Processo e Procedimento

A clássica teoria geral do processo e o novo CPC - A arbitragem cabe no conceito de jurisdição?

A clássica teoria geral do processo e o novo CPC - A arbitragem cabe no conceito de jurisdição?

24/5/2016

Jorge Amaury Maia Nunes


Continuamos a conversa de terça passada. Hoje, o objeto de nossa preocupação é tentar verificar a natureza jurídica da arbitragem, como preocupação da Teoria Geral do Processo, em decorrência da popularidade que esse método de solução de controvérsias alcança entre os estudiosos do Direito, já pela edição do novo código de processo civil, já pelo reconhecimento do esgotamento do método estatal de distribuição da justiça.

Para que não haja dúvida sobre nosso entendimento, convém assinalar, de logo, que somos admiradores de todas as tentativas que se façam no sentido de criação de técnicas que possam auxiliar na solução de controvérsias sociais, individuais ou coletivas, e, dessa maneira, neutralizar as decepções daqueles que têm a necessidade de recorrer a terceiros para solução de suas diferenças.

Isso não nos exime, porém, de sindicar a natureza jurídica do fenômeno arbitragem, quando por outro motivo não seja, para entender quais princípios jurídicos lhe são aplicáveis.

Parece que a doutrina atual tende a construir o entendimento de que a arbitragem insere-se no conceito de jurisdição1, refutando a ideia de que seria apenas um sucedâneo jurisdicional, entendimento até então prevalecente.

Para os arautos desse entendimento, o fato de a arbitragem (i) ter origem contratual; e (ii) ser dirigida por quem não detém poder de império, não descaracteriza a natureza jurisdicional do ato que pratica porque (i) pode haver jurisdição sem império; (ii) é desnecessária a homologação judicial da sentença arbitral, que é título judicial apto a produzir coisa julgada material.2

Já escrevemos em outros momentos, aqui neste espaço, que os conceitos jurídicos não possuem nenhuma essencialidade e que podem mudar ao sabor das contingências históricas. Escrevemos, também, amparados em Calmon de Passos, que é necessário ao jurista o uso de conceitos claros, de linguagem precisa, como forma de legitimar o Direito como ciência.

Cumpre-nos, pois, investigar esse novo conceito sobre a prática da arbitragem, em si muito antiga. Para tanto, e porque são utilizados, pelos arautos da jurisdicionalidade conceitual da arbitragem, expressões hauridas do Direito Romano (jurisdictio e imperium), é necessário fazer um pequeno percurso histórico.

Do latim, jurisdictio (jus dicere), jurisdição é a função ou atividade estatal de (i) resolver conflitos de interesses entre partes privadas ou entre essas e o poder público ou (ii) remover obstáculos legais, impostos ao agir das partes e que somente pelo Estado possam ser removidos.

Dessa primeira aproximação, alguns apanhados devem ser tirados e outras tantas explicações passam a ser devidas. Primeiro, o termo jurisdição é em si plurívoco: ora significa poder, ora dever, ora função, ora atividade, ora, ainda, território no qual 3esse poder/dever/função/atividade é exercido.

Para os cultores do direito processual civil, não existem, ou não existiam, muitas dúvidas de que a jurisdição é uma das formas de manifestação do poder soberano do Estado, que também se expressaria por meio do poder administrativo e do poder legislativo. O exame do conceito relativo a esses dois últimos poderes não é, agora, objeto de nossa preocupação. Isso, entretanto, não torna desnecessária uma abordagem prévia do conceito de jurisdição, dado que a distinção entre esses poderes do Estado somente surge com a concepção de Estado moderno, melhor dizendo, com as formulações sobre separações de poderes creditados a John Locke (1690) e Montesquieu (1748)4.
Deveras, o fenômeno da jurisdição é muito anterior ao advento do conceito de estado moderno e, para os estudos da chamada civilização ocidental, interessa o seu estudo a partir do Direito Romano, embora, já no Código de Hamurabi, seja encontrado o dever de julgar e a forma como dele deve desincumbir-se o julgador.

