Guilherme Pupe da Nóbrega
Depois de tecer considerações a respeito dos artigos 1º a 6º do novo Código de Processo Civil (lei 13.105/15)1, retomamos nossa explanação com uma abordagem conjugada dos artigos 7º, 9º e 10, que tratam do contraditório.
Direito fundamental inserto no artigo 5º, LV, da Constituição, o contraditório, por algum tempo, foi enxergado apenas como direito das partes à bilateralidade da audiência, nota essa que remanesce presente no CPC/15 e que é ilustrada pela previsão expressa de que o aditamento do pedido ou da causa de pedir pelo autor confere ao réu o direito de se manifestar e de requerer produção de prova suplementar (artigo 329, II) e pela positivação de entendimento jurisprudencial consolidado no sentido de que embargos de declaração com pretensão infringente ensejam a oitiva da parte embargada (artigo 1.023, § 2º).
O CPC/15, nada obstante, coroa o ápice de um processo de gradativa hipertrofia do contraditório, que tem na adequada informação à parte e na oportunização de sua manifestação instrumentos-meio para seu verdadeiro fim, que é a possibilidade real e efetiva de influenciar a decisão que haverá de ser tomada2 — bem representam essa evolução para um contraditório substancial no CPC/15 a possibilidade de o juiz dilatar prazos com vistas à preservação do contraditório, prevista nos artigos 139, VI, e 437, § 2º, e a necessidade da observância do “contraditório efetivo” como pressuposto para que questão prejudicial decidida seja alcançada pela coisa julgada material, na forma do artigo 503, § 1º, II.
A leitura do contraditório, tal qual exposta acima, sofistica-se ainda mais conforme desenvolvemos o raciocínio a seu respeito. Isso porque, pressupondo o contraditório efetivo, substancial, a capacidade de a parte influenciar a decisão, a conclusão lógica há de ser no sentido de que inexistirá poder de influência sempre que a decisão for proferida à revelia das partes, surpreendendo-as.
Se é basilar que a trazida aos autos de elemento novo, fático ou jurídico, por uma das partes assegura à outra o direito de manifestar-se, não deveria soar estranho que o juiz, igualmente sujeito do processo, deva oportunizar às partes manifestação acerca de ponto novo ou que, ainda que não se cuide de inovação, lhe haja escapado à percepção, embora repercuta na decisão.
Disso deflui que, na equação que resulta no contraditório como direito de efetivamente influenciar a decisão judicial, se a reação é ônus da parte, a adequada informação é dever judicial para que daquele ônus a parte tenha condições de se desincumbir, o que será impossível se for ela pega de surpresa. Daí as normas insertas nos artigos 9º e 10, que concernem à vedação a que as partes sejam surpreendidas por decisões a respeito das quais não tenham tido poder de previamente se manifestar a respeito e que impõem ao juiz o dever de consulta prévia.
A vedação às decisões-surpresa como corolário do contraditório não é propriamente uma invenção brasileira, encontrando inspiração nos Códigos de Processo Civil alemão (139, 2), italiano (artigos 101 e 183), português (artigo 3º, 3) e francês (artigo 16). Diferentemente do direito alienígena, porém, o CPC/15 trouxe em seu bojo não apenas uma regra geral, mas uma profusão de dispositivos impondo o dever de informação e de consulta às partes: além dos artigos 9º e 10, cuja observância é estendida aos tribunais pelos artigos 927, § 1º, e 933, há a necessidade de prévia advertência para imposição de sanção por ato atentatório à dignidade da jurisdição (artigo 77, § 1º) — exigência essa estendida ao processo de execução (artigo 772, II) —, informação a respeito da eventual inversão do ônus da prova previamente à instrução (artigo 373, § 1º) e imperiosa oitiva das partes diante da constatação oficiosa de fato superveniente suscetível de influenciar no julgamento (artigo 493, parágrafo único).
