Abro a coluna com uma deliciosa historinha da Bahia.
Se deixou, não há crime
Cosme de Farias foi um grande advogado dos pobres da Bahia. Enveredou também pela política. Vereador e deputado estadual por muito tempo. A historinha. Um ladrão entrou na Igreja do Senhor do Bonfim e roubou as esmolas. Cosme de Farias foi para o júri:
– Senhores jurados, não houve crime. Houve foi um milagre. Senhor do Bonfim, que não precisa de dinheiro, é que ficou com pena da miséria dele, com mulher e filhos em casa com fome e lhe deu o dinheiro, dizendo assim:
– Meu filho, este dinheiro não é meu. Eu não preciso de dinheiro. Este dinheiro foi o povo que trouxe. É do povo com fome. Pode levar o dinheiro.
E ele levou. Que crime ele cometeu? Se houve um criminoso, o criminoso é o Senhor do Bonfim, que distribuiu o dinheiro da Igreja. Então vão buscá-lo agora lá e o ponham aqui no banco dos réus. E ainda tem mais. Senhor do Bonfim é Deus, não é? Deus pode tudo. Se ele não quisesse que o acusado levasse o dinheiro, tinha impedido. Se não impediu, é porque deixou. Se deixou, não há crime.
Cosme de Farias ganhou no verbo. O réu foi absolvido.
Panorama visto do alto
As melhores visões são do alto. Quando os olhos estão próximos aos objetos, certas partes serão bem focadas, mas os contextos podem ficar de fora. É oportuno um enquadramento que flagre o conjunto. Ver do alto é melhor. Vamos tentar enxergar os fenômenos sob essa perspectiva.
1. A cereja
As esquerdas tentam compor uma ampla frente sob a liderança de Luiz Inácio. A cereja para atrair fatias do centro e até da direita tem o nome de Geraldo Alckmin. É um chamariz que impacta no primeiro momento, mas, com o tempo, tende a perder a vitalidade e cair na mesmice da velha política. Truque de Lula, que, ao fim e ao cabo, se for o vitorioso, fará o governo do PT, com o PT e para o PT. Compromisso histórico. Pano de fundo: os dois governos Lula. Não, os de Dilma.
2. O bolo da esquerda
Como é sabido, o PT virou uma igreja. Mais acolhedora a seus fiéis. O núcleo duro está saindo dos buracos em que se escondeu e mostra sua velha cara: Gleisi, Mercadante, Mantega, Franklin Martins, os laboratórios da Fundação Perseu Abramo etc. O bolo seria uma federação de partidos de esquerda, liderada pelo PT e pelo PSB. Difícil de agradar ao paladar dos partidos por causa das conveniências eleitorais. O PT vai acabar indo pra guerra com seus exércitos.
3. O bolo da direita
À direita, a novidade teria o nome de União Brasil, fusão do PSL, com 55 deputados, e o DEM, com 26. Seria o maior bolo do Parlamento. Seria. Mas como as conveniências partidárias nos Estados são bem diferentes, a debandada está bem assinalada. Até o fechamento da janela partidária, em abril, espera-se uma debandada de pelo menos 20 deputados da bancada bolsonarista do PSL. Bivar pode ir aposentando sua ideia de compor uma chapa como vice.
4. O voo baixo de Sergio Moro
A escalada do ex-juiz Sergio Moro está muito devagar, quase parando. É verdade que, nas últimas semanas, Moro mergulhou fundo nas águas da política, correndo regiões, conversando com uns e outros, até posando junto à imagem do padre Cícero, de Juazeiro/CE. Mas não tem agregado apoios substantivos. A galera parlamentar espera vê-lo alçar voos mais altos, subindo nas pesquisas. Oscila entre 8% e 12%.
5. Mulher na chapa
Além de Alckmin, há outra cereja no bolo eleitoral. Uma mulher para compor a chapa. Mulher está na onda eleitoral, envolvida em um manto de grandes valores – honestidade, sinceridade, maior assepsia política, ou seja, se posiciona melhor como contraponto à velha política. Fosse mais conhecida, Simone Tebet estaria bem posicionada nas pesquisas eleitorais. É considerada, ainda, como um forte potencial na condição de vice em outras chapas, como a tucana liderada por João Doria. Mas o MDB decidiu bancar sua candidatura que conta com a simpatia de tucanos de plumagem densa, como Tasso Jereissati e José Aníbal.
6. Os ciclos da campanha
É evidente que a campanha ainda está morna. Vivemos o primeiro ciclo – o das articulações, fusões, noivados e casamentos. Entraremos no segundo ciclo em abril, quando o quadro geral se firmar na parede. Maio/junho e julho serão meses de consolidação e fechamento de articulações. O terceiro ciclo, como se vê, será dedicado aos lançamentos oficiais. Agosto, o quarto ciclo, é o mês dos grandes embates. Setembro, o pico da montanha e a corrida pelo país. O Senhor Imponderável poderá nos visitar a qualquer momento. O quinto ciclo será o mês das grandes decisões. Na primeira semana de outubro, teremos festas e velórios.