A jurisdição no Direito Romano há de ser compreendida sempre tendo em consideração o momento histórico de que se cogita. É que, quando se fala em direito romano, fala-se em catorze séculos (mil e quatrocentos anos) de história, período no qual a sociedade romana passou por importantes e fortes transformações, tornando-se, de um simples conjunto de tribos, de pouca expressão, em um império que se alastrou por toda Europa e pelo Oriente, daí resultando em uma sociedade extremamente complexa, que tinha que lidar com as peculiaridades de diversas comunidades que foram integradas ao vasto império.

É importante, na medida do possível, ter presente o Direito Romano de acordo com o seu tempo. Vale, como aproximação inicial, a advertência de Charles Mainz:

Convém evidenciar, de logo, que o que normalmente chamamos poder judiciário não existia na Roma antiga como um poder separado.

No princípio, o rei, único magistrado do povo, tinha tanto atribuições administrativas como atribuições de fazer justiça. Depois, essas atribuições passaram aos cônsules e ao pretor urbano, que se tronou um magistrado regular desde 387 (AuC). Limitado seu imperium à cidade de Roma. Os magistrados municipais podiam dizer o direito (ius dicere), mas não detinham imperium.

Assim, terminou-se por distinguir os magistrados que possuíam imperium com iurisdictio (imperium mixtum) e os magistrados que possuíam imperium desprovido de iurisdictio, chamado potestas ou imperium merum. (tradução livre)

Identificam-se, pelo menos, três grandes períodos do direito romano: o período das ações da lei (ou das legis actiones); o período formulário (ou per formulas) e o período da extraordinaria cognitio. Para os fins de nossa investigação, é muito importante anotar que os dois primeiros períodos compuseram, por assim dizer, um sistema especial, conhecido como ordo judiciorum privatorum, ou sistema da ordem jurídica privada, pelas razões que logo serão percebidas com a simples leitura dos dois próximos parágrafos.

É certo dizer que, nos primeiros tempos, a contar da fundação de Roma em 754 a.C., o direito era extremamente simples, o processo era completamente oral, tendo as partes em litígio de pronunciar certas palavras sacramentais que correspondiam à ação que estavam propondo, sempre na presença de testemunhas (até para permitir a continuidade da tradição oral), e se dividia em duas fases: (i) in jure, que se passava perante um magistrado, um funcionário do “Estado”, na presença do qual, após a realização daquela espécie de liturgia, o magistrado concedia ou não a ação, estabelecendo-se a litiscontestatio, uma espécie de compromisso que as partes firmavam de aceitar a decisão que viesse a ser prolatada, sobre o objeto do litígio que, daí em diante, não mais podia ser modificada; (ii) encerrada essa fase, começava outra, a fase in judicio, ou apud judicem, perante um juiz privado (isto é, um cidadão comum, que não era funcionário do Estado), o iudex ou arbiter, que era realmente quem se manifestava sobre a causa, proferindo a sua sententia, declarava o que sentia a respeito do problema que lhe fora levado. Esse era o período das legis actiones ou período das ações da lei, que eram em número de cinco (Sacramentum; judicis postulatio; condictio; manus injecito e pignoris capio).

No segundo período, o chamado período formulário, que tem início com a edição da Lex Aebutia (provavelmente em 149 a.C.)5, também havia a divisão em duas fases, sendo que, nesse período, as ações da lei, essencialmente formalistas e teatrais, são substituídas pela fórmula, construída pelo magistrado para aquele específico caso concreto — a rigor, o autor escolhia a fórmula que mais se ajustava ao seu caso no album fornecido pelo magistrado. A fórmula era, pois, escrita. Aqui, também, se o réu não reconhecesse de logo o direito do autor, o magistrado remeteria as partes ao juiz privado, estabelecendo-se a listiscontestatio, que é a aceitação da fórmula pelas partes em litígio. Nesse período, e no anterior, o iudex, que somente dizia o direito, não possuída o chamado ius imperii.

