Nesse momento, ao nos aproximarmos – felizmente – do findar de 2020, buscava eu algum tema ameno para a última coluna do ano. Afinal, já fomos todos (uns mais que outros) devidamente castigados por uma pandemia de proporções bíblicas. No entanto, eis que surge um tópico pronto: a viabilidade de tributação previdenciária do salário-maternidade.
O assunto parece notícia passada. O STF, no RE 576.967, explicitamente, afastou a possibilidade de tributação, em contrariedade ao previsto no art. 28 da lei 8.212/91. Eu mesmo escrevi sobre isso há algumas colunas passadas.
Mas será isso mesmo? Quando vislumbramos o significante normativo "salário-de-contribuição", há três vetores de significado possíveis. Primeiro, pode ser conceito aplicável ao dimensionamento da cota patronal previdenciária, o que inclui, pela mesma natureza, as contribuições ao seguro de acidentes de trabalho e, por aproximação legal, as contribuições ao Sistema S/Terceiros. Segundo, aplica-se o mesmo conceito legal para designar a base imponível dos segurados do RGPS, com a particularidade dos limites mínimo e máximo. Por fim, designa o referencial básico para a quantificação do salário-de-benefício, o qual, por sua vez, viabilizará o cálculo da renda mensal inicial de diversos benefícios previdenciários.
De acordo com a Fazenda Nacional, em opinião estampada no Parecer SEI n. 18361/ME, a decisão do STF, por fundamentar-se somente no art. 195, I, "a" da CF/88, teria eficácia no primeiro e terceiro vetores de significado, mas não no segundo. Em apertada síntese, a lógica seria fundada na discussão limitada ao alcance da norma impositiva da cota patronal previdenciária, a qual foi, corretamente, conjugada com o impedimento de efeitos adversos no plano de benefícios.
Enfim, como nada se disse sobre a contribuição das seguradas do RGPS, cuja norma de competência é prevista no art. 195, II da CF/88, a conclusão natural seria pela manutenção de sua cobrança, sem violar o decisório da Suprema Corte. Do ponto de vista histórico, sistêmico e mesmo normativo, a conclusão me parece equivocada. As cotizações de empregadores e empregados possuem similitude não somente histórica, mas, também, necessária, até como forma de racionalizar o plano de custeio (nesse momento, gestores do e-social devem estar arrancando os cabelos); do ponto de vista legal, a equiparação prevista no art. 22, § 2º da lei 8.212/91 sempre possuiu, justamente, esse objetivo.
Todavia, é difícil criticar a Fazenda Nacional. Vivemos momento incomum no qual as premissas citadas, não raramente, têm se perdido em decisões envolvendo contribuições sociais. A Fazenda Nacional aponta, com razão, que o STF não tem reconhecido repercussão geral em temas relacionados a contribuições de segurados, em inexplicável e incongruente compreensão do sistema tributário-previdenciário (Temas 759 e 908). Como a cota patronal possui repercussão geral e a contribuição de segurados não? Ainda que não haja base imponível explícita no art. 195, II da CF/88, isso implica admitir a tributação sobre quaisquer valores?
Recordo vivamente quando, ao exonerar-me do serviço público e adentrar na nobre função causídica, me causava grande espanto decisões judiciais que, sem a menor cerimônia, excluíam dos decisórios sobre a não-incidência de determinadas rubricas salariais as contribuições a Terceiros, por "serem de outra natureza", ignorando as equiparações legais e a própria interpretação centenária do fisco federal e, ainda, excluindo o FGTS, apesar da explícita equiparação de bases em 1998, pavimentando o caminho para a antiga GFIP e, hoje, o e-social.
É compreensivelmente difícil para a autoridade administrativa assumir uma responsabilidade de impor racionalidade mínima ao sistema de financiamento da seguridade social brasileira quando as demais instâncias, data venia, não parecem ter a mesma preocupação. É esse descompromisso com a matéria que tem gerado, a cada instante, novas teses, novas demandas, novas decisões....
Enfim, é obviamente incorreto manter a contribuição da segurada sobre o seu respectivo salário-maternidade. No entanto, na ausência de um compromisso institucional sério com a estabilidade e a previsibilidade das normas tributárias, continuaremos com mais do mesmo: interpretações absolutamente restritivas de decisórios relevantes, novas demandas judiciais, lançamentos fiscais indevidos etc. Que, ao menos, a vacina nos salve da obliteração.
Boas Festas a todos!