Porandubas Políticas

Porandubas nº 867

O texto analisa o impacto da volta hipotética de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, descrevendo a transformação de Trump de outsider para uma figura poderosa na política americana.

13/11/2024

Abro a coluna com uma historinha de Tancredo Neves, que mostra a índole matreira do grande político das Minas Gerais.

Um disfarçado sorriso

No segundo semestre de 1984, como chefe do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero, coordenei um debate com os presidenciáveis Tancredo Neves e Paulo Maluf. Eram candidatos à presidência em eleição indireta, que ocorreria em 15 de janeiro de 1985, quando Tancredo venceu Maluf com 480 contra 180 votos e 26 abstenções. Salão nobre do Teatro Gazeta, enorme, lotado. Tancredo veio primeiro. Aplaudido de pé após um debate que terminou por volta de 23h. Por sugestão do banqueiro e ex-prefeito de São Paulo, Olavo Setúbal, fomos (pequeno grupo de professores) jantar com ele no elegante restaurante-pub de Geraldo Alonso, o famoso publicitário, o Santo Colomba, na rua Padre João Manoel. Sentei-me ao lado dele. Puxei conversa. Falamos de política. "Gaudêncio, de onde você é?", indagou. Observara o sotaque. Respondi: "Sou do RN". A conversa girou então sobre Dinarte Mariz, Aluízio Alves, Djalma Marinho, os Rosados etc. O vinho bom descia suave. De repente, no meio de animado papo, Tancredo fecha os olhos e abre um leve bocejo. Nem houve aviso prévio. Fiquei preocupado. Será que a conversa está chata? Setúbal, sentado na nossa frente, com sua voz de barítono, pisca o olho e avisa, sabendo que ele iria ouvir:

- Professor, não se incomode. É assim mesmo. Quando ele quer ir embora, não fala. Simplesmente, inventa que está dormindo.

Mas era visível seu cansaço. Olhei de leve para nosso ex-primeiro-ministro e confesso ter observado um disfarçado sorriso nos lábios. Setúbal pagou a conta e saímos. Felizes por termos participado de um histórico encontro com a matreirice mineira.

Mais uma de Tancredo.

Conchavo

Premido pelos casuísmos, Tancredo Neves foi obrigado a fundir o seu PP com o MDB de Itamar. Alguns pepistas pularam do barco e protestaram alegando conchavo. Tancredo foi curto e seco: "Conchavo é a identificação de ideias divergentes formando ideias convergentes." Tinha razão. Muitas curvas desembocam em retas.

O mundo com Trump

A vitória de Donald Trump nos EUA causou uma borrasca no oceano da política. O empresário do universo do divertissement operou um quase milagre: volta ao Salão Oval da Casa Branca depois de obter vitória no voto popular e na votação que lhe garantiu laçar a vitória, inclusive em todos os sete Estados-pêndulo. Virou um político de mão cheia. Desde os tempos de George Bush, pai, há mais de 20 anos, o partido republicano não alcançava tão retumbante vitória. O outsider da política transforma-se no dirigente mais poderoso da maior democracia ocidental. Um quase milagre. O quase fica por conta da tese de que na política, tudo é possível.

Deportação

Trump, nesses dias, reafirmou seu compromisso de campanha: realizar uma megaoperação de deportação em massa de imigrantes ilegais, que são alguns milhões dos 11 milhões de imigrantes nos EUA. Escolheu já o czar das fronteiras, um linha dura, que já executou a tarefa de deportar imigrantes ilegais no primeiro governo Trump, chegando a separar famílias.

Novos rumos

O fato é que o dono do império Trump abre novos rumos na democracia americana, puxando valores do passado para a vida cotidiana, inaugurando novas veredas e até atropelando o ordenamento institucional, formado pelos pais fundadores da Nação. Donald tem um estilo rompante. E, agora, com o domínio das casas congressuais, se imagina um ser que pode tudo. Mesmo o que se considera, hoje, impossível.

Adaptação

Os países da constelação ocidental já procuram adaptar seus sistemas para conviver, com certa harmonia, com o trumpismo. Os Estados da constelação asiática olham, curiosos, para além dos horizontes. Uma nova economia emergirá, com novos eixos. Uma nova maneira de pensar e fazer a política está sendo concebida. O Salão Oval vai se encher de ultra-radicais do conservadorismo e amigos leais. Aos amigos, a partir de Elon Musk, tudo. Aos inimigos, a mão pesada do poder.

