Processo e Procedimento

Da separação “rígida” das tutelas em processos no CPC/73 ao sincretismo processual do CPC/15 (segunda e última parte)

Da separação “rígida” das tutelas em processos no CPC/73 ao sincretismo processual do CPC/15.

29/9/2015

Guilherme Pupe da Nóbrega

Como dito anteriormente, na versão original do CPC de 1973, fosse com base em título executivo judicial, fosse com base em título executivo extrajudicial, a execução sempre nascia do zero, com petição inicial própria, inaugurando relação processual desvinculada de eventual relação processual outra que lhe precedesse: no título extrajudicial inexistia, mesmo, qualquer processo anterior; o título executivo judicial, por outro lado, pressupunha processo de conhecimento anterior formador do título.

Pouco a pouco, porém, foi se fazendo possível a prática, no processo de conhecimento, de atos executivos, de efetivação do direito, de concretização de decisões. Em outras palavras, a regra é que, no caso de título judicial, somente depois de sentença reconhecendo o direito da parte, e dessa decisão não mais cabendo nenhum recurso, é que haveria a entrega do bem da vida ao vencedor, transmudando-se o conteúdo da decisão em efetiva alteração dos fatos. Acontece que essa regra foi comportando cada vez mais exceções.

Em 1990, o artigo 84 do CDC abre a possibilidade de efetivação de determinados atos decisórios em ação coletiva, antes mesmo da sentença.

Em 1994, com a lei 8.952 e a mudança por ela promovida no artigo 461 do CPC/73, se torna possível a execução de obrigação de fazer na tutela individual. Além disso, a mesma norma inova no ordenamento ao prever a tutela antecipada (artigo 273 do CPC/73), executável antes da sentença — tema esse abordado mais à frente.

Em 1995, a lei 9.099, dos Juizados Especiais, inova não para admitir atos de execução antes da sentença (o que já era possível em razão da tutela antecipada introduzida em 1994 pela lei 8.952), mas para estabelecer que o cumprimento das sentenças transitadas em julgado se daria no mesmo processo, como uma fase processual, dispensando a parte exequente de instaurar nova relação a partir de uma inicial de execução (arts. 52 e 53).

Em 2002, a lei 10.444 insere no CPC/73 o art. 461-A, que prevê a possibilidade de execução de tutela antecipada em obrigação de entrega de coisa, também antes da sentença ou de seu trânsito em julgado.

Finalmente, em 2005, a lei 11.232 inverte a lógica: se a regra exigia nova petição inicial para instauração de processo de execução, a regra passava a ser a execução incidental por meio do cumprimento de sentença. Bastaria, para execução, uma petição incidental da parte exequente, petição essa que prolongaria a relação processual pré-existente, saindo de uma fase de conhecimento, de acertamento do direito, para uma fase de execução, de efetivação, tudo num mesmo e único processo, sem citação, mas, sim, intimação do réu-condenado, agora executado.
Essas mudanças refletiram uma mudança de paradigmas que vinha ocorrendo em nível mundial1: conferir efetividade, no mundo dos fatos, àquilo que foi decidido no plano normativo (na norma jurídica individual apelidada de sentença). É dizer, a partir do final do século XX, o processo civil deslocou seu foco dos conceitos e categorias para a funcionalidade da prestação jurisdicional (essa busca por celeridade e efetividade reverberou na própria CF).

No processo executivo, concentrou-se na instrumentalidade e na efetividade. Em suma, pouco importa se a ação é direito subjetivo, potestativo ou faculdade, pouco importa a diferença do direito formal e material se não se produzirem resultados socialmente satisfatórios que, desde um primeiro momento, ensejaram a própria necessidade da jurisdição. O direito processual não pode ser um fim em si mesmo, e sim um veículo, de modo que, ao revés de distanciar-se, deve o processo aproximar-se do direito material. Passa-se a um processo de resultado.

