Porandubas Políticas

Porandubas nº 776

Hoje, quinta-feira, o Brasil reagiu bem aos atos eleitorais em comemoração ao bicentenário da Independência.

8/9/2022

Nesses tempos de questionamento das urnas eletrônicas, essa historinha explica muita coisa.

Coronelismo

O coronel Lucas Pinto, que comandava a UDN no Vale do Apodi/RN, não dormia em serviço. Quando o Tribunal Eleitoral exigiu que os títulos eleitorais fossem documentados com a foto do eleitor, mandou um fotógrafo "tirar a chapa" do seu rebanho, aliás, do seu eleitorado. Numa fazenda, um eleitor tirava o leite da vaca quando foi orientado a posar para a foto. Não teve dúvida: escolheu a vaca como companheira do flagrante. Mas o fotógrafo, por descuido, deixou-o fora. O coronel Lucas Pinto não teve dúvida. Ao entregar as fotos aos eleitores, deparando-se com a vaca, não perdeu tempo e ordenou ao eleitor: "prega a foto aí, vote assim mesmo, na próxima eleição, nós arrumamos a situação". Noutra feita, o coronel levou as urnas de Apodi para o juiz, em Mossoró, quase 15 dias após as eleições. Tomou uma bronca.

– Coronel, isso não se faz. As eleições ocorreram há 15 dias.

– Pode deixar, seu juiz. Na próxima, vou trazer mais cedo.

Não deu outra. Na eleição seguinte, três dias antes do pleito, o velho Lucas Pinto chegava com um comboio de burros carregando as urnas. Chegando ao cartório, surpreendeu o juiz:

– Taqui, seu juiz, as urnas de Apodi.

– Mas coronel, as eleições serão daqui a três dias.

– Ah, seu juiz, não quero levar mais bronca. Tá tudo direitinho. Todos os eleitores votaram. Trouxe antes para não ter problema.

Idos das décadas de 50/60. Não havia grandes empreiteiras financiando campanhas. E não tinha governante denunciando fraude nas urnas. A empreitada ficava mesmo a cargo dos coronéis.

Panorama

Hoje, quinta-feira, o Brasil reagiu bem aos atos eleitorais em comemoração ao bicentenário da Independência. O país rachado ao meio viu os comícios do presidente em Brasília e no RJ. Pequena dose de preocupação com o que pode ocorrer com a fala do presidente de que a história pode se repetir.

Comparação

Bolsonaro teve um foco em suas falas: deixar claro que ele é o bem e o Lula é o mal. Mais uma vez, acenou com a possibilidade de usar a força, lembrando o passado, quando o Brasil usou as curvas do golpe e da ditadura. Nunca se viu um governante fazer comparação de primeiras-damas. E se autoproclamar "imbrochável". Coisa de entes da barbárie civilizatória. Com todo respeito à senhora Michelle.

As mulheres

A presença de Michelle Bolsonaro sinaliza o protagonismo das mulheres na cena eleitoral. As mulheres dos candidatos, a partir de Michelle, Janja, casada com Lula, e Lu, esposa de Alckmin, mostram o empoderamento feminino. A política, doravante, terá um tom mais forte da orquestra das mulheres.

A inação do governo

Afinal, qual foi o ato comemorativo do Bicentenário da Independência promovido pelo governo? O desfile militar de Brasília? Os atos espetaculares da Marinha, Exército e Aeronáutica no Rio? O Museu do Ipiranga, restaurado, graças ao governo de João Doria em São Paulo, se apresenta como o evento mais forte. O governo Federal foi inerte nessa tarefa.

Ganhos

O governo Bolsonaro pode ter se apropriado do simbolismo do bicentenário da independência. Mas a vinda do coração de Pedro I não rendeu a Bolsonaro os ganhos que esperava. O coração conservado em formol não foi propriamente um empreendimento de alto impacto. O Brasil, porém, pouco tem a comemorar nesse momento em que se comemora os 200 anos de sua independência. Nossa democracia está em débito com seus compromissos. Quais?

Compromissos básicos

A democracia padece, aqui e alhures, de uma crise crônica. Crise que se fundamenta em desvios de seu ideário e em promessas não cumpridas pelos sistemas democráticos. Norberto Bobbio dizia que ela tem deixado de cumprir certos compromissos básicos: a defesa de uma sociedade pluralista, o fim das oligarquias, a ampliação dos direitos dos cidadãos, a eliminação do poder invisível (os arcana imperii – o Estado informal dentro do Estado formal), a realização da meta de educação para a cidadania, combatendo o estado de apatia social.

Vetores da crise

Que vetores formam a argamassa da crise? Eis alguns:

Arrefecimento doutrinário – As doutrinas, como flores velhas, passam a murchar, fazendo fenecer as utopias, estiolando as vontades cívicas e maltratando valores fundamentais do Humanismo. As antigas clivagens ganharam novos paradigmas. A antiga luta de classes perdeu lugar no novo cenário da sociedade de consumo. Nessa moldura, decresce a densidade ideológica da competição política e se expande a tecnoburocracia; os grupos sociais aproximam suas convergências; os problemas de natureza técnica se sobrepõem às contundentes questões sociais; e os aparelhos do Estado burocrático monopolizam as informações.

Arrefecimento partidário – No campo partidário, as consequências são concretas e visíveis, a partir do estiolamento doutrinário, arrefecimento ideológico e consequente declínio dos partidos políticos. Os partidos de massas, que nasceram sob o signo das lutas operárias, mudam seus paradigmas, alterando processos, moderando atitudes, ajustando-se aos contextos econômicos, integrando-se à expansão econômica, atenuando seu fogo ideológico.

