Guilherme Pupe da Nóbrega
O processo é um conjunto de relações jurídicas de que decorrem direitos e deveres recíprocos para os seus sujeitos e que se desenvolve segundo um procedimento ao longo e ao cabo do qual é prestada a jurisdição. A jurisdição pode ser exercida de diferentes formas, reconhecendo, efetivando e/ou protegendo direitos.
A fase de conhecimento é a quadra do processo em que se concentra a tutela cognitiva, isto é, o momento em que o Estado-Juiz conhece dos fatos para, em seguida, declarar o direito das partes, outorgando certeza jurídica à questão a fim de extirpar o litígio do seio social.
É a etapa em que (i) o autor, dirigindo-se ao órgão competente, rompe a inércia judicial, (ii) é assegurada resposta ao réu, (iii) são investigadas as questões de fato e de direito que formam o objeto do processo, tudo isso culminando numa sentença.
Nessa fase específica, a preocupação das partes é tentar demonstrar ao magistrado o direito que alegam possuir. Em contrapartida, é durante essa mesma fase cognitiva que se estabelece uma relação entre o magistrado e o conteúdo do processo (lide e questões processuais). É o momento da percepção no esquema sujeito-objeto. Preocupa-se o julgador em investigar os elementos narrados na petição inicial e na contestação para, ao fim, inteirado quanto à certeza dos fatos, atribuir o bem da vida em disputa ao autor ou ao réu. Essa certeza, contudo, nunca será absoluta — do contrário, não haveria recurso ou ação rescisória contra qualquer decisão, que estaria, sempre, certa. A sentença, ao revés, se funda num juízo de probabilidade, na verdade formal que emerge dos autos, e que não necessariamente coincidirá com a verdade real.
Em outras palavras, como o Estado não pode se abster do dever de prestar a jurisdição, a incerteza sobre os fatos ou o risco, sempre existente, de uma decisão que não se imiscua em todos os elementos necessários para que se alcance a verdade real (nem sempre possíveis de serem provados) não o desonera de julgar. O juiz, a partir do que produzido no processo, firmará seu convencimento1, chegará à “verdade do processo” e fundamentará suas conclusões na sentença. Ainda que não se chegue à justiça em sua concepção mais ampla — conceito mais metafísico-filosófico que prático —, a solução almejada será a que mais se aproximar de uma concepção idealizada juridicamente do que seja justiça.
Acontece que nem sempre o que contido na sentença é prontamente cumprido por aquele que sucumbiu na demanda. Há, então, um giro que transforma a pretensão resistida em pretensão insatisfeita: “uma coisa é a resistência no plano do juízo que põe em pauta a incerteza sobre quem tem razão. Outra coisa é a resistência no plano da vontade, que evidencia a necessidade de satisfazer a quem tem razão.”2
Embora durante determinado período do Império Romano a execução por mão própria fosse possível (período das ações da lei, ou legis actiones), a evolução determinou que caberia ao Estado o monopólio do exercício legítimo da força. Assim, na versão original do CPC de 1973, cabia ao vencedor provocar uma vez mais o Estado, agora para executar o título executivo judicial.3
Porque a execução, aqui tratada superficialmente, se ocupa da tarefa de implementar, satisfazer o direito reconhecido ao longo da tutela cognitiva, é que se diz que na fase de conhecimento o juiz olha para os fatos e, em seguida, para o Direito, a fim de encontrar a solução aplicável, enquanto que na fase executiva o juiz olha para o Direito e, depois, para os fatos, a fim de alterá-los para fazer valer a decisão judicial, até então um simples comando jurídico abstrato.
Surge ainda, ao lado das tutelas cognitiva e executiva, a tutela cautelar, que visa à proteção, conservação do direito objeto de discussão presente ou futura. O objetivo da cautelar é, pois, o de resguardar a utilidade do processo.
Exemplificando: suponha-se que alguém pretenda reaver um veículo dado em comodato quando já exaurido o prazo e, antes mesmo do ajuizamento da ação, descubra que o possuidor do bem está em vias de desmanchá-lo para vender as peças; ou que no curso de uma ação em que os pais discutam a guarda de um menor a mãe ameace viajar com a criança para outro país; ou o caso de uma mulher que, em meio a processo de divórcio litigioso, se vê obrigada a abandonar o lar por correr risco de morte em razão das ameaças feitas por seu marido.
Em todos esses exemplos, o direito objeto de discussão corre sério perigo, que, se confirmado, esvaziaria a própria razão de ser do processo: (i) nenhuma efetividade terá a busca e apreensão se não se puder mais localizar o bem móvel; (ii) ainda que logre êxito no processo, o pai terá embaraçada a guarda de fato do menor subtraído pela mãe; (iii) de nada importará o culpado pelo divórcio se a mulher for assassinada por seu marido. É para proteção desses direitos, objeto de discussão presente ou futura, que se prestam as providências cautelares.
O Código de Processo Civil de 1973, em sua feição original, possui divisão rígida: o Livro I cuidava do processo de conhecimento; o Livro II, do processo de execução; o Livro III, do processo cautelar; o Livro IV, dos procedimentos especiais; e o Livro V, das disposições finais e transitórias.
