Guilherme Pupe da Nóbrega
A improcedência liminar do pedido foi introduzida no Código de Processo Civil de 1973 pela lei 11.277/06, na onda das reformas processuais.
Com o instituto, passou a ser possível que o juiz deixasse de determinar a citação do réu e julgasse desde logo o mérito, ou seja, adentrasse o exame da causa de pedir e do pedido, para rejeitá-lo.
Natural questionamento não demorou a surgir: o exame do mérito, sem citação do réu, não estaria a vulnerar o contraditório e o devido processo legal? O questionamento serviu de fundamento, mesmo, para o ajuizamento, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.695, até hoje pendente de julgamento. A resposta, contudo, segundo este escrito, é negativa.
A decisão dada pelo juiz será necessariamente desfavorável ao autor e, via de consequência, favorável ao réu, motivo por que não se frustra o contraditório. A improcedência liminar respeita, ademais, o devido processo legal, estabelecido pela lei de forma mais sofisticada quando presentes hipóteses específicas.
Feito esse registro inicial, convém, para o fim de aprofundar a comparação entre os tratamentos dispensados à improcedência liminar por um e outro Código, transcrever a norma na lei de 73, estabelecida no artigo 285-A: “Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.”
Do ponto de vista técnico, a norma trazia equívocos. Em primeiro lugar, porque não há falar em “matéria controvertida” se a improcedência liminar do pedido acontece antes da citação do réu. A controvérsia pressupõe conflito entre alegações, conflito esse que faz surgir os chamados pontos controvertidos, questões a serem dirimidas pelo juiz e que integram o objeto do processo. Dado que a improcedência liminar ocorre antes da citação, ainda não foi ofertada contestação pelo réu, razão por que não há, ainda, controvérsia. Ora, as alegações do autor não encontraram oposição da parte contrária.
Outra imprecisão contida no antigo artigo 285-A dizia respeito ao requisito de que a matéria fosse “unicamente de direito”. Toda demanda, porém, traz consigo, em alguma medida, elemento fático. Desde Miguel Reale e sua teoria tridimensional do direito que as normas vêm colorir fatos, preceitos primários a atrair a incidência de dispositivo legal — ressalva que merece ser feita é a hipótese de controle de constitucionalidade in abstracto.
A expressão “casos idênticos” também se revelava inconveniente. Quando se fala em casos idênticos, se pressupõe identidade dos elementos da ação (partes, pedido e causa de pedir). A norma inserta no artigo 285-A, quando falava em sentença de “total improcedência em outros casos idênticos”, dava a entender que ou haveria coisa julgada (se a sentença proferida no “caso idêntico” já houvesse transitado em julgado), ou haveria litispendência (se a sentença proferida no “caso idêntico” ainda não houvesse transitado em julgado). Obviamente, a norma busca, em verdade, alcançar casos distintos (porque ao menos as partes serão diferentes), mas com causas de pedir e pedidos, esses sim, idênticos.
Derradeira inconsistência residia na expressão “reproduzindo-se o teor da [sentença] anteriormente prolatada”. Quando desse pela improcedência liminar do pedido, o juiz não deveria “reproduzir” a sentença antes prolatada. Ao menos o relatório da sentença haveria de ser diferente. O que se pretendia dizer é que a sentença de improcedência liminar adotaria as razões de decidir das sentenças antes proferidas, com adaptação, no mais, às peculiaridades do caso concreto, argumento esse que ganha ainda mais força em razão do ônus argumentativo que com o CPC/2015 recai de forma expressa sobre o juiz ao enquadrar o caso concreto à hipótese que dê ensejo à improcedência liminar (artigo 489, § 1º, V, CPC/2015).
O ganho de qualidade técnica com o novo Código, pois, foi evidente. A redação foi simplificada, retificadas as impropriedades aduzidas acima. Eis, aliás, a norma inserta no antes mencionado artigo 332, em seu caput: “Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido (...).”
As expressões “matéria controvertida unicamente de direito”, casos idênticos” e “reproduzindo-se o teor da [sentença] anteriormente prolatada” desapareceram.
Especificamente sobre a substituição do termo “matéria unicamente de direito” por “causas que dispensem a fase instrutória”1, houve, para além de melhoramento técnico, uma ampliação do âmbito de incidência da norma, que passa a abarcar a hipótese em que haja matéria fática e todas as provas pré-constituídas já sejam trazidas na inicial, mas insuficientes para respaldar a pretensão autoral.
Dito de outro modo, os fatos provados pelo autor já com a inicial dispensam a fase instrutória. A uma, porque todas as provas necessárias já acompanharam a inicial e, a duas, porque despicienda a produção de provas pelo réu.
