Previdencialhas

O enunciado 210 do CARF e a responsabilidade solidária em grupos econômicos

Fábio Zambitte analisa o enunciado 210 do CARF, que impõe responsabilidade solidária a grupos econômicos nas obrigações previdenciárias, criticando confusões no uso do art. 124 do CTN.

28/10/2024

Em recente manifestação do CARF, no sentido de uniformizar seus precedentes, foi publicado o enunciado de número 210, calcado em norma de responsabilidade tributária prevista no plano de custeio da previdência social. 

O aludido enunciado é assim apresentado: “As empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem solidariamente pelo cumprimento das obrigações previstas na legislação previdenciária, nos termos do art. 30, inciso IX, da lei 8.212/91, c/c o art. 124, inciso II, do CTN, sem necessidade de o fisco demonstrar o interesse comum a que alude o art. 124, inciso I, do CTN”.

O referido dispositivo da lei 8.212/91 expressa que “as empresas que integram grupo econômico de qualquer natureza respondem entre si, solidariamente, pelas obrigações decorrentes desta lei”. A temática da responsabilidade tributária, no contexto do financiamento previdenciário, é extensa e impraticável de adequado desenvolvimento no presente texto. De toda forma, cumpre notar que, indiscutivelmente, o preceito referido deve ser cotejado com as normas gerais em matéria tributária, na forma do art. 146, III da CF/88, as quais são disciplinadas no CTN.

Daí em diante é que começam os problemas. A primeira metade do enunciado do CARF é tautológica, pois limita-se a repetir o exposto no art. 30, inciso IX, da lei 8.212/91. Já a segunda parte reflete equívocos e outra redundância. De início, um equívoco: há uma confusão na interpretação do art. 124 do CTN. O preceito, em seus dois incisos, ao dispor da sujeição passiva solidária no adimplemento da obrigação tributária, aponta duas hipóteses distintas.

O inciso I (“as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”), reflete típica hipótese de solidariedade automática por enquadramento imediato de mais de uma pessoa no polo passivo na qualidade de contribuinte, como, por exemplo, os coproprietários de bem imóvel na zona urbana de município para fins de IPTU. Já o inciso II (“as pessoas expressamente designadas por lei”), aborda premissa geral da responsabilidade tributária.

A natureza híbrida do art. 124 explica, inclusive, a razão deste preceito estar previsto no capítulo IV do CTN, que trata dos sujeitos passivos, e não no capítulo V, que trata, genericamente, da responsabilidade tributária (no anteprojeto capitaneado por Rubens Gomes de Souza, a solidariedade era prevista em capítulo apartado, o que representava melhor organização do texto). 

Daí decorre a segunda tautologia, ao apontar, na segunda parte do enunciado 210 do CARF, o art., 124, I do CTN como inaplicável ao caso concreto. Repete o óbvio, pois a referida previsão legal aborda duas ou mais pessoas com relação pessoal e direta com o fato gerador, ou seja, contribuintes, e não responsáveis tributários, como prevê o art. 30, IX, da lei 8.212/91.

Agora, o segundo equívoco: o que parece pretender o enunciado é afastar a norma geral de responsabilidade tributária prevista no art. 128 do CTN, a qual, além de exigir a previsão legal expressa para a mutação no polo passivo, demanda vinculação mínima do responsável ao fato gerador. A questão é bem desenvolvida em qualquer resumo de direito tributário disponível no mercado nos últimos 50 anos: não faria sentido, por exemplo, lei atribuir expressa responsabilidade tributária a determinada pessoa pelo singelo fato desta ser vizinha de porta do contribuinte.  

Ou seja, o “interesse comum”, na forma do art. 124, I do CTN realmente não se aplica na presente questão. Sem embargo, a vinculação mínima entre responsável e contribuinte deve existir, até como forma de controle; observância à capacidade contributiva e, ainda, a viabilidade de transmissão do ônus financeiro pelo encargo tributário ao contribuinte. 

O enunciado do CARF tenta apresentar a desnecessidade de demonstração da vinculação do responsável tributário ao fato gerador, como exigido pela norma geral do art. 128 do CTN, pelo singelo fato de as pessoas jurídicas pertencerem a grupo econômico. Além da subjetividade inerente a esta modalidade de organização econômica, a medida é arbitrária e contrária ao bom senso, pois eventual coligação entre empresas não permite presumir, de forma absoluta, o liame mínimo para configurar a inclusão no polo passivo da relação jurídico-tributária. 

Em resumo, a pretexto de afastar-se a aplicação do art. 124, I do CTN ao regramento da lei 8.212/91 – o que é correto – pretende a instância administrativa criar ficção legal na qual a singela existência de grupo econômico permita o alargamento da sujeição passiva, mesmo sem a mínima vinculação das empresas ao fato gerador deflagrador da obrigação tributária. Mais do que os anseios das instâncias administrativas em assegurar a necessária receita tributária, há de se observar os limites à imposição tributária e as normas gerais previstas em lei.

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Colunista

Fábio Zambitte Ibrahim é advogado, doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito pela PUC/SP. Membro fundador da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social. Professor Associado de Direito Tributário e Financeiro da UERJ, árbitro do Comitê Brasileiro de Arbitragem - CBAr. Foi auditor fiscal da Secretaria de Receita Federal do Brasil e Presidente da 10ª Junta de Recursos do Ministério da Previdência Social.