O CPC de 2015 bebeu desta fonte. Enquadrou a tutela cautelar como espécie do gênero tutela provisória, deixando de tratar do tema em livro próprio. Também adotou “ainda mais” como regra a execução incidental de título judicial, pelo rito do cumprimento de sentença (inclusive em se tratando de alimentos2 ou de execução contra a Fazenda Pública, diferentemente do que se sustentava no CPC de 1973), admitindo com ainda mais ênfase tutelas cognitiva e executiva numa mesma relação processual passou a ser incidental.

Mais do que nunca, a quadra vivida pelo processo civil brasileiro tem no sincretismo regra, sem enxergar separação das tutelas em diferentes processos. Privilegia-se a efetividade jurisdicional com o enfrentamento do mérito3, a simplificação de procedimentos, sem descuidar da segurança jurídica. Por isso a opção em se falar em fase de conhecimento, em vez de “processo” de conhecimento.

Pois bem. Já foi dito aqui que a fase de conhecimento é o momento processual destinado à investigação dos fatos pelo juiz, às alegações das partes. Essa atividade cognitiva pode se desenrolar de diferentes formas, por diferentes ritos, procedimentos, a depender, por exemplo, do conteúdo da pretensão.

Dito de outro modo, os atos processuais, de acordo com determinados aspectos como o pedido deduzido ou o valor da causa, podem se organizar de diferentes formas. No CPC de 1973, havia procedimentos ordinário, sumário e especiais. No CPC de 2015, passou-se a ter, exclusivamente, procedimentos comum e especiais. Neste ponto, cuidar-se-á do procedimento comum, que, na forma do artigo 318, caput e parágrafo único, do CPC de 20154, porque mais rico, é aplicado subsidiariamente, no que não for derrogado (artigo 1.046, § 2º, CPC/15)5 por normas específicas, à execução e aos procedimentos especiais, sejam os catorze expressamente previstos no CPC, sejam os outros tantos tratados em legislação esparsa (leis 9.099/95 e 12.016/09, por exemplo).

Dentro do procedimento comum, são estudadas quatro diferentes fases:

(i) postulatória: as partes apresentam ao juiz a matéria sobre a qual discutem, é a fase em que as partes, e eventuais terceiros, postulam a tutela, rompendo efetivamente com a inércia;

(ii) ordinatória: o juiz, a partir dos atos praticados na fase postulatória, define os atos processuais subsequentes, sanando eventuais vícios e irregularidades que possam comprometer, futuramente, a decisão. O processo, em outras palavras, é colocado em ordem e preparado para a fase seguinte. Não sendo possível ordenar o processo, é possível que o juiz, à falta de pressupostos ou condições básicas, que inviabilizem a atuação jurisdicional, extinga o processo, sem adentrar o mérito;

(iii) instrutória: o juiz, como destinatário das provas que é, age de ofício ou a requerimento das partes, autorizando a produção de provas a fim de formar seu livre convencimento, sempre motivado, acerca dos fatos e de suas consequências jurídicas.

(iv) decisória: o juiz, convencido, efetivamente decide, sentenciando o processo e, preferentemente, reconhecendo ou não a existência de direito, ou seja, adentrando o mérito.

Essa separação não é rígida. Leva em conta a atividade que prepondera num e noutro momento processual. Assim, tanto é possível que uma dessas fases simplesmente não ocorra (não haverá fase instrutória se ocorrer o indeferimento da inicial ou o julgamento antecipado da lide), como é possível que haja uma decisão do juiz (que teoricamente integraria a fase decisória) em meio à fase postulatória (por exemplo, deferindo liminarmente tutela provisória de urgência ou determinando a emenda da inicial, providência essa ordinatória). São esses exemplos que relativizam, mas não desmerecem essa classificação doutrinária, que tem fim didático.

Cuidando primeiro da fase postulatória, e lembrando que é esse o momento em que as partes deduzem pretensão e resistência, cada alegação da parte é considerada um ponto. Quando um ponto suscitado por uma das partes esbarra num ponto suscitado pela outra, surge uma controvérsia, e aquele ponto passa a ser tratado como algo controvertido, uma questão, de fato ou de direito, a ser dirimida pelo juiz. O conjunto de questões forma o objeto do processo.

Há uma organização, porém, na solução das questões. Em determinados casos, a solução de uma questão poderá repercutir ou prejudicar a solução de outra. Por isso é que temos questões preliminares e prejudiciais.

