Após algumas semanas de expectativa, finalmente a proposta de reforma previdenciária foi apresentada (PEC 06/2019). Com inovações variadas e alguns "jabutis", percebe-se o propósito de mudanças no sistema previdenciário brasileiro, as quais, a princípio, ainda se limitam a adequações paramétricas. A única modificação que poderia ser qualificada como de natureza estrutural é a previsão de um possível modelo de capitalização. Todavia, como já expus nessa coluna, tal medida me parece equivocada.
Minha ideia é apresentar aspectos controvertidos da PEC em nossa coluna quinzenal. Nessa primeira análise, optei por abordar tema relacionado ao custeio previdenciário, pois, pelas apresentações da impressa, o Governo Federal postula ampliar sua competência tributária mediante alteração do art. 195, I, "a" da CF/88. A questão não é propriamente inédita, pois a reforma de 1998 teve o mesmo objetivo. Desde a Emenda Constitucional nº 20/98, a redação do art. 195, I, "a", ao tratar da cota patronal previdenciária, estabelece a seguinte diretriz:
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
(...)
O texto proposto pela PEC 06/2019, para a mesma alínea "a", é o seguinte:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos, devidos ou creditados, a qualquer título e de qualquer natureza, salvo exceções previstas em lei, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
A redação original, anterior à EC 20/98, era singela, prevendo a incidência sobre a folha de salários, somente. A mudança de 1998 teve o propósito de viabilizar a tributação sobre rendimentos pagos a trabalhadores sem vínculo empregatício, de forma a superar o decidido pelo STF na ADI 1.102-2/DF. De toda forma, como tenho dito, a medida normativa daquela época de modo algum ampliou a incidência das contribuições previdenciárias sobre todo e qualquer pagamento feito a segurados do RGPS. Ainda hoje, somente rendimentos do trabalho são passíveis de tributação.
Acredito que haja uma confusão – deliberada ou não – no debate da base imponível previdenciária. Somente pagamentos derivados do trabalho são passíveis de tributação, ao contrário daqueles oriundos do contrato de trabalho. Os primeiros, naturalmente, são dotados de natureza contraprestacional e, portanto, passíveis de incidência previdenciária. Já os decorrentes do contrato, não necessariamente. Estes abarcam, também, ressarcimentos e indenizações. Em suma, nem tudo que é pago em virtude do contrato de trabalho será salário-de-contribuição.
Por exemplo, é certo afirmar que um reembolso de combustíveis ou mesmo um plano de saúde somente serão pagos a determinada pessoa pelo fato de ela ostentar a qualidade de empregada de determinada empresa. Obviamente, não serão tais benesses fornecidas a estranhos. Todavia, isso não implica que tais valores sejam dotados de natureza salarial. São derivados do contrato de empregado, e não do trabalho. A lei 8.212/91 exemplifica algumas exclusões.
Entendo que a Constituição poderia, em tese, ampliar a incidência da cota patronal previdenciária para todo e qualquer rendimento do contrato de trabalho, mediante alteração por Emenda. Embora o modelo nacional de proteção social seja dotado de fundamentos bismarckianos, com natural vinculação de incidência a rendimentos do trabalho carentes de substituição pelo benefício previdenciário, a maior solidariedade dos sistemas protetivos da atualidade pode ampliar as bases de incidência, desde que conjugada com reflexos necessários no plano de benefícios. Aqui, a questão é outra.
A crítica que estabeleço é singela: pelo texto proposto na PEC 06/2019, nada muda. A previsão a rendimentos pagos, devidos e creditados não é relevante. A lei 8.212/91 e regulamentação já interpretam corretamente o alcance da competência tributária, ao dimensionar, como aspecto material da hipótese de incidência, o labor remunerado, e não o efetivo pagamento. O mesmo se diga de rendimentos “de qualquer natureza”, pois os pagamentos em utilidades – desde que dotados de natureza contraprestacional – são tributados desde sempre.
O efeito da redação proposta é potencialmente danoso, pois, possivelmente, várias teses serão desenvolvidas no sentido da inovação da competência tributária e, com isso, na invalidade pretérita da imposição previdenciária sobre rendimentos não efetivamente pagos e benesses de natureza diversa, comprometendo bilhões de reais que, hoje, estão em fase de cobrança administrativa ou judicial. O potencial backlash da reforma, nesse ponto, é evidente.
A previsão de "salvo exceções previstas em lei" também, data venia, é tosca. Sempre que a lei prevê exceções à incidência de determinado tributo constitucionalmente previsto, já há instituto jurídico próprio para qualificar a norma: trata-se de isenção tributária. Caso a hipótese não seja albergada pela norma tributária de competência, será simples não incidência. É absolutamente desnecessária essa previsão no texto constitucional. Ao que parece, a tentativa é inserir, na Constituição, a pré-compreensão da Fazenda Nacional de que todo e qualquer valor pago a trabalhadores possui incidência previdenciária, salvo se dotados de exclusão expressa. Algo que não possui suporte doutrinário, jurisprudencial ou normativo.