Naturalmente, há exceções. O próprio artigo 9º põe a salvo da necessidade de consulta prévia as hipóteses de tutela provisória liminar, seja de urgência, seja de evidência (quanto a essa última, apenas nos casos dos incisos II e III do artigo 311), além, ainda, da situação prevista no artigo 701, que não passa, em verdade, de mais outro caso de tutela da evidência, embora não constante do artigo 311.
Há, ademais, ressalvas outras, além daquelas constantes dos incisos do artigo 9º. É o caso da liminar em ação de reintegração ou de manutenção de posse (artigo 562), espécie de tutela de urgência, e das sentenças de indeferimento liminar da inicial (artigo 330) ou de improcedência liminar do pedido (artigo 332), hipóteses em que o contraditório do réu é inútil, porque a decisão lhe favorece (como também ocorre no artigo 932, IV em relação à parte recorrida), e o contraditório do autor fica diferido para eventual recurso de apelação, diante do qual haverá possibilidade de retratação judicial (artigos 331 e 332, § 2º, respectivamente). Ainda merece menção a existência de exceções fora do CPC/2015 (liminar em mandado de segurança, na forma do artigo 7º, III, da lei 12.016/2009, e liminar em ação de despejo, prevista no artigo 59, § 1º, da lei 8.245/1991, por exemplo).
A par dessas exceções legais, a magistratura dá sinais de que a proteção contra decisões-surpresa presente no artigo 10 merecerá ainda outras flexibilizações judiciais, contra legem. Nessa senda, vale a leitura crítica dos enunciados 1 a 6, editados em 2015 pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) tendo por objeto o CPC/15.3
Um dos fundamentos para essa flexibilização judicial é o de que a consulta prévia às partes, como regra geral, afetaria a celeridade, atravancando o processo. Em sentido contrário é possível sustentar que essa dimensão do contraditório, muito além de evitar nulidades, é mecanismo de aprimoramento da decisão que poderá ter o condão de evitar recursos, reformas e cassações, viabilizando um filtro apriorístico e preventivo da decisão, viabilização uma jurisdição mais efetiva e, quiçá, por tabela, menos morosa.
Sigamos, passando à abordagem dos artigos 11 e 12. O primeiro desses dispositivos trata da publicidade como regra dos julgamentos pelo Judiciário e da necessidade de que sejam fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
A fundamentação das decisões é norma constitucional disposta no artigo 93, IX, da Constituição, não trazendo o CPC/15, em seu artigo 11, nenhuma novidade aparente. O que é digno de menção, porém, é que o novo Código impõe uma migração da fundamentação exigida: de suficiente para exauriente.4
Nesse particular, merece leitura atenta o artigo 489, § 1º5, que traz um rosário de artifícios vedados ao Judiciário na fundamentação de suas decisões, impondo-se-lhe ônus argumentativo a exigir que a decisão:
(i) demonstre adequadamente a subsunção da causa ou da questão decidida à norma aplicada, proibida a simples menção;
(ii) estabeleça liame entre conceito jurídico aberto e sua incidência ao caso concreto;
(iii) não se valha de motivos-coringa, aptos a arrimar qualquer sorte de decisão para qualquer sorte de caso;
(iv) não enfrentar todos os argumentos suscetíveis de influenciar a conclusão;
(v) invocar precedente judicial ou súmula — válidos e não superados, naturalmente — sem evidenciar em que medida se ajustam ao processo;
(vi) deixar de seguir súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte sem efetuar o necessário distinguishing, consideradas como “precedente” apenas as decisões a que aludem os incisos do artigo 927, e não, obviamente, toda e qualquer decisão insulada.
A disposição é salutar. Jurisdição é poder exercido com déficit democrático por agentes não-eleitos. A dimensão legitimadora do exercício desse poder é a fundamentação, por meio da qual o Judiciário se abre ao controle social, lato sensu, e endoprocessual, quando viabiliza o próprio direito de as partes recorrerem das decisões.
