A recente publicação do decreto 10.620/21, ao reorganizar a gestão do Regime Próprio de Previdência dos Servidores Federais, no âmbito exclusivo do Executivo, trouxe dúvidas e incertezas para os servidores federais, ativos ou inativos, além de pensionistas. No entanto, por enquanto, a mudança, apesar de ser capaz de gerar percalços a esse grupo, não representa, em minha opinião, normativa dotada de ilegalidades ou inconstitucionalidades.
Desde longa data, busca-se, na disciplina normativa dos Regimes Próprios de Previdência, a consolidação de uma premissa um tanto quanto óbvia: que todos os servidores de determinado Ente Federado sejam submetidos a um mesmo RPPS e, ainda, que este RPPS possua uma única unidade gestora, como medida de racionalidade administrativa. A previsão acabou por alcançar status constitucional com a EC 41/03, ao incluir o art. 40, § 20 na CF/88:
"Fica vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social para os servidores titulares de cargos efetivos, e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime em cada ente estatal, ressalvado o disposto no art. 142, § 3º, X"
Com a reforma de 2019 (EC 103/19), o texto não conta mais com a expressa a exclusão de militares, deixando o tema a cargo de lei complementar:
"É vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social e de mais de um órgão ou entidade gestora desse regime em cada ente federativo, abrangidos todos os poderes, órgãos e entidades autárquicas e fundacionais, que serão responsáveis pelo seu financiamento, observados os critérios, os parâmetros e a natureza jurídica definidos na lei complementar de que trata o § 22"
Ironicamente, a União, com sua competência para estabelecer normas gerais no âmbito da previdência dos servidores e, ainda, fiscalizar o adimplemento das regras legais e administrativas sobre o tema, sempre descumpriu a diretiva basilar de uma unidade gestora por RPPS. A realidade é ainda pior, pois a regra é, no contexto de cada entidade administrativa federal, que os próprios "recursos humanos" atendam pleitos previdenciários de servidores.
É evidente que a unificação de unidades gestoras é tarefa complexa. Nenhum governo, até o momento, chegou sequer perto de conseguir essa façanha na União. Especialmente quando pensamos em uma unidade gestora para todos os Poderes, a meta é quase utópica, tendo em vista a resistência de determinadas carreiras.
Então, o que realiza o decreto 10.620? Em um incomum "disclaimer", o ato normativo começa, no art. 1º, parágrafo único, afirmando do que não trata: "Este Decreto: I - não dispõe sobre o órgão ou a entidade gestora única do regime próprio de previdência social, no âmbito da União, de que trata o § 20 do art. 40 da Constituição". Tendo em vista a necessidade de lei complementar para disciplinar o tema, na atual dicção do art. 40, § 20 da CF/88, é ressalva é compreensível. Corroborando a premissa, no item seguinte do mesmo art. 1º, parágrafo único é dito que: "Este Decreto: (....) II - não se aplica ao Poder Legislativo, ao Poder Judiciário e aos órgãos constitucionalmente autônomos".
A ideia inicial, muito claramente, é afastar questionamento dos demais Poderes, sendo o decreto mero ato de gestão do Executivo Federal. É evidente que o ideal seria a criação, por lei complementar, da deseja entidade única de gestão do RPPS Federal, em todos os níveis e Poderes. Todavia, como a meta é quase irrealizável, busca-se racionalizar o tema no Executivo. A medida, do ponto de vista da gestão pública, é defensável.
Primeiro, é pragmática. Sendo improvável, em futuro próximo, a criação da entidade de gestão única, resolve-se parte do problema no Executivo. Segundo, o ganho para a Administração é potencialmente elevado: há a possibilidade, em curto espaço de tempo, de liberar muitos servidores federais que, atualmente, são alocados em atividades administrativas previdenciárias sem conexão com a atividade-fim do órgão, autarquia ou fundação.
Ainda há uma terceira vantagem, inclusive para servidores, que é a unicidade de interpretações do plano previdenciário no RPPS Federal, pois, não raramente, são observadas em muitas entidades federais manifestações e atos normativos sem compromisso com a legislação vigente e mesmo precedentes judiciais vinculantes. A submissão de todos os pleitos à autarquia federal especializada no trato previdenciário pode ajudar a solucionar esse tipo de problema.
No entanto, nem tudo são flores. É de conhecimento público a situação difícil pela qual passa o INSS. Requerimentos represados, atendimento inadequado e mesmo rigor excessivo na apreciação de fatos e provas são corriqueiros. Será o INSS capaz de lidar com essa nova realidade? Caso os servidores e dependentes sejam submetidos ao mesmo martírio que acomete segurados do RGPS, é bastante provável que haja acréscimo de demandas judiciais, com piora da situação já grave enfrentada pela Administração previdenciária.
Ademais, a atribuição do INSS é limitada à Administração Indireta, ficando os servidores da Administração Direta vinculados ao Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal – SIPEC. Tendo em vista a necessidade de alocação de servidores federais nessa nova unidade, aliada à constatação de que benefícios por incapacidade temporária não são mais de competência do RPPS Federal (art. 9º, § 3º, EC 103/19), também surgem dúvidas quanto ao real ganho a ser produzido pela reforma da administração previdenciária no RPPS Federal. Afinal, as entidades federais ainda terão de contar com servidores próprios para o atendimento de afastamentos temporários e salário-maternidade.
De toda forma, algumas inexatidões podem ser afastadas: direitos adquiridos, naturalmente serão respeitados. A mudança, mesmo para servidores da Administração Indireta, geridos pelo INSS, não implica perda ou redução das prestações, pois a legislação a ser aplicada não foi alterada. Ademais, para servidores ativos, as regras a serem observadas para obtenção de benefícios continua a mesma, nos termos da EC 103/19 e suas diversas regras transitórias. Não raramente, alguns servidores assustam-se com a ideia de uma alegada "extinção" de seu regime previdenciário. Não foi isso que aconteceu.
O objetivo de economicidade conjugada com eficiência na Administração Pública é uma necessidade. Tendo em vista as restrições orçamentárias, aliadas ao envelhecimento populacional, com o crescente número de demandas previdenciárias, o gestor público terá de ser capaz de fazer mais com menos. Medidas seguras e corretas de gestão são de interesse de toda a coletividade. Em suma, a ideia é boa, mas demanda cautela.