Processo e Procedimento

Direito intertemporal e lei processual no tempo: anotações sobre o (ainda) novo Código que desponta no alvorecer de sua aguardada vigência

Direito intertemporal e lei processual no tempo: anotações sobre o (ainda) novo Código que desponta no alvorecer de sua aguardada vigência.

15/3/2016

Guilherme Pupe da Nóbrega

Tempus fugit.

Ainda ontem era aprovado o Código de Processo Civil de 2015, com sua vacatio legis de um ano. O período foi intenso, de muitos estudos buscando desvendar a nova lei. Apenas de nossa parte, foram prazerosamente produzidos, nesta coluna, mais de três dezenas de escritos voltados para a investigação das principais mudanças promovidas pelo novel Codex.

Falharam as previsões de que a vacatio poderia ser elastecida. Foi definida a data a partir da qual entra em vigor o novo Código. Tudo acertado. Tudo pronto para receber a nova lei que já se avizinha, acomodando-se na sexta-feira, dia 18, preparada para produzir seus primeiros efeitos.

Dúvidas naturalmente surgirão, mas o sistema busca em si mesmo os ajustes necessários. Não foi a primeira e nem será a última mudança legislativa em matéria processual e haveremos, todos, de a ela sobreviver.

Há ponto relevante, nada obstante, a merecer nosso exame às vésperas da entrada em vigor do CPC/15: na iminente migração entre sistemas, como se dará o diálogo entre normas, notadamente no que diz respeito aos processos atualmente em curso? É saudável e necessário o convívio do velho com o novo, mas como ele se dará? É com essas perguntas que efetivamente principiamos a nos imiscuir no objeto de estudo que inspirou este texto.

A máxima tempus regit actum há muito se fez presente na Lex antiqua Visigothorum, de 466-484, no Breviário de Alarico, de 506, e, entre nós, no parágrafo 8 do título 13 do Livro IV das Ordenações Filipinas. Se a regra é antiga, igualmente velhas, sem embargo, são as exceções que a flexibilizaram ao longo da História, havendo exemplo de retroatividade de normas desde, pelo menos, o Século IV, como ilustram a Constituição de Constantino, de 320, de Teodósio II, de 24, e de Valentiniano III, de 426.1 O que se está a dizer, em melhores palavras, é: “Normalmente as leis dispõem para o futuro, não olham para o passado. Lex prospicit, non respicit. Em consequência, os atos anteriores à vigência da lei nova regulam-se não por ela, mas pela lei do tempo em que foram praticados. Tempus regit actum. Entretanto, algumas leis afastam-se excepcionalmente dessa regra e retrocedem no tempo, alcançando fatos pretéritos ou os seus efeitos. Tais leis chamam-se retroativas."2

É equilibrando-se na tênue linha que separa a regra das exceções a que se aludiu no parágrafo anterior que avulta o direito intertemporal, verdadeiro sobredireito a regular a aplicação da lei no tempo, formulando regras “segundo as quais o aplicador se informa quando o efeito imediato da lei não envolve uma atuação retrooperante”. As normas de direito intertemporal servem em seu desiderato, portanto, de norte para o “intérprete na conciliação daqueles dois cânones fundamentais do ordenamento jurídico, que são a lei do progresso e o conceito de estabilidade das relações humanas."3

A respeito do direito intertemporal e de sua aplicabilidade às normas processuais, mais especificamente, Moacyr Amaral Santos4 dividiu em três os sistemas a regular a eficácia da lei no tempo.

O sistema da unidade processual se arrima na premissa de que, sendo o processo um “complexo de atos inseparáveis uns dos outros”, deve ele ser considerado, mercê dessa imbricação, em sua inteireza, somente podendo a ele aplicar-se uma mesma lei, do seu início até o seu fim, ainda que nesse interregno ocorram alterações legislativas.

O sistema das fases processuais, de sua vez, secciona o processo em etapas distintas (postulatória, probatória, decisória e recursal). Sendo, cada uma dessas etapas, um módulo mais ou menos autônomo do processo, seria possível restringir a aplicação da lei processual mais moderna às fases subsequentes, mantida a regulação pela lei antiga à fase em curso no momento da alteração.

O sistema do isolamento dos atos processuais, por fim, respeita os atos processuais já realizados, somente aplicando a lei processual nova àqueles atos processuais vindouros, a ser praticados sob a égide do novo diploma.

Como é possível notar, todos os sistemas são refratários à retroatividade da lei processual mais moderna. A diferença reside na extensão da ultra-atividade da lei anterior.

Tradicionalmente, nosso ordenamento consagra o sistema do isolamento dos atos processuais, merecendo lembrança, nesse particular, o Código de Processo Civil de 1939 e as normas específicas de direito intertemporal constantes de seus artigos 1.047 e 1.048.5

Incursionando no disposto no artigo 1.047, § 2º, em especial, Pontes de Miranda aduziu que, da sentença irrecorrível segundo a lei anterior, caberia o recurso instituído pela lei nova se ainda não findo o prazo; da sentença recorrível segundo a lei anterior, cujo recurso correspondente houvesse sido eliminado pela lei nova, não mais caberia recurso, ainda que em curso o prazo para a interposição. Assim se dava, segundo o mestre, em razão da existência de norma específica, mencionada acima, e da ausência de disposição a respeito da irretroatividade da lei no bojo da “Constituição, despótica,” de 1937.

