A, se absteve de estendê-la aos embargos à execução contra a Fazenda Pública, regulados, no Código anterior, pelo artigo 741. Nasceu, a partir daí, o debate sobre a (in)aplicabilidade da exigência de indicação, na inicial, do quantum reputado correto quando o excesso de execução fosse fundamento de embargos opostos pela Fazenda Pública.
O tema foi enfrentado pelo STJ, que, em apelo afetado como paradigma (REsp 1.387.248-SC, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 7/5/2014), segundo o rito dos recursos especiais repetitivos, definiu, ao examinar a questão sob o prisma da impugnação ao cumprimento de sentença, que, fosse em razão da manutenção da redação do artigo 741 pela lei 11.382/2006, fosse em razão da indisponibilidade do interesse público, a exigência de indicação do valor reputado correto quando invocado o excesso de execução não alcançava a Fazenda Pública.
O entendimento esposado pelo STJ mereceu crítica da doutrina3. Sem embargo, o fato objetivo era que, no CPC/1973, por força de entendimento jurisprudencial consagrado, a Fazenda Pública estava imune à exigência de indicação do valor reputado correto quando invocasse, em embargos à execução, o excesso da execução.
No CPC/2015, porém, o § 2º do artigo 535 e o § 3º do artigo 910 são enfáticos ao impor à Fazenda Pública que, quando alegar, em impugnação, que o exequente, em excesso de execução, pleiteia quantia superior à resultante do título, declare de imediato o valor que entende correto, sob pena de não conhecimento da arguição.
Não impugnado o cumprimento de sentença ou não embargada a execução fundada em título extrajudicial contra a Fazenda Pública — ou, em havendo impugnação ou embargos, sendo esses rejeitados —, experdir-se-á, em favor do exequente, o precatório ou a requisição de pequeno valor, a depender do montante exequendo.
Um último registro, também já feito por esta coluna, diz respeito aos honorários em execução não embargada pela Fazenda Pública.
Nessa senda, é digno de elogio o § 7º do artigo 85, que andou muito bem ao condensar a interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal e pela doutrina ao artigo 1º-D da lei 9.494/1997 ("Não serão devidos honorários advocatícios pela Fazenda Pública nas execuções não embargadas").
Explica-se: no RE 420.186, o STF adotou interpretação conforme a Constituição para declarar a constitucionalidade do artigo 1º-D da lei 9.494/1997, afastando, contudo, a isenção de honorários da Fazenda Pública em execução não embargada em que se perseguisse débito definido em lei como sendo de pequeno valor4.
O raciocínio foi o de que o artigo 1º-D da lei 9.494/1997 se justificaria em razão da ausência de causalidade. A Fazenda Pública, por força do regime constitucional de precatórios, não teria a opção de efetuar, espontaneamente, o pagamento de crédito contra ela imposto por decisão judicial transitada em julgado. É dizer, a execução era passo necessário, e eventual causalidade a atrair honorários sucumbenciais somente nasceria supervenientemente, se opostos embargos à execução pela Fazenda, inaugurando-se nova relação processual na qual a verba honorária haveria de ser fixada.
Diversamente, créditos definidos como de pequeno valor foram postos a salvo do regime de precatórios, na forma do artigo 100, § 3º, da Constituição, e poderiam ser pagos espontaneamente, de sorte que a cobrança forçada pelo exequente derivaria de resistência injustificada da Fazenda, fazendo-se presente a causalidade ensejadora de honorários independentemente do aviamento de embargos.
A doutrina, bebendo na fonte desse raciocínio, foi ainda mais além, também afastando o artigo 1º-D da lei 9.494/1997 das execuções de obrigação de pagar quantia certa contra a Fazenda Pública fundadas em título extrajudicial, consoante fundamentos expostos por Leonardo Carneiro da Cunha:
Diversamente, quando há um título executivo extrajudicial que imponha ao Poder Público o pagamento de quantia certa, já há previsão orçamentária e rubrica específica para pagamento. Em outras palavras, ao firmar o contrato ou subscrever o documento que se encaixa na previsão contida no art. 585 do CPC, a Fazenda Pública já assumiu a dívida. Se não paga no prazo ajustado, está a dar causa ao ajuizamento da execução.
Em razão da causalidade, haverá honorários na execução fundada em título extrajudicial, ainda que não embargada e mesmo que seja necessária a expedição do precatório. Não se aplica, portanto, o disposto no art. 1º-D da lei 9.494/1997 nas execuções fundadas em título extrajudicial que não sejam embargadas5.
Como se extrai do texto acima, também na hipótese de execução de obrigação de pagar quantia certa, calçada em título extrajudicial que depende, para adesão pela Fazenda, de prévia previsão/disponibilidade de recursos, se faria presente a causalidade ensejadora de condenação em honorários sucumbenciais independentemente de embargos, pois, sendo possível o pagamento espontâneo, os ônus oriundos da necessidade de se ajuizar a execução haveriam de recair sobre a Fazenda.
Todo esse raciocínio, como adiantado, foi muito bem resumido pelo CPC/2015 em norma simples, singela, constante do artigo 85, § 7: "Não serão devidos honorários no cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública que enseje expedição de precatório, desde que não tenha sido impugnada"6.
Quando fala em "cumprimento de sentença", o dispositivo naturalmente afasta a execução autônoma fundada em título extrajudicial; quando fala em "que enseje expedição de precatório", é rechaçado o crédito de pequeno valor. Assim, o artigo 20, § 4º, do CPC/1973, que já havia sido derrogado pelo artigo 1º-D da lei 9.494/1997 — com todas essas ressalvas apontadas pelo STF e pela doutrina —, deu lugar ao § 7º do artigo 85 no CPC/2015, norma que congrega de forma simples todo o raciocínio antes exposto.
São essas breves considerações a respeito da execução contra a Fazenda Pública no CPC/2015.
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1 Vale o registro de que os débitos considerados de pequeno valor escapam ao regime de precatórios, consoante dispõem o § 3º do artigo 100 da Constituição e a Instrução Normativa 3/2006 do Superior Tribunal de Justiça.
2 Ilustra o entendimento o acórdão proferido pelo STJ no REsp 1.201.255.
3 CUNHA, Leonardo Carneiro da. Execução contra a Fazenda Pública. Exceptio declinatoria quanti. Entendimento do STJ de que a Fazenda Pública não se sujeita ao ônus da indicação do valor quando alegar excesso de execução.
4 "(...) IV. Fazenda Pública: execução não embargada: honorários de advogado: constitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal, com interpretação conforme ao art. 1º-D da L. 9.494/97, na redação que lhe foi dada pela MP 2.180-35/2001, de modo a reduzir-lhe a aplicação à hipótese de execução por quantia certa contra a Fazenda Pública (C. Pr. Civil, art. 730), excluídos os casos de pagamento de obrigações definidos em lei como de pequeno valor (CF/88, art. 100, § 3º)". RE 420816, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 29/09/2004, DJ 10-12-2006 PP-00050 EMENT VOL-02255-04 PP-00722.
5 Vale a leitura do texto.
6 Quiçá o único reparo que pudesse ser feito no parágrafo fosse para nele incluir o que disposto na Súmula 345/STJ ("São devidos honorários advocatícios pela Fazenda Pública nas execuções individuais de sentença proferida em ações coletivas, ainda que não embargadas"), que, inobstante a omissão, remanesce válida aplicável.