Na versão original do CPC de 1973, portanto, a relação processual variava conforme variava a tutela pretendida, de modo que, para a tutela cognitiva, havia um processo com início, meio e fim, que era a sentença. Quando se passava ao momento de implementação, de efetivação do que decidido em sentença transitada em julgado, o vencedor tinha o ônus de iniciar nova relação processual, aviando petição inicial que continha, agora, pretensão não mais de reconhecimento de um direito, mas de sua concretização consoante decidido em processo de conhecimento, com a execução da sentença, título executivo judicial. Também a execução, autônoma em relação ao processo de conhecimento, teria início, meio e fim.
No processo cautelar era um pouco diferente. A providência cautelar poderia (ainda poderá, no NCPC) ser requerida antes mesmo do ajuizamento do processo principal, dando início a um processo autônomo, mas também poderia sê-lo incidentalmente (ainda poderá, no NCPC), no curso da demanda, caso o risco para o direito fosse superveniente ao ajuizamento da demanda que o discute.
Isso quer dizer que era e é possível haver tutela cautelar “dentro” do processo/fase de conhecimento: no exemplo dado acima, a respeito da guarda de menor, ainda enquanto ocorre a discussão sobre o direito à guarda, ainda em meio à produção de provas, é possível que seja requerida pelo marido, e deferida pelo juiz, providência cautelar no sentido de impedir a evasão do menor do território nacional caso esse risco surja supervenientemente ao ajuizamento da ação de guarda.
A mesma coisa poderia acontecer no processo de execução: imagine-se que o credor de um cheque execute a obrigação de pagar. Citado para pagamento, o executado/devedor começa a dilapidar patrimônio visando a frustrar a execução. A par do fato de que os atos de disposição patrimonial serão ineficazes em relação ao credor, porque praticados em fraude à execução, visando a impedir a prática de ainda mais outros atos, pode o exequente lançar mão de cautelar de arresto, afetando tantos bens quantos bastem para pagamento do crédito exequendo. Uma vez mais, a providência cautelar, aqui, tem a finalidade de evitar o esvaziamento do processo, de proteger o direito, creditório, objeto do processo principal — será infrutífera a execução em que não se logre localizar bens para penhora.4
Se desde o início vislumbrou-se a possibilidade de ocorrer tutela cautelar no bojo de processo de conhecimento, o processo de execução, ao revés, foi perdendo sua autonomia gradativamente.
Na próxima semana, abordaremos as etapas percorridas pelo CPC de 1973 rumo ao sincretismo processual, culminando no CPC/2015.
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1 Caso, mesmo depois de produzidas as provas, o magistrado não se considere apto a julgar, precisamente porque os fatos não foram esclarecidos, deverá ele valer-se de uma regra de julgamento de aplicação subsidiária chamada de “ônus da prova”, abordada no capítulo reservado à teoria geral da prova.
2 NEVES, Celso. Estrutura Fundamental do Processo Civil. Tutela jurídica processual, ação, processo e procedimento. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 29.
3 Sem aprofundar o ponto, que é tratado em tópico próprio reservado à execução, cabe a explicação de que o título executivo aparelha a execução. É requisito indispensável, ao lado do inadimplemento. Pode o título executivo ser judicial ou extrajudicial. Os títulos executivos judiciais, como se infere do nome, são produzidos em processo judicial e estão taxativamente enumerados no artigo 512 do NCPC (artigo 475-N, CPC/73). Os títulos extrajudiciais, por outro lado, igualmente aptos a desencadear a execução, possuem eficácia executiva não por certeza construída em processo judicial, mas sim porque essa eficácia lhes é atribuída por lei. Isso quer dizer que inexiste, em princípio, dúvida sobre o direito do credor de obrigação contida em título extrajudicial. Com isso, está o credor autorizado a “saltar” a fase de conhecimento, ingressando em juízo diretamente com a execução, caso inadimplida a obrigação (o credor de um cheque não ajuíza ação de cobrança a fim de obter sentença que reconheça o crédito. O cheque já possui, por lei, essa certeza como algo intrínseco. O credor, então, simplesmente executa o cheque). Os títulos executivos extrajudiciais estão arrolados no artigo 782 do NCPC (585, CPC/73) e em leis esparsas.
4 Além desses dois exemplos, que demonstram a possibilidade de providência cautelar no bojo de processo de conhecimento e de execução e desabonam a autonomia do processo cautelar, deve ser enfatizado que as cautelares possuem inequívoco caráter acessório, no mais das vezes ainda carecedor de qualquer grau de cognição, mesmo superficial, sobre o mérito que envolve o objeto litigioso da ação principal., motivo também por que se questiona a sua própria autonomia processual. CALAMANDREI, Piero. Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares. Trad. da edição italiana de 1936. Campinas: Servanda, 2000, p. 160-161; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização). 3ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 401. Ainda no mesmo sentido: NEVES, Celso. Estrutura Fundamental do Processo Civil. Tutela jurídica processual, ação, processo e procedimento. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 27.