A decisão, a toda evidência, haverá de ser tão forte quanto seu fundamento mais fraco. O que a norma inserta no artigo 489, § 1º pretende evitar, portanto, são decisões-padrão que atendam apenas formalmente, mas não materialmente, ao que contido no artigo 93, IX, na Constituição, prestando um desserviço à segurança jurídica, deslegitimando a jurisdição e, por via reflexa, o Estado, frustrando, ademais, sua “capacidade de orientação de condutas sociais.”6
Também aqui houve insurgência por parte da magistratura, notadamente contra o inciso III do § 1º do artigo 489.7 Em síntese, as principais críticas são as de que a fundamentação, tal qual exigida pelo CPC/15, demandaria o enfrentamento de toda sorte de argumentos, mesmo aqueles manifestamente descabidos, contribuindo para a morosidade judicial e, ainda, de que haveria vulneração à separação de poderes, com o Legislativo editando norma cogente a determinar como deve ser prestada a jurisdição pelo Judiciário.
De nossa parte, as críticas não possuem fundamento. Não são todos os argumentos a merecer enfrentamento judicial, mas apenas aqueles suscetíveis de influenciar a conclusão judicial. Quanto a esses argumentos, especificamente, a conclusão sobre se são eles cabíveis ou descabidos pressupõe, antes, sua análise. O que se demanda, pois, é que essa operação intelectual realizada pelo magistrado seja publicizada. A respeito da possível morosidade, o que em tese toma mais tempo do julgador é a análise dos argumentos, que necessariamente haverá de ser feita. A exigência de que suas conclusões sejam materialmente transferidas para o papel não demanda muito mais tempo e tem o condão, em verdade — como dito anteriormente quando da abordagem do contraditório —, de oferecer uma decisão de maior qualidade, que mais bem contribua com a efetividade, possivelmente diminuindo recursos, cassações e reformas.
Aliás, bem vem à balha a menção feita ao contraditório no parágrafo anterior. O sistema do CPC/2015, como vimos, exige o dever de consulta prévia às partes em seu artigo 10. Não faria sentido, portanto, que cumprida a exigência de consulta prévia às partes, o juiz pudesse simplesmente ignorar as manifestações, decidindo à revelia das alegações trazidas a seu conhecimento ainda que suscetíveis de influenciar as suas conclusões, num regresso ao contraditório meramente formal.
Já no que toca à suposta vulneração à separação de poderes, também já foi dito que a exigência de fundamentação das decisões judiciais possui assento constitucional. Seguramente, para a elucidação de disposições constitucionais, o Legislativo ostenta maior legitimidade democrática que o Judiciário. A ressalva possível seria a inconstitucionalidade da norma, o que, contudo, em nossa opinião, não se afigura presente: o artigo 489, § 1º, não elimina a autonomia judicial (iura novit curia) e nem, tampouco, impõe como devam ser proferidas as decisões, limitando-se a estabelecer o que não deve ser adotado como artifício a pretexto de fundamentação.
Sem prejuízo de todas essas considerações em defesa do artigo 489, § 1º, também aqui parcela da magistratura, lamentavelmente, adiantou tendência de flexibilização.
O artigo 12, finalmente, inova ao estabelecer ordem cronológica para prolação de sentenças e acórdãos , já se notando, de pronto, que as decisões interlocutórias escapam à regra.
A norma possui razão de ser. É que a razoável duração do processo é direito titularizado por todos, indiscriminadamente, seja aquele que litiga em processo simples, seja aquele que integra relação processual complexa. O que se pretende coibir, pois, é uma afronta à isonomia que autorize o magistrado a preferir matérias “fáceis” e preterir julgamentos mais “difíceis”, ainda que esses sejam mais antigos que aqueles.
Também a regra da ordem cronológica, sem embargo, comporta exceções, previstas nos incisos de seu § 2º , e flexibilização, contida no § 6º do mesmo dispositivo.
