Como divulgado pelo Senado Federal, a CPI da Previdência produziu seu relatório final1. Após meses de debates e pesquisas, com o confronto de números oficiais e opiniões de diversos especialistas, concluiu-se que o modelo protetivo brasileiro é superavitário. Na visão da CPI, o discurso governamental do déficit é repleto de erros contábeis e conceituais.
Em apertada síntese, o relatório produz diversas páginas discorrendo sobre a dilapidação do patrimônio pretérito da previdência social, ausência de recolhimentos devidos pela União, sonegação, dívidas bilionárias inadimplidas, contabilização equivocada de receitas e despesas, indevida desvinculação das receitas da União – DRU, além das diversas renúncias fiscais existentes na legislação brasileira.
O seguinte parágrafo é emblemático:
"Com todo esse complexo cenário, falar simplesmente de déficit da Previdência, a partir do comportamento das receitas e despesas atuais da seguridade social como um todo, é mitigar a realidade. Ao desconsiderar as práticas do Estado, que durante todo o período de existência da previdência retirou recursos, esvaziou suas receitas, protegeu inadimplentes e ainda financiou projetos de construção e mesmo, mais recentemente, políticas rentistas de pagamento de juros, o debate meramente atuarial sobre déficit ou superávit da previdência perde essência e conteúdo, e a discussão sobre o tema deve se constituir em outros parâmetros, como procuraremos demonstrar neste relatório". (pp. 41 e 42)
A crítica é dura e, em grande medida, verdadeira. É indiscutível que o governo Federal, desde a criação dos institutos de aposentadorias e pensões, a partir de 1930, vem sistematicamente aviltando o patrimônio do sistema previdenciário, com investimentos variados, alguns até relevantes, mas sem compromisso com a cobertura de segurados e dependentes. Igualmente acertada a crítica quanto às contraditórias sinalizações governamentais, até os dias de hoje, bradando a necessidade de reforma e, ao mesmo tempo, ampliando renúncias fiscais e benesses variadas a determinados setores.
Não reproduzo os valores – detalhadamente retratados no Relatório Final – mas as quantias são indiscutivelmente vultosas e, se realizadas, seriam fonte de equilíbrio do sistema previdenciário durante muitos anos. Essa questão está fora de dúvida. Todavia, concluir, com isso, pela desnecessidade de qualquer reforma previdenciária, em minha opinião, é grave equívoco.
O desvio de receitas do sistema previdenciário é apontado desde longa data, retratando o descaso estatal com o equilíbrio financeiro de nosso modelo protetivo. O mesmo vale para as omissões estatais quanto a suas contribuições irrealizadas. No entanto, como solucionar isso? Tais percepções, hoje, possuem, no máximo, interesse histórico e mesmo pedagógico, impondo aos gestores públicos maior responsabilidade na gestão previdenciária. Nada mais.
Temos de perceber que qualquer encargo do Estado é, na verdade, ônus da sociedade, pois no Estado de Direito contemporâneo a principal fonte de receita é oriunda dos tributos. Não por outro motivo a Constituição de 1988, didaticamente, afirma que a seguridade social é financiada pela sociedade, de forma direta ou indireta (art. 195, caput). Da mesma forma, muitas renúncias fiscais decorrem de opções da Assembleia Nacional Constituinte, dificilmente modificáveis na atualidade. O mesmo se diga sobre o passivo bilionário de empresas falidas; créditos previdenciários de papel que nunca serão realizados.
Não se ignora que o Relatório Final traz alguma luz à discussão, opinando sobre questões que podem, sem sombra de dúvida, passar por revisão legislativa e respectivo incremento de receita. O combate à DRU, desonerações da folha e privilégios de determinados segmentos econômicos são corretamente apresentados e desenvolvidos. Tais correções seguramente propiciariam melhoras no equilíbrio financeiro do sistema, potencialmente tornando-o superavitário, mas, ainda assim, desprovido do equilíbrio atuarial desejado pela CF/88.
Como tenho dito nos últimos anos, o sistema brasileiro é desprovido de equilíbrio atuarial, o qual somente foi efetivamente quantificado, em parâmetros adequados, por ocasião da edição da extinta Lei Orgânica da Previdência Social – LOPS, em 1960. Desde então, a discussão limita-se a parâmetros financeiros, exclusivamente. A situação demográfica brasileira é preocupante, pois conjuga acelerado envelhecimento com retração de natalidade severa – receita para o desastre em modelos de repartição.
Ademais, vivemos hoje o chamado "bônus demográfico", no qual a maior parte da população é composta por jovens e adultos, que são as pessoas que financiam o sistema e, em regra, não o utilizam. Em tal contexto, o apontado superávit financeiro deveria ser muito maior. Essa realidade será alterada em poucos decênios, impondo carga tributária cada vez maior sobre a geração ativa. A necessidade de revisão do modelo é imperativa.
Por outro lado, acerta novamente o Relatório Final ao afirmar que a reforma proposta possui finalidade estritamente econômica, descurando de seu objetivo final, que é a proteção da clientela coberta. Nesse sentido, faço referência ao seguinte parágrafo:
"Em várias exposições e falas, reverberadas em diversos documentos, é possível inferir de forma categórica que a grande vontade por parte da União em frequentemente promover reformas no sistema previdenciário brasileiro, vai além do cuidado com as gerações futuras, mas muito mais em garantir margens cada vez maiores de recursos financeiros para a sua gestão, com destinação distinta a que a contribuição está vinculada. Tal linha de raciocínio é muito singela: o governo federal tem interesse nos recursos da seguridade social, pois são recursos que constitucionalmente a União não é obrigada a repartir com os outros Entes da Federação (p. 139)".
A crítica, novamente, é verdadeira. Nota-se, pelo próprio discurso governamental, que a reforma atua quase que exclusivamente voltada a objetivos macroeconômicos, sem observar a realidade da clientela protegida. A proposta vigente possui vários exemplos nesse sentido, como o aumento desproporcional do tempo mínimo de contribuição para fins de aposentadoria, o que inviabilizaria a prestação para boa parte da clientela protegida. Essa forma de "utilitarismo previdenciário" não pode ser tolerada.
A previdência social é um dos instrumentos mais relevantes na garantia da existência digna. Ignorar tal aspecto implica incorrer em retrocesso inadmissível, tendo em vista a exaltação da dignidade humana como fundamento do Estado brasileiro. Independente da ideologia de cada um, todos desejam que o Estado seja capaz de fazer mais com menos, mas isso deve ser alcançado em estrita observância aos direitos fundamentais.
Não se trata de adotar discursos panfletários e descompromissados com a realidade. Muito menos combater a economia de mercado, mas, simplesmente, a percepção de que ambos os objetivos devem ser conjugados: a busca perene do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário e, também, a manutenção da vida digna. Formado tal consenso, quem sabe, seremos capazes de construir um modelo previdenciário equilibrado e justo.
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