O CPC/1973, lado outro, e à luz do artigo 153, § 3º, da Constituição de 1967/696, eliminou a regra antes inserta no aludido § 2º do artigo 1.047 do Código de 1939. Daí, novamente, a lição de Pontes de Miranda ao comentar o artigo 1.211 do CPC/1973: “quanto a recurso que podia ser interposto conforme o direito anterior, e não mais existe ou mudou no direito de agora, tinha de ser exercido o direito recursal no prazo conforme o direito anterior: só deixou de existir à expiração do prazo. A lei nova não pode retroagir. (...) Enquanto a relação jurídica não se estabelece, ou não se extingue, a lei nova pode intervir.”7

O ponto específico abordado acima, atinente aos recursos, serve para bem ilustrar premissa de especial destaque: a ultra-atividade da norma anterior se presta, em hipóteses determinadas, a prestigiar a irretroatividade da norma posterior, protegendo atos processuais que, a despeito de praticados sob vigência da lei nova, são extensão, efeito ou consequência de atos originados sob o pálio da lei anterior.

Nessa senda, a atividade do juiz se apresenta, excepcionalmente, não como declarativa, mas como constitutiva8, erigindo direitos emanantes da relação jurídico-processual. Assim é que determinado ato jurídico não se considera perfeito quando faz surgir situação que ostenta potencial a desdobrar, no plano jurídico, consequências e efeitos outros para além do ato original.
“O direito adquirido é o limite normal do efeito imediato; noutras palavras, as novas leis, ainda quando não expressas, aplicam-se às partes posteriores dos facta pendentia, ressalvado o Direito Adquirido. Já com relação à retroatividade, ela nunca existe, a não ser quando expressa; mas ainda quando tal se dá, resta como limite o Direito Adquirido.”9 Até por força de disposição constitucional inserta no artigo 5º, XXXVI, da Constituição, situações processuais constituídas sob a vigência da lei anterior são inatingíveis pela lei processual nova. 10 e 11


É nesse sentido a disposição contida no artigo 6º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.”

A jurisprudência se dá nesse mesmo sentido. Acórdão do Supremo Tribunal Federal12 que versou a respeito do marco temporal a partir do qual se passou a exigir a preliminar de repercussão geral nos recursos extraordinários e, bem assim, acórdão mais recente da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça13 sobre o assunto convergem para o entendimento de que a lei a regular o recurso é aquela do momento da publicação da decisão recorrível.

A toda evidência, a ultra-atividade exsurge, pois, como proteção de desdobramentos oriundos de situações jurídicas iniciadas na lei anterior, fazendo com que essa invada, com seu âmbito de vigência material, o âmbito de vigência temporal da lei nova.

Pois bem. O CPC/15 previu normas específicas de direito intertemporal em seus artigos 1.046, §§ 1º e 5º, 1.047, 1.054, 1.056 e 1.057. Releva investigar as hipóteses em que se omitiu o legislador.

Galeno Lacerda14 dedicou obra oportuna ao exame minucioso do direito intertemporal à luz do então recente CPC/1973. Valorosas iniciativas já se divisam a esse respeito em relação ao CPC/15.15

De nossa parte, até para não desvirtuar o propósito desta coluna, que tem na objetividade de seus textos um de seus traços marcantes, preferimos — antes, ambicionamos! — enunciar máximas a partir das premissas antes fixadas que, quiçá, sejam capazes de guiar o operador do direito na busca pelas respostas às perguntas com que poderão deparar-se a partir da iminente entrada em vigor do CPC/15. Ei-las:

(i) o CPC/15 adotou em seu artigo 1.046 o sistema de isolamento de atos processuais, segundo o qual suas normas hão de ser aplicadas aos feitos em curso, vedada a retroatividade da lei por imposição constitucional que encontra morada no artigo 5º, XXXVI;

(ii) funcionando a ultra-atividade como proteção ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido, a norma processual punitiva, que poderá retroagir para apenar ou agravar a pena imposta a ato praticado sob a égide da lei anterior (exemplo: a elevação do limite mínimo da multa imposta em razão de embargos de declaração protelatórios de 1%, como previa o artigo 538, parágrafo único, do CPC/1973, para 2% do valor da causa, como prevê o artigo 1.026, § 2º, do CPC/15, não alcança os aclaratórios opostos antes da entrada em vigor do novo Código);