No que tange às exceções, privilegiou-se o lógico. Fogem à regra da ordem cronológica:
(i) sentenças em audiência, homologatórias de acordo ou de improcedência liminar do pedido,
(ii) decisões que julguem processos em bloco para aplicação de tese firmada em julgamento de casos repetitivos,
(iii) recurso afetado como paradigma de casos repetitivos e incidente de resolução de demandas repetitivas, que firmarão tese a orientar o julgamento em bloco na forma do item anterior,
(iv) sentenças terminativas do artigo 485 e decisões monocráticas do relator nas hipóteses do artigo 932,
(v) julgamento de embargos de declaração, porque representam, em verdade, continuação de julgamento para sanação de suposto vício que jamais deveria ter constado de decisão já proferida,
(vi) julgamento de agravo interno, também por se tratar de prolongamento de decisão de certa forma já iniciada monocraticamente,
(vii) preferências legais (que seguem ordem cronológica própria e apartada, na forma do artigo 12, § 3º) e metas estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça,
(viii) processos criminais, nos órgãos que possuam essa competência e
(ix) causas que exijam urgência reconhecida por decisão fundamentada.
Uma vez mais, a ENFAM, em seu enunciado 32, indicou a tendência de relativização da norma abrindo brecha para a prolação de sentenças e acórdãos fora da ordem estabelecida pelo artigo 12, desde que “fundamentadamente”.
Esse raciocínio findou repercutindo na Emenda (EMP) 13/15 ao PL 2.384/15, para introduzir no caput do artigo 12 a expressão preferencialmente: “Os juízes e tribunais deverão obedecer, preferencialmente, à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão.”
A referida proposição já foi aprovada na Câmara dos Deputados e na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal (lá sendo registrada como PLC 168/15), pendendo de votação pelo Plenário dessa casa revisora.
De nossa parte, em que pese a iminente aprovação de mudança que terá o condão de excepcionar a ordem cronológica para além das hipóteses ope legis, criando situação genérica ope iudicis, reputamos que ao menos dois ganhos remanescem intactos: a exigência de publicidade da ordem cronológica pelos juízos, favorecendo o controle dos jurisdicionados, e a disposição contida no artigo 12, § 4º, no sentido de que o atravessamento de requerimento que não dê ensejo à reabertura da instrução ou à conversão do julgamento em diligência não faz com que o processo vá para o final da fila, norma que evita atos protelatórios das partes e, ao mesmo tempo, elimina qualquer intimidação que poderia recair sobre aquele que se vê na situação de ter deduzir requerimento plausível, tendo de encarar como efeito colateral o retardamento da resolução de seu processo (no limite da regra, a norma evita a paradoxal situação de uma parte que pretenda noticiar nos autos superveniente idosidade e que, indo para o final da fila, tenha, na prática, eventualmente postergada a conclusão de seu processo).
Com isso, nobres leitoras e leitores, encerramos nossas ponderações sobre as normas fundamentais do CPC/15 e o nosso segundo semestre de 2015. Que a partir de 2 de fevereiro de 2016, quando retomaremos a coluna, continuemos merecedores de seu prestígio nesta já profícua relação virtual.
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1 As normas fundamentais do processo civil no CPC/15 – Primeira parte.
2 “(...) há muito a doutrina percebeu que o contraditório não pode mais ser analisado tão somente como mera garantia formal de bilateralidade da audiência, mas, sim, como uma possibilidade de influência (Einwirkungsmöglichkeit) sobre o desenvolvimento do processo e sobre a formação de decisões racionais, com inexistentes ou reduzidas possibilidades de surpresa. Tal concepção significa que não se pode mais na atualidade, (sic) acreditar que o contraditório se circunscreva ao dizer e contradizer formal entre as partes, sem que isso gere uma efetiva ressonância (contribuição) para a fundamentação do provimento, ou seja, afastando a ideia de que a participação das partes no processo possa ser meramente fictícia, ou apenas aparente, e mesmo desnecessária no plano substancial.” THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle José Coelho. Princípio do Contraditório: tendências de mudança na sua aplicação. In: Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas n. 28, jan./jun. 2009, p. 177-206.
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4 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo CPC. Código de Processo Civil. Lei 13.105/2015. Inovações, alterações e supressões comentadas. São Paulo: Método, 2015, p. 7.
5 Art. 489. (...)
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
6 MARINONI, Luiz Guilherme et. al. Novo Código de Processo Civil comentado. São Paulo: RT, 2015, p. 110.
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