A família

Trump estará cercado por um grupo familiar: filhos(as), genros e outros. Um círculo fechado. Uma barreira intransponível para penetras.

E o Brasil, hein?

O país terá relações institucionais com os EUA. A amizade que Lula construiu com Obama dará adeus. O pragmatismo ditará as formas de relacionamento. Trump não gosta de Lula e vice-versa. Sob esse pano de fundo, Bolsonaro tentará usar seus canais de relacionamento com o presidente americano, que já o convidou para a posse em 20 de janeiro. Irá? Esse escriba não aposta nessa possibilidade. O STF não lhe dará guarida. Seu passaporte está retido. O que Trump poderá fazer? Proibir a entrada do ministro Alexandre de Moraes nos EUA? Também não acredito nisso.

Raspando o tacho

Abro a segunda parte com uma recorrente lembrança sobre o ethos brasileiro.

Quatro tipos de sociedade

- Há quatro tipos de sociedade no planeta: 1. a inglesa, liberal, onde tudo é permitido, exceto o que é proibido; 2. a alemã, rígida, onde tudo é proibido, exceto o que for permitido; 3. a ditatorial (Coréia do Norte), fechada, onde tudo é proibido mesmo o que for permitido; e 4. a brasileira, onde tudo é permitido mesmo o que for proibido.

- Pois bem, por causa dessa extrema liberalidade, do desrespeito às leis e implantação de um estado de anomia, a paisagem nacional é propícia para ruptura da norma. As pessoas costumam praticar pequenos delitos, ponte para os médios e grandes ilícitos, donde emerge o conceito de "país da impunidade".

- O PCC não tem receio de mostrar a cara. O assassinato de um empresário-delator no aeroporto de Cumbica é o exemplo de que o poder informal corrói o tecido institucional, desmoralizando o Poder do Estado brasileiro.

Tarcísio de Freitas

- O governador de São Paulo emagreceu 10 kg, de olho no Palácio do Planalto, para onde pensa em entrar nos tempos vindouros.

Lula

- Vai cortar gastos, atendendo aos conselhos de Fernando Haddad, ou vai deixar o orçamento como está, preservando os recursos dos programas sociais, como defendem a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, e sua ala?

- Lula foi liberado para viajar. Deve rearrumar sua agenda internacional, logo, logo. Para alegria dos assessores que apreciam um passeio.

Alcolumbre

- O senador do Amapá deverá ser o próximo presidente do Senado, substituindo o mineiro Rodrigo Pacheco. Favas contadas.

Motta

- O deputado paraibano Hugo Motta deverá ser o próximo presidente da Câmara. Favas contadas.

As metades

- Numa noite, às vésperas de 24 de agosto de 1954, quando se matou, Getúlio Vargas conversava, desalentado, desencantado, com José Américo de Almeida, seu ministro da Viação. Confessa:

– Impossível governar este país. Os homens de verdadeiro espírito público vão escasseando cada vez mais.

– Presidente, e o que é que o senhor acha dos homens de seu governo?

– A metade não é capaz de nada e a outra metade é capaz de tudo.

Fecho a coluna com o monsenhor Aristides, de Minas.

Mata o bicho

O monsenhor Aristides Rocha, mineirinho astuto, fazia política no velho PSD e odiava udenistas. Ainda jovem, monsenhor foi celebrar missa em uma paróquia onde o sacristão apreciava boa aguardente. Um dia, o sacristão, seguindo o ritual, sobe o degrau do altar com a pequena bandeja e as garrafinhas de vinho e água, e não vê uma pequena barata circulando entre as peças do altar. Monsenhor interrompe o seu latim e, de olho na bandeja, diz baixinho ao sacristão:

- Mata o bicho...

O sacristão não entende a ordem. Atônito, fica olhando para o jovem padre, que repete a ordem, agora com mais energia:

- Mata o bicho, sô!

Ordem dada, ordem executada. O sacristão não se faz de rogado. Diante dos fiéis que lotavam a capela, ele pegou a garrafinha e, num gole só, sorveu todo o vinho da santa missa.

No interior de Minas, "matar o bicho" é dar uma boa bebericada.

(Do livro de Zé Abelha, A Mineirice).

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Colunista

Gaudêncio Torquato jornalista, consultor de marketing institucional e político, consultor de comunicação organizacional, doutor, livre-docente e professor titular da Universidade de São Paulo e diretor-presidente da GT Marketing e Comunicação.