Declínio dos Parlamentos – No campo parlamentar, a crise solapou as arenas dos Parlamentos, com sensível redução das funções da representação política. Parcela de sua força foi transferida para as tecnoestruturas do Poder Executivo.

A redução do papel do Estado – Grandes mudanças ocorrem nas máquinas governativas. O Estado tende a reduzir seu papel como fonte de direitos e como arena de participação. Serve apenas como instrumento de controle e regulação econômica.

A força do mercado – O liberalismo insiste na importância do mercado como mecanismo autorregulador da vida econômica e social, e, por consequência, no próprio papel tecnocrático do Estado. O cidadão encarna o perfil do consumidor intensamente preocupado com questões materiais e insensível a sentimentos cívicos. Este 7 de setembro desperta sentimentos de ódio e revanche.

A ascensão da micropolítica – Em decorrência de uma reversão de expectativas, comunidades passam a se inspirar pela moeda sonante do pragmatismo, ou seja, a satisfação de demandas imediatas e reprimidas. A macropolítica é substituída pela micropolítica, a política das pequenas coisas, das necessidades próximas aos conjuntos sociais: a iluminação do bairro, a escola próxima de casa, o alimento barato, o transporte rápido e acessível a todos.

A organicidade social – Um dos fenômenos mais interessantes da contemporaneidade, com reflexos sobre a moldura institucional, é a organicidade social. Em todas as esferas sociais e em todos os quadrantes, formam-se grupos em torno de entidades que passam a intermediar interesses e a fazer pressão. São novos polos de poder.

A personalização do poder – Atores e atrizes, dândis, estrambóticos e figurantes de todos os espaços do Estado-Espetáculo povoam os meios de comunicação. Na moldura de glorificação, abre-se imenso espaço para a personalização do poder, que se concentra nos indivíduos. Na sociedade de massa, o poder escapole das estruturas clássicas de autoridade e converge para pessoas e grupos. Veja-se essa campanha eleitoral. São as pessoas, não os partidos que dão o tom. A personalização do poder abre a esfera do fulanismo/beltranismo. Os partidos se dividem em domínios de A, B e C.

Acesso à Justiça – A maior parcela da população continua com as portas da Justiça fechadas. O direito à Justiça é um sagrado preceito de nossa Constituição. Previsto no inciso XXXV do artigo 5º da CF de 1988. Responsabilidade do Estado. Direito que já era sinalizado pelo Código de Hamurabi, conhecido pela lei do Talião: "olho por olho, dente por dente". Os poderosos usam todo tempo esse direito.

O caos

O que explica a propensão de nossos homens públicos a assumirem o papel de atores de peças vis, cerimônias vergonhosas e, ainda, abusarem de linguagem chula, incongruente com a posição que ocupam? A resposta pode ser esta: a despolitização e a desideologização. Os mecanismos tradicionais da democracia liberal estão degradados. Outra resposta aponta para o paradigma do "puro caos", que o professor Samuel Huntington identifica como fenômeno contemporâneo e que se ancora na quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, em ondas de violência, no declínio da confiança na política e na solidariedade.

Secos & molhados

O panorama sob o galpão de secos e molhados.

1. Bolsonaro espera empatar com Lula nas proximidades de 25 de setembro. Os discursos de ontem mostram um candidato em luta para chegar mais perto de Lula.

2. 2º Turno – Deixa de ser uma hipótese para entrar no campo das certezas.

3. Lula – A voz ocupa o canto das altas prioridades. É seu grande anzol.

4. Cresce o rumor de que Geraldo Alckmin seria o comandante da área de economia, se Lula vier a ganhar.

5. Cresce o rumor de que, em caso de vitória de Bolsonaro, os militares terão papel mais ativo na administração.

6. Ciro Gomes tem um deadline: 20 de setembro. Se até esta data não crescer mais uns pontinhos, na margem dos 15%, fará articulações junto ao lulopetismo.

7. Simone Tebet espera que as próximas pesquisas mostrem uma ultrapassagem por Ciro.

8. Os eventos de hoje servem como choque de entusiasmo para laçar os rebanhos bolsonaristas.

9. O fato é que Bolsonaro apropriou-se do "civismo" do ódio e da revanche, o que foi confirmado nas falas de ontem.

10. Apesar do esforço das alas que brigam e urram, a campanha está fria. Com exceção para eventos programados. Mas as ruas são um deserto descolorido. Não se veem bandeiras, cores e outras ferramentas de atração e laço de eleitores.

11. As motociatas estão presentes, também, nos eventos eleitorais de Donald Trump, que já ocorrem nos EUA visando os pleitos para o Legislativo.

12. Os militares fizeram do 7 de setembro um ato de espetacularização em Copacabana.

13. Nunca se mobilizou tanta tropa para a segurança dos atos "cívicos".

14. Ante uma sociedade muito organizada, o golpe vai para longe, muito longe.

15. O Auxílio Brasil, de Bolsonaro, é entendido nas margens carentes como o Bolsa Família de Lula.

Fecho com linguagens para os nossos tempos.

Linguagens para 2022

1. A linguagem da afirmação.

2. A linguagem da factibilidade/credibilidade.

3. A linguagem das pequenas coisas.

4. A linguagem da participação - o NÓS versus o EU.

5. A linguagem da verificação - exemplificação - como fazer.

6. A linguagem da coerência.

7. A linguagem da transparência.

8. A linguagem da simplificação.

9. A linguagem das causas sociais - os mapas cognitivos do eleitorado.

10. A linguagem da tempestividade – proximidade.

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Colunista

Gaudêncio Torquato jornalista, consultor de marketing institucional e político, consultor de comunicação organizacional, doutor, livre-docente e professor titular da Universidade de São Paulo e diretor-presidente da GT Marketing e Comunicação.