No terceiro período, chamado de período da cognitio extra ordinem, elimina-se a divisão in jure e in judicium (acabando, pois, o sistema da ordem jurídica privada). Aqui, o magistrado é um funcionário do Estado que passa a presidir a todos os atos processuais e, também, a julgar a causa, isto é, a proferir sentença. Esse tipo de atividade jurisdicional institucionalizou-se, tornou-se regra, somente após o advento da chamada era cristã, especificamente a partir do século III, quando foi abolido o processo per formula.

Em outras palavras, nesse período, a jurisdição implicava o poder de julgar, conferido ao magistrado e, também, o poder de fazer cumprir o seu julgado. Com efeito, é nesse período que surge a execução pública, estendendo-se a execução ao poder dos magistrados.

A rigor, a magistratura era exercida, em primeiro lugar, pelo imperador, que tinha poderes para decidir não só originariamente, como também em segunda instância (é nesse período que surge a appellatio), pelos praefectus urbi e pelos Governadores das Províncias. Esses últimos, por sua vez, poderiam nomear Judicies pedanei quando seus afazeres não lhes permitissem julgar pessoalmente as demandas que lhes fossem submetidas.

Com esse desenho é que a jurisdição ingressa conceitualmente na Idade Média, mas é com o advento do Estado Moderno, mais bem diria, com o advento do Estado Constitucional, que surge a necessidade de admitir a jurisdição como forma de manifestação do poder estatal. Tem-se admitido, contudo, que o Constitucionalismo moderno é fruto do pensamento do final do século XVII e dos acontecimentos políticos da centúria subsequente: a independência dos Estados Americanos e a Revolução Francesa, neste caso, a divulgação das ideias de Locke, naquele. Em todos os Estados, desde então, se tem a função jurisdicional como um atributo do poder público.
Votemos um pouco: desde que fixado o conceito de jurisdição com base nos estudos que fizemos dos três períodos do Direito Romano, podemos dizer que são estes os elementos da jurisdição:

Notio, que é a aptidão que o Estado confere ao magistrado, como seu representante (rectius, como representante do poder político), para conhecer de determinadas causas, que lhe sejam submetidas a exame.
Vocatio, que corresponde ao poder de fazer vir a juízo qualquer cidadão que possa, de alguma forma, colaborar para firmar o convencimento do magistrado em relação a determinado processo.
Coertio, que corresponde ao poder de fazer-se respeitar como membro do poder judiciário, como representante de um Poder do Estado e de reprimir condutas ofensivas ao exercício da jurisdição.
Iudicium, consequência natural do conceito de notio, é o poder de julgar, de decidir sobre a lide posta a seu exame.
Imperium, o poder de fazer cumprir a sua decisão (específico para o período da cognitio extraordinária).

Presentes esses elementos, é possível tentar verificar se há diferenças entre jurisdição e arbitragem sendo certo que o Estado Constitucional (e as constituições dos Estados ocidentais parecem placitar o que afirmamos) em que o direito é de tradição romano-germânica, recebeu o conceito de jurisdição adotado durante a terceira fase Romana, i.e., após a exaustão do período da ordem jurídica privada.

Essa a nossa matriz constitucional. É inconcebível o Estado Moderno sem o seu atributo da função jurisdicional e sem o poder de fazer cumprir suas próprias decisões.

O que os defensores do caráter jurisdicional da arbitragem preconizam e uma espécie de movimento palingenésico que autorize o retorno do Estado moderno ao ordo iudiciorum privatorum (período da ordem jurídica privada) ao iudex que somente dizia o direito, que não podia fazer cumprir o seu dito, porque desprovido de imperium.