O exemplo dado no parágrafo anterior, agora alcançado pela norma trazida pelo artigo 332, CPC/2015, somente é possível porque o que justifica a improcedência liminar é o entendimento jurídico já consolidado em sentido contrário ao pedido autoral. Ainda que se admitam como verdadeiros os fatos alegados pelo autor (por força de provas pré-constituídas), esses fatos não produzem os efeitos por aquele almejados. A divergência, pois, não é quanto a que fatos trarão que consequências jurídicas, mas quanto a fatos trazidos pelo autor que têm já sedimentadas na jurisprudência consequências jurídicas distintas das invocadas por ele.
Ainda quanto ao ponto, a dispensa da fase instrutória como requisito da improcedência liminar do pedido evidencia a lógica do instituto: prescindindo-se de produção de provas, o processo, caso seguisse seu rito “normal”, teria o mérito julgado antecipadamente (artigo 355, I, CPC/15)2. A diferença entre a improcedência liminar e o julgamento antecipado do mérito, pois, seria, no segundo caso, a citação e oferta de contestação pelo réu. Como a improcedência liminar pressupõe o absoluto descabimento da pretensão do autor, dispensada, mesmo, a defesa do réu, haveria economia de tempo com a antecipação da sentença e a eliminação da contestação, absolutamente desnecessária.
No novo Código há, ademais, ganho com a objetivação das hipóteses em que seja possível a improcedência liminar. Em lugar de deixar margem ampla ao subjetivismo judicial sobre a aplicabilidade da improcedência liminar sempre que “no juízo já houver[sse] sido proferida sentença de total improcedência”, o CPC/2015 delimita, restritivamente, quando o instituto será possível: sempre que a pretensão contrariar enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.
Mais: ao trazer como nova hipótese de improcedência liminar o pronto reconhecimento da decadência ou da prescrição, o CPC/2015 corrige equívoco antigo do Código anterior, que situava a matéria nas hipóteses de indeferimento liminar da inicial (artigo 295, IV, CPC/1973).
O equívoco se dava em razão de o artigo 267, I, CPC/1973, prever que o indeferimento liminar da inicial redundava na extinção do processo sem resolução do mérito, quando, em verdade, o reconhecimento da prescrição ou da decadência importa em extinção com resolução do mérito. Correto, pois, o CPC/2015, que retira a matéria das hipóteses de indeferimento liminar da inicial e a situa como caso de improcedência liminar.
Pois bem. Caso o autor apele da sentença de improcedência liminar, o magistrado terá o prazo de cinco dias para retratar-se. Havendo retratação, será o réu citado para a audiência de conciliação ou de mediação, sendo retomado o natural curso do processo. Não havendo retratação, o juiz citará o réu para oferecer contrarrazões no prazo de quinze dias, em seguida remetendo os autos ao Tribunal.
Vale registrar que o ônus argumentativo do autor contra sentença fulcrada em uma das hipóteses dos incisos do artigo 332 se voltará para a demonstração da singularidade de seu processo, isto é, que a demanda atual não é igual à outra em que proferida a decisão paradigmática, e que, por isso, não pode ser aplicada ao seu caso.
A exemplo do que abordado na apelação contra a sentença que indefere liminarmente a inicial, caberia aqui dúvida sobre se em sede de apelação eventualmente provida pelo Tribunal contra sentença de improcedência liminar adentrar-se-ia de pronto o julgamento do mérito em segundo grau.
O artigo 1.013 do CPC/2015 traz as hipóteses da chamada “teoria da causa madura”, que reza que quando o Tribunal cassar/reformar a sentença de primeiro grau, estando o processo em condições de julgamento, deverá a Corte, em vez de remeter os autos ao juízo de primeiro grau para prolação de nova sentença, proferir, ela própria, a Corte, desde logo, acórdão julgando a contenda.
A improcedência liminar está fora das hipóteses enunciadas pelo artigo 1.013, que cuidam da aplicabilidade da teoria da causa madura, à exceção, unicamente, da prescrição e da decadência, insertas no § 4º daquele dispositivo (“Quando reformar sentença que reconheça a decadência ou a prescrição, o tribunal, se possível, julgará o mérito, examinando as demais questões, sem determinar o retorno do processo ao juízo de primeiro grau”).
Isso quer dizer que é em tese possível ao tribunal, provido o apelo e cassada a sentença de improcedência liminar do pedido por reconhecimento da prescrição ou da decadência, julgar desde logo o mérito. Nas demais hipóteses de improcedência liminar, provido o recurso, serão os autos devolvidos ao primeiro grau.
A natural preocupação que já se levanta sobre o instituto da improcedência liminar consiste no engessamento dos juízos de primeiro grau e do risco de que casos diferentes acabem caindo em “vala comum”. Aliás, são essas questões que sempre surgem quando da abordagem dos diferentes institutos presentes no novo Código que refletem o fortalecimento dos precedentes judiciais. São esses, porém, temas para escritos futuros.
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1 Retificação semelhante foi realizada no artigo 355, I, CPC/2015, aprimorando-se a redação em relação ao artigo 330, I, CPC/1973.
2 Art. 355. O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentença com resolução de mérito, quando:
I – não houver necessidade de produção de outras provas;