Porandubas Políticas

Porandubas nº 807

Uma análise do processo de construção de conteúdos, por Gaudêncio Torquato.

7/6/2023

Abro com as deliciosas historinhas de Leonardo Mota, o saudoso folclorista.

Onde mora o dr. Agriço?

Quem entra no "Hotel Roma" de Alagoinhas, na Bahia, vai com os olhos a uma tabuleta agressiva em que peremptoriamente se adverte:

Pagamento adiantado, hóspedes sem bagagens e conferencistas

Também, em Pernambuco, o proprietário do hotelzinho de Timbaúba é, com carradas de razão, um espírito prevenido contra conferencistas que correm terras. Notei que se tornou carrancudo comigo quando lhe disseram que eu era conferencista, a pior nação de gente que ele contava em meio à sua freguesia. Supunha o hoteleiro de Timbaúba que eu fosse doutor de doença ou doutor de questão. Por falar em Timbaúba. Há ali um sobrado, em cuja parte térrea funciona uma loja de modas, liricamente denominada "A Noiva". O andar superior foi adaptado para residência de uma família. Eu não sabia de nada disso quando tendo indagado do Major Ulpiano Ventura onde residia o dr. Agrício Silva, juiz de Direito da comarca, recebi esta informação chocante:

- O Doutô Agriço? O Doutô Agriço está morando em riba d' "A Noiva"...

Raspando o tacho...

Recomeço com Porandubas imerso em dúvidas: essas mensagens estão sendo recebidas? E, se chegam ao receptor, quantas são internalizadas, ou explicando melhor, quantas são interpretadas e recebendo feedback? Quantas alicerçam o edifício do leitor, contribuindo para melhorar seu painel de conhecimentos? Em suma, qual o resultado da equação custo/benefício? Vale a pena se esforçar para compor painéis informativo-intepretativo-opinativos e constatar que tais pedaços do bolo de comunicação vão diretamente para a cesta de lixo da história?

Canibalização

Vejo que o processo de construção de conteúdos está sendo edificado sobre areia movediça. Lá se vão duas, três horas ou mais de pescagem conteudística, depois de jogar as redes para as diversas partes do lago. E zero de aproveitamento. É frustrante. As referências sobre fatos socialmente significativos se perdem nas marés do niilismo, que emergem de todos os lados.

A seara literária

Por isso mesmo, que tal jogar a rede na seara literária, produzindo contos, crônicas, ensaios e coisas adjacentes, sem querer mexer a colher nas panelas da poesia, cheia de gigantes da beleza e da estética? Que tal, por exemplo, tentar verificar o que se passa nas roças que cercam a literatura, examinando coisas como as ideias que Ítalo Calvino começou a descrever em Seis Propostas para o Próximo Milênio, um livreto que reuniu seis palestras de Calvino antes de morrer?

Lembrando...

Em Seis Propostas para o Próximo Milênio, Calvino reúne cinco conferências por meio das quais propunha a perenidade de determinados valores literários para o próximo milênio, listadas pelo autor na seguinte ordem: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Contudo, o autor faleceu antes de escrever a última conferência.

A leveza

A leveza, na concepção de Calvino, seria ancorada em elementos diversos que permeiam textos literários, capazes de fazer com que o leitor vivencie esta sensação. O autor faz considerações sobre a construção textual sinalizando como sendo esses elementos a corrente filosófica, o ponto de vista, as ferramentas linguísticas peculiares, a definição da ideia e a precisão na linguagem, visando estimular, em especial, a percepção. Esta característica tem o condão de afinar a volatilidade, descrevendo-a como algo mais leve que uma nuvem, uma espécie de campo de impulsos. Sua percepção se sente em três acepções: um despojamento de linguagem que permite aos significados consistência pouco densa; a narração de um raciocínio atravessado por itens que assegurem a abstração e, por fim, a formação de figuras visuais leves.

A rapidez

Refere-se à duração do texto, que propicia ao leitor uma colcha de detalhes em favor do ritmo, da lógica na narrativa. Calvino a vê como o nó de uma rede de correlações invisíveis, o mecanismo para a continuidade da narrativa, fazendo com que o leitor transite num campo de forças que envolve um liame verbal (uma palavra que dê ideia de continuidade) e um liame narrativo (elemento que sustenta a narrativa numa relação lógica de causa e efeito). Ouçam quanta poesia... no verso... Quadrupedante putrem sonitur quatitur ungula campum. Fechem os olhos e vejam a poeira levantada pelos cavalos ao trotear nos pedaços de pedra, nesse clássico verso de Vergílio, na Eneida: os cascos, com seu som de galope de quatro patas, estão sacudindo a planície de pó... O autor explica a rapidez de estilo e de pensamento como desenvoltura, mobilidade, a capacidade de juntar as partes no todo. Também distingo essas qualidades na expressão de muitos poetas e contistas brasileiros. Nossos grandes escritores, romancistas, cronistas e poetas - Machado de Assis, Álvares de Azevedo, Murilo Rubião, Cora Coralina, J.J.Veiga, Clarice Lispector, os sabiás modernistas da crônica (Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta, José Carlos Oliveira), o incomparável Carlos Drummond de Andrade, o retraído Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Nélida Pinon, João Ubaldo, Ledo Ivo, Osman Lins.