Jamais esquecido da estatura constitucional da jurisdição, seria importante lembrar dois princípios que lhe são inerentes: (i) o da inevitabilidade, significando que a nenhum jurisdicionado é permitido furtar-se ao poder jurisdicional. Qualquer cidadão pode um dia situar-se na condição de autor ou réu. Nessa condição, sujeitar-se-á ao que vier a ser decidido de forma definitiva pelo Poder Judiciário; (ii) o da inafastabilidade, decorrente de expressa dicção constitucional, encartada no art. 5º, XXXV, da Carta Política, que soa, in verbis: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Desnecessário dizer, para nós, que o princípio da inafastabilidade tem como destinatário o legislador. Sem embargo disso, em alguns manuais de Teoria Geral do Processo, esse princípio vem confundido com outro princípio, o da indeclinabilidade, que tem como destinatário o magistrado, impedindo que ele se furte ao dever de julgar (o que era possível no Direito Romano do período das ações da lei e período formulário, em que o juiz, por ser um cidadão comum, um particular, poderia pronunciar o famoso non liquet e recusar-se a proferir sentença). Mesmo que entenda haver lacunas no ordenamento jurídico, o magistrado deve julgar, valendo-se de formas de integração/interpretação, como os costumes, aplicação de princípios gerais e a analogia.

Esses dois princípios (aliados ao do juiz natural) mais do que quaisquer outros dão a dimensão da jurisdição.

Não basta, pois, para fixar a ideia de jurisdicionalidade, buscar características geradas na lei ordinária (aliás, muito recentemente), tais como dizer que a decisão arbitral faz coisa julgada ou é título executivo judicial.

A arbitragem é contratual, pode reger-se pela confidencialidade (diferentemente da jurisdição que se rege pelo princípio da publicidade e, sobretudo, não lhe cabe a aplicação do princípio da inevitabilidade.

Assim, embora seja muito bem-vinda ao cenário jurídico, com nova força, a arbitragem é e deve continuar a ser um meio alternativo de solução de controvérsias.

______________

1 Registre-se que, há mais de uma década, já havia trabalhos nesse sentido. Ver, por todos, VINÍCIUS DE ANDRADE PRADO. JURISDIÇÃO: LIMITES PARA SUA ATUALIZAÇÃO CONCEITUAL EM FACE DA ARBITRAGEM. 2005. Monografia. (Aperfeiçoamento/Especialização em PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL) - UDF

2 Nesse sentido, Leonardo carneiro da Cunha, Fred Didier, Humbereto Theodor Junior, etc.

3 Temos extrema dificuldade em aceitar que as atividades/funções estatais possam ser reduzidas a somente essas três modalidades. Cremos mesmo que essa divisão tricotômica dos poderes estatais decorre mais de uma espécie de acomodação acadêmica dos cientistas políticos do que propriamente da real configuração do Estado dos tempos atuais.

4 Negando-se crédito às afirmações de que Aristóteles na sua Política tenha concebido (com a teoria das constituições mistas) alguma forma de divisão de poderes ou de funções constitucionais.

5 Cours de Droi Romain, Charles Mainz, cinquième Édition, tome premier Paris: A. Durand &Pedone-Lauriel, 1891, pp. 484 e segs.

6 Vale registrar que a Lex Aebutia não abrogou totalmente o sistema das ações da lei, o que somente veio a ocorrer com a edição das leis Júlias, em 737 a.u.c.

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Guilherme Pupe da Nóbrega é advogado. Especialista em Direito Constitucional e Mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor de Direito Processual Civil na graduação e na pós-graduação lato sensu do IDP. Coordenador do Grupo de Estudos "Instituições de Processo Civil" do IDP. Coordenador da disciplina de Processo da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal (ESA-OAB/DF). Autor de livro e artigos jurídicos.

Jorge Amaury Maia Nunes é advogado. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), onde lecionou a disciplina Direito Processual Civil na graduação e na pós-graduação stricto sensu. Diretor da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal (ESA-OAB/DF). Autor de livro e artigos jurídicos.