(iii) funcionando a ultra-atividade como proteção ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido, quando se cuidar de ato processual praticado como consectário de ato processual anterior, e entre eles sobrevindo a vigência do CPC/15, a lei que regulará a prática daquele será a do tempo do ato processual que o ensejou (exemplos: [iii.i.] proferida e publicada, sob a vigência do CPC/1973, decisão interlocutória indeferindo a produção de prova testemunhal, caberá agravo retido ainda na superveniência do CPC/15, isto é, a publicação da decisão recorrível é o marco processual identificador da lei regente do recurso e de sua admissibilidade; ainda, [iii.ii.] a resposta do réu em razão de citação ocorrida sob a égide do CPC/1973 continuará a contemplar as exceções e reconvenção em apartado no regramento que lhes confere o Código anterior; de igual maneira,

[iii.iii] no que toca à execução, fundada em título judicial, de obrigação de pagar quantia certa contra a Fazenda Pública, a resposta a ser apresentada, se embargos à execução ou impugnação — lembrando que a execução de obrigação da pagar quantia certa fundada em título judicial contra a Fazenda passa a ser incidental, pelo rito do cumprimento —, dependerá da lei vigente à época da citação, se no CPC/1973, ou da intimação, se no CPC/15);

(iv) no caso de efeitos pendentes de ato processual praticado segundo o CPC/1973, a eficácia do Código anterior se protrai no tempo até o exaurimento daqueles efeitos (exemplo: os prazos cuja contagem haja se iniciado à luz do CPC/1973 continuarão a ser contados segundo esse diploma, considerados os dias não-úteis; de igual sorte, o raciocina imuniza a contagem dos prazos contra sua eventual majoração ou minoração pela lei nova).

Sem a pretensão de exaurir tema tão complexo, são essas algumas diretrizes que propomos na aplicação do CPC/15, que se faz notar na esquina desta semana.

___________

*Não podemos deixar de agradecer a João Pereira de Andrade Filho, Rhuan Rafael Lopes de Oliveira e Rafael de Matos Gomes da Silva pelas ideias trocadas ao longo do processo de elaboração deste texto.

1 MIRANDA. Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo XVII (Arts. 1.211-1.220). Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 20-21.

2 PEIXOTO, José Carlos de Matos. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Editorial Peixoto, 1943, p. 212-213.

3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 132-133.

4 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 1º Vol. 7ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 31-32.

5 Art. 1.047. Em vigor este Código, as suas disposições aplicarse-ão, desde logo, aos processos pendentes.

§ 1º As ações cuja instrução esteja iniciada em audiência serão processadas e julgadas, em primeira instância, de acordo com a lei anterior, salvo quanto ás nulidades.

§ 2º Este Código regulará a admissibilidade dos recursos, sua interposição, seu processo e seu julgamento, sem prejuizo dos interpostos de acordo com a lei anterior.

Art. 1.048. Os prazos assinados correrão segundo a lei anterior; os de remessa e preparo dos feitos obedecerão, todavia, ao que dispuser este Código e do dia da sua entrada em vigor se contarão, salvo si o tempo decorrido for de mais de metade.

6 Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes: (...)

§ 3º A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

7 MIRANDA. Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo XVII (Arts. 1.211-1.220). Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 10-11 e 28.

8 ROUBIER, Paul. Le droit transitoire (conflits des lois dans le temps). 2 edition. Paris: Éditions Dalloz et Sirey, 1960, p. 545.

9 FRANÇA, Rubens Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 202.

10 PRATA, Edson. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. VII. Arts. 1.103 a 1220. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 374-376.

11 CASTRO FILHO, José Olympio de. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. X. Arts. 1.103 a 1.220. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 330.

12 QO no AI 664.567, Rel. Min. SEPULVEDA PERTENCE, Pleno, DJ de 6.9.2007.

13 “Quanto ao mais, impende registrar que, em observância ao princípio tempus regit actum, o recurso será regido pela norma em vigor ao tempo da publicação da decisão impugnada.” EDcl nos EREsp 1313870/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, Corte Especial, DJ de 1.7.2013.

14 LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974.

15 Ainda que não se concorde com a integralidade das conclusões apresentadas, merecem registro dois valorosos trabalhos que serviram de referência para este escrito: (i) os enunciados 267, 268, 275, 295, 308, 311, 341, 355, 356, 365, 366, 367, 399, 424, 449, 463, 466, 476, 477, 479, 493, 527, 528, 539, 564, 567, 568 e 569 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, disponíveis em clique aqui; e (ii) escrito de André Vasconcelos Roque, disponível em clique aqui.

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Colunistas

Guilherme Pupe da Nóbrega é advogado. Especialista em Direito Constitucional e Mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor de Direito Processual Civil na graduação e na pós-graduação lato sensu do IDP. Coordenador do Grupo de Estudos "Instituições de Processo Civil" do IDP. Coordenador da disciplina de Processo da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal (ESA-OAB/DF). Autor de livro e artigos jurídicos.

Jorge Amaury Maia Nunes é advogado. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), onde lecionou a disciplina Direito Processual Civil na graduação e na pós-graduação stricto sensu. Diretor da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal (ESA-OAB/DF). Autor de livro e artigos jurídicos.