Abro com o repeteco de uma historinha. Sempre solicitada por alguns dos meus leitores.
Levo ou não?
A historinha é conhecida e, por ser muito boa, merece um repeteco.
Rui Barbosa, o Águia de Haia, chegava em casa, à noitinha, quando ouviu um barulho vindo do quintal. Chegando lá, viu um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do indivíduo e, surpreendendo-o, ao tentar pular o muro com seus amados patos, passou-lhe um pito:
– Oh, bucéfalo anacrônico! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares de minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da sua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão, perplexo e confuso, com um fio de voz, perguntou:
– Doutor, eu levo ou deixo os patos?
O denuncismo
Um mar de denúncias toma conta do território. Por todos os lados, chovem denúncias. Estamos vendo coisas erradas do Norte ao Sul. Ou será que essa onda oceânica do denuncismo é coisa normal? Tentemos entender. Há de se compreender a índole do Brasil.
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Parte I
A. Patrimonialismo
Nossa cultura política é um amálgama de ismos: caciquismo, fisiologismo, familismo, filhotes do patrimonialismo. E de onde vem essa sopa? Da herança deixada por Dom João III, entre 1534 e 1536, quando criou as capitanias hereditárias e as distribuiu entre os donatários.
B. Confusão entre público e privado
Origina-se aí essa mistura. Os donatários entendiam que as capitanias eram suas, propriedade privada. Esse é o berço do patrimonialismo. A corrupção nasce no leito desse rio. O Brasil é o país mais corrupto da América Latina. Numa lista de 146 países, ocupamos o 29º lugar, segundo a Transparência Internacional. Nos 5.565 municípios brasileiros, a corrupção grassa em 85%.
C. O complexo de Faraó
Resgato o chiste. Há quatro tipos de sociedade no mundo: a inglesa, liberal, onde tudo é permitido, salvo o que é proibido; a alemã, durona, onde tudo é proibido, salvo o que for permitido; a ditatorial, tipo Coréia do Norte, onde tudo é proibido, mesmo o que é permitido; e a brasileira, onde tudo é permitido mesmo o que é proibido. Nelson Rodrigues dizia que o brasileiro padece do complexo de vira-lata, traduzindo a inferioridade em que o nativo se coloca ante o mundo. Hoje, há um complexo maior: o de Faraó. Haja olhos para contemplar a arquitetura faraônica que se espraia pelo país na forma de construções suntuosas, edifícios majestosos, obras de desenhos arrojados.
D. O habitat dos faraós
O Brasil se habilita a ser o hábitat ideal para abrigar o sono eterno dos faraós, fustigados pelo eco da turba que chega às suas tumbas. Se suas majestades só se sentem confortáveis em pharao-onis, termo do velho latim para significar "casa elevada", é isso que encontrarão no Planalto brasiliense, também conhecido como morada dos faraós no século 21. O fausto, a opulência, o resplendor, a exuberância se elevam nos espaços, sob o ditame inquestionável de que, se a obra tiver de ser construída em Brasília, haverá de receber o selo de Oscar Niemeyer e, por consequência, não sofrerá limites de gastos.
E. O governo cede aos partidos
Nossa legislação deixa de lado o princípio da equidade da representação para compensar os desequilíbrios regionais pela via parlamentar, agravando uns partidos e beneficiando outros. Assim, o sistema torna-se injusto. A indisciplina partidária, por sua vez, leva o presidente a sair a campo, tentando cooptar alianças para formar uma coalizão. A composição do governo implica, necessariamente, inserção de partidos na administração, gerando ferrenha disputa entre eles. A consequência se faz sentir na permanente instabilidade das relações entre Poderes Executivo e Legislativo.
F. A democracia delegativa e o presidencialismo imperial
A base da maioria, vetor de democracias consolidadas, é ameaçada. Para aumentar os buracos, o poder presidencial patrocina uma democracia delegativa, dentro da qual o chefe do Executivo usa e abusa de medidas excepcionais para legislar, no caso, as medidas provisórias e emendas à Constituição. Alguém já disse: "O governo é como se fosse um pote de água benta, cabe tudo ali." Entende-se, pela imagem extravagante, que a água abençoada é a mais apropriada para molhar dedos, sejam eles sujos ou limpos, de cristãos e não-cristãos que se benzem nos templos. Desse modo, a democracia brasileira seria o hábitat de espécimes que, de tão variados, só mesmo aqui encontram condições de sobrevivência. Basta contemplar o arranjo federativo, que abriga figuras como presidencialismo imperial, bicameralismo, sistemas proporcional e majoritário e multipartidarismo.
G. O país dos desperdícios
Há um PIB e meio desperdiçado, ou seja, jogam-se no lixo R$ 5 trilhões. Se a montanha de riquezas perdidas pudesse ser preservada, o país estaria, há tempos, no ranking mais avançado das potências. A que se deve isso? Primeiro, a uma cultura política plasmada no patrimonialismo, explicada anteriormente. O Estado é um ente criado para garantir nosso alimento e bem-estar. O jeito perdulário de ser do brasileiro começa, portanto, com a visão do Estado-mãe, providencial e protetor, no seio do qual se abrigam a ambição das elites políticas e o utilitarismo de oportunistas. O (mau) exemplo dado pelos faraós do topo da pirâmide acaba descendo pelas camadas abaixo, na esteira do ditado "ou restaure-se a moralidade ou nos locupletemos", que uns atribuem a Stanislaw Ponte Preta e outros ao Barão de Itararé.
- Parte II
Raspando o tacho
- A cascata na chácara do Torto é a mais recente denúncia da mídia. A chácara do Torto recebeu uma recauchutagem, pelo olhar de Janja, e a paisagem naquela casa de campo ficou mais bonita. E o que é que tem, perguntam os defensores da penteada. Não pode o presidente arrumar o que lhe é posto à disposição? Ou tudo deve ficar lá, sem reformas, caindo aos pedaços de bolor? Os recursos não são os olhos da cara.
- A conspiração do golpe insere, quase todos os dias, novos episódios. Generais e coronéis golpistas ganham espaços de denúncias. Mas os que não aderiram ganham espaços minúsculos nos jornais, revistas e redes.
- As tarefas de Alexandre de Moraes são questionadas. Se fossem ilegais, seriam permitidas por seus pares? O STF é um colegiado onde a maioria vota. Quem não deve gostar dessa provocação é o eminente jurista, escritor e integrante da Academia Brasileira de Letras, José Paulo Cavalcanti Filho.
- Dizem que o STF se apropria de tarefas dos Poderes Legislativo e Executivo. Mas o Supremo só age quando é acionado a interpretar a letra constitucional. Então...
- A seleção brasileira é esculachada por sua péssima performance. Com sobras de murros e porradas no técnico Dorival Júnior. Ora, e se pensarmos que temos no Brasil uns 100 milhões de técnicos? Deixo de fora, as técnicas mulheres. Rsrs.
Fecho com o afamado mote.
- O mundo gira e a Lusitana roda.