A exatidão

Exatidão é a terceira vertente literária de Ítalo Calvino, o cinzel que o escultor usa para lapidar sua obra, inserir visão particular, apor um diferencial, narrar o detalhe, ser preciso na narrativa, evitando fórmulas abstratas, anônimas, as dobraduras da linguagem – esses efeitos retóricos que diluem significados, ocupando muito espaço para dizer pouco. O exemplo de exatidão apontado pelo escritor que nasceu em Cuba, mas passou a vida na Itália, é o gênio de Borges: "cada texto seu contém um modelo de universo ou de um atributo do universo – o infinito, o tempo, o inumerável".

A multiplicidade

Valor insubstituível para a literatura, significando a capacidade de descrever a complexidade inextricável do mundo, a visão múltipla de sujeitos, vozes, olhares, sentimentos, desejos, expectativas, sonhos, frustrações.

A consistência

A conferência sobre a consistência, que talvez refutasse os chamados hábitos lights que teria a literatura contemporânea, não foi escrita por Calvino, que faleceu antes de concluir a sexta proposta para o milênio. Não podemos, entretanto, perdê-la de vista, especialmente para não permitir que as ideias de leveza e rapidez se confundam com a de superficialidade. Como tais valores haverão de impactar a palavra escrita na seara das novas tecnologias, nos ambientes multimídia? A Internet é a negação da literatura ou o resgate de especificidades? Seria a junção mais acessível de elementos técnicos, garantindo a sobrevivência da literatura neste e nos próximos milênios? Seria o palco mais aberto para se descrever relatos desde que o homem contou a primeira história numa caverna? Ora, a literatura está viva e corre pelas veias das mentes criadoras. Deixo aos leitores de Porandubas os pensamentos sobre tais questões...!

Raspas do tacho...

- A lengalenga de Lula e Arthur Lira sobre articulação política prova, de um lado, que o presidente deu ordem ao motorista para ligar o carro mas este não sai do lugar. Ele mesmo pegou a direção.

- Pelo andar da carruagem, Luiz Inácio terá algumas montanhas a mais a escalar, desde que tomou posse. Triplica o número de curvas e obstáculos.

- Lula quer aparecer na história como o político que tirou o Brasil do buraco. Isso faz sua cabeça.

- Rui Costa não deve permanecer muito tempo na Casa Civil. O ministro tem índole rompante.

- Alexandre Padilha é um perfil mais afinado às conveniências. Mas os tempos são outros.

- As Forças Armadas, sob Lula, retraem-se. E voltam aos tempos de muita transpiração e conversas que lembram consp...

- Não há clima para movimentos de ruptura nas frentes institucionais.

- Uma andorinha só não faz verão. E muitas voando na mesma direção podem dar ideia de convergência de rumos. No governo Lula, as aves se dispersam.

- O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, MDB, começa a crescer no conceito dos paulistanos.

- A propaganda partidária fora das campanhas eleitorais, como as inserções que vemos nas TVs, é uma homenagem às mulheres. Nunca vi tantas representantes levantando bandeiras de partidos.

- As dores do corpo humano são diferentes a cada ciclo de vida. Mas a fé atenua sua intensidade.

- Há uma teia de abelhas que tecem os véus das colméias. São os verdadeiros heróis do cotidiano, entre elas e eles, nomes como Fernanda, Juliana, Mariana, Samanta, Thiago, César, Rafael, Luiz, Eduardo, Luciana, Daniela, Bárbara, Dorinha, Donaldo. Lembro de alguns, em nome de quem homenageio um generoso grupo que me ajudou a suportar as dos últimos tempos.

Fecho com pequeno lembrete aos políticos.

- Um bom marketing ajuda a eleger, mas é o candidato quem se elege. Marketing mal feito, ao contrário, ajuda um candidato a perder as eleições. Não adianta um bom marketing se o candidato é um boneco sem alma. Candidato não é sabonete. Tem vida, sentimentos, emoção, tristeza e alegria. Muita coisa depende dele, de sua alma, de seu fervor, de suas crenças, enfim, de sua identidade. Protagonistas da política não são produtos de gôndolas de supermercado. As inserções publicitárias na mídia até podem exibir um candidato de forma genérica, por falta de tempo para expor conteúdo. Mas o eleitor não se conformará com meros apelos emotivos e chavões-antigos, como os usados para embalar perfis saturados (candidatos beijando crianças e velhinhos, tomadas em câmera lenta mostrando o candidato no meio do povo). Hora da verdade. Estamos longe de 2024, mas já tem gente se apoiando nas estacas do marketing capenga.

Maquiavel

Atenção: "Um príncipe precisa usar bem a natureza do animal; deve escolher a raposa e o leão, porque o leão não tem defesa contra os laços, nem a raposa contra os lobos. Precisa, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos." Arremata o perspicaz Maquiavel. "não é necessário ter todas as qualidades, mas é indispensável parecer tê-las."

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Colunista

Gaudêncio Torquato jornalista, consultor de marketing institucional e político, consultor de comunicação organizacional, doutor, livre-docente e professor titular da Universidade de São Paulo e diretor-presidente da GT Marketing e Comunicação.