As preliminares criam ou eliminam obstáculos para a solução de outra questão, ou seja, o exame de um ponto controvertido depende de que se resolva, antes, outro ponto controvertido, seu antecedente lógico. São elas classificadas em: (i) preliminares de conhecimento do mérito da causa (pressupostos processuais e condições da ação, que, ausentes, impedem o exame do mérito); (ii) preliminares recursais (pressupostos recursais, intrínsecos ou extrínsecos); e (iii) preliminares de mérito (prescrição ou decadência).

As prejudiciais não condicionam o exame de outra questão, mas repercutem na forma como essa será analisada. Exemplo é dado pela discussão sobre a validade do contrato em ação de cobrança (se inválido, a cobrança será necessariamente improcedente). Outro exemplo surge com a discussão sobre a inconstitucionalidade de lei em ação de repetição de indébito tributário (se inconstitucional a lei que apoia a exação tributária, a cobrança será indevida, o que redundará na procedência do pedido).

Tudo bem. Mas como se inicia a fase postulatória, primeiro momento da fase de conhecimento? Da mesma forma que se inicia o processo. Com um pedido a alguém. Acontece que esse pedido não pode ser feito de qualquer forma, porque não é feito a qualquer “pessoa”. O pedido deve atender a requisitos formais mínimos a fim de romper a inércia judicial. Como é pedido a iniciar o processo a provocar a tutela jurisdicional, natural que o mecanismo para sua dedução se chame “petição inicial”.

Os requisitos que devem ser observados pela petição inicial? Isso já é assunto para outro dia...

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1 Tiveram reformas na execução civil: a Espanha, em 2000; Rússia, em 2002; Portugal, em 2003; Itália, em 2005; Honduras, em 2007; entre outros. CÂMARA, Alexandre Freitas. A eficácia da execução e a eficiência dos meios executivos: em defesa dos meios executivos atípicos e da penhora de bens impenhoráveis. In: Execução civil e temas afins – do CPC/1973 ao Novo CPC: estudos em homenagem ao Professor Araken de Assis. Coord. Arruda Alvim et . al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 15.

2 Havia dúvida, na doutrina, sobre a possibilidade de execução de alimentos pelo rito do cumprimento de sentença no CPC de 1973. Sustentavam a possibilidade, entre outros, Maria Berenice Dias, Alexandre Câmara e Luiz Guilherme Marinoni. Posteriormente, o STJ encampou a tese (STJ, Quarta Turma, REsp 1.177.594, rel. Min. Massami Uyeda, DJ de 22.10.2012), que findaria por também ser acolhida pelo CPC de 2015.

3 As diversas normas a positivarem o privilégio no enfrentamento do mérito consagram tendência já há tempos existente: “(...) III - Sem escapar ao regramento que disciplina o nosso sistema processual, o julgador não pode estar apegado ao formalismo exacerbado e desnecessário, devendo-se esforçar ao máximo para encerrar a sua prestação jurisdicional apresentando uma composição para a lide, cumprindo assim a atribuição que lhe foi conferida.” STJ, REsp 707.997, rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 27.3.2006.

4 Art. 318. Aplica-se a todas as causas o procedimento comum, salvo disposição em contrário deste Código ou de lei.

Parágrafo único. O procedimento comum aplica-se subsidiariamente aos demais procedimentos especiais e ao processo de execução.

5 Art. 1.046. Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes, ficando revogada a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. (...)

§ 2º Permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código.

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Colunistas

Guilherme Pupe da Nóbrega é advogado. Especialista em Direito Constitucional e Mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor de Direito Processual Civil na graduação e na pós-graduação lato sensu do IDP. Coordenador do Grupo de Estudos "Instituições de Processo Civil" do IDP. Coordenador da disciplina de Processo da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal (ESA-OAB/DF). Autor de livro e artigos jurídicos.

Jorge Amaury Maia Nunes é advogado. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), onde lecionou a disciplina Direito Processual Civil na graduação e na pós-graduação stricto sensu. Diretor da Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal (ESA-OAB/DF). Autor de livro e artigos jurídicos.