7. Os círculos do presidente
Pergunta recorrente: Bolsonaro crescerá? Irá ao segundo turno? Respostas: a) a depender das circunstâncias – economia, adjutórios sociais, intensa polarização, clima de guerra – ou eu ou ele; b) mudança de postura, tentativa de ser mais equilibrado; c) apoio centrífugo – mais engajamento dos contingentes do centro; d) divisão extremada da esquerda, que pode dividir os votos do arco ideológico. Em suma, Jair precisa engrossar, avolumar os círculos de apoio e engajamento.
8. As lembranças dos dutos
A imagem do duto que joga dinheiro – aquela massificada imagem de corrupção, divulgada diariamente por meses pela TV Globo por ocasião da Lava Jato deverá aparecer. A não ser que a Globo, a essa altura, já tenha decidido caminhar junto com Lula, o que já faz parte das conversas. A banalização da imagem negativa acabou repartindo seus efeitos por toda a classe política.
9. Ciro, sempre o mesmo
Não será desta vez que o marqueteiro João Santana alavancará a imagem de Ciro Gomes. Mudança ligeira de linguagem passará despercebida pelas correntes das margens sociais. Ciro é Ciro e não haverá argamassa capaz de mudar sua fachada. É bom de debate e conhece o Brasil. Mas o pouco debate não deixa emergir tais qualidades.
10. João Doria, o vacinador
O governador de São Paulo será embalado no manto das vacinas, como o homem público que abriu as gavetas da vacinação em massa. Mas o jeito João Doria de ser – sofisticação e paulista no corpo e mente – será uma barreira de difícil travessia. Faz um bom governo. Mas o governo gira em torno de si. Parece não ter equipe. Suas mensagens não chegam às massas.
11. Simone, a surpresa
Simone Tebet, a senadora do MDB do Mato Grosso do Sul, se conseguir ter boa visibilidade, poderá alçar voo. Tem estofo e postura de inovação.
12. Bolsonaro na Rússia
Imprudência, inoportunidade, falta de bom senso. São os termos que cobrem a marcada visita de Bolsonaro à Rússia, nesse momento de tensão com a Ucrânia. Uma bela foto de Putin e Bolsonaro no Kremlin será vista pelo mundo. Mas o isolamento do Brasil será mais intenso. Bolsonaro sonha com a foto., que não o fará um estadista.
13. Haddad versus Garcia
Em São Paulo, é muito provável que Fernando Haddad, o ex-prefeito da capital, seja o candidato do PT a enfrentar Rodrigo Garcia, que foi eleito pelo DEM, mas virou tucano. É este vice-governador que João Doria quer eleger governador. Face à polarização, Garcia terá mais chance que Haddad. São Paulo, capital, abriga os maiores núcleos antipetistas do país. A conferir.
14. Ezequiel no RN
O presidente da Assembleia Legislativa do RN, Ezequiel Ferreira de Souza (PSDB), está articulando uma ampla frente para derrotar a atual governadora, Fátima Bezerra. Ele tem condições, mesmo considerando que a máquina governamental que administra é uma forte alavanca da governadora. Mas a máquina legislativa é também poderosa.
15. Disputa ferrenha
O deputado José Dias (PSDB) explica: "A primeira etapa é a definição da candidatura a senador. Quanto a isso, não há decisão alguma. Mas, o meu desejo e a minha expectativa é de que Rogério Marinho e Fábio Faria entrem em entendimento e decidam essa questão até o final dessa semana, pois não temos muito tempo. Essa conversa é apenas entre os dois ministros e as lideranças do governo do presidente Jair Bolsonaro. Nós não temos a menor interferência nesse diálogo. Acreditamos que o melhor nome da oposição para o governo é o de Ezequiel, que conta com o apoio político de, pelo menos, 18 deputados estaduais e 130 prefeitos espalhados pelo Estado". Fátima lidera a intenção de votos. Se Lula estiver bem folgado nas pesquisas, será difícil remover a governadora.
O carro se atolou-se
Nesses tempos de chuvarada, fecho a coluna com atoleiro.
Walfredo Paulino de Siqueira foi um típico coronel da política pernambucana. Escrivão de polícia, comerciante, deputado, industrial, presidente da Assembleia, vice-governador de PE. Era uma figura folclórica, como conta Ivanildo Sampaio, ex-diretor de redação do Jornal do Commercio, de Pernambuco, e meu contemporâneo na faculdade. Um dia, dois eleitores discutiam sobre o uso da partícula "se". O exemplo era com um automóvel que ficara preso em meio a um atoleiro. O primeiro afirmava que a forma correta de se expressar era falar que "o carro atolou-se"; o outro insistia que não; o correto era "o carro se atolou". Consultado, Walfredo deu a sentença salomônica:
– Escutem aqui. Se os pneus que ficaram presos foram os dois da frente, o correto é dizer que "o carro se atolou". Se foram os pneus traseiros, a gente fala assim: "o carro atolou-se". Mas, acontecendo de ficarem presos os quatro pneus, os da frente e os de trás, então, meus filhos, a forma correta mesmo é "o carro se atolou-se"...