Abro a coluna com uma historinha de Tancredo Neves, que mostra a índole matreira do grande político das Minas Gerais.
Um disfarçado sorriso
No segundo semestre de 1984, como chefe do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero, coordenei um debate com os presidenciáveis Tancredo Neves e Paulo Maluf. Eram candidatos à presidência em eleição indireta, que ocorreria em 15 de janeiro de 1985, quando Tancredo venceu Maluf com 480 contra 180 votos e 26 abstenções. Salão nobre do Teatro Gazeta, enorme, lotado. Tancredo veio primeiro. Aplaudido de pé após um debate que terminou por volta de 23h. Por sugestão do banqueiro e ex-prefeito de São Paulo, Olavo Setúbal, fomos (pequeno grupo de professores) jantar com ele no elegante restaurante-pub de Geraldo Alonso, o famoso publicitário, o Santo Colomba, na rua Padre João Manoel. Sentei-me ao lado dele. Puxei conversa. Falamos de política. "Gaudêncio, de onde você é?", indagou. Observara o sotaque. Respondi: "Sou do RN". A conversa girou então sobre Dinarte, Aluízio, Djalma Marinho, os Rosados etc. O vinho bom descia suave. De repente, no meio de animado papo, Tancredo fecha os olhos e abre um leve bocejo. Nem houve aviso prévio. Fiquei preocupado. Será que a conversa está chata? Setúbal, sentado na nossa frente, com sua voz de barítono, pisca o olho e avisa, sabendo que ele iria ouvir: "professor, não se incomode. É assim mesmo. Quando ele quer ir embora, não fala. Simplesmente, inventa que está dormindo". Mas era visível seu cansaço. Olhei de leve para nosso ex-primeiro-ministro e confesso ter observado um disfarçado sorriso nos lábios. Setúbal pagou a conta e saímos. Felizes por termos participado de um histórico encontro com a matreirice mineira.
Lição de sabedoria
Do padre João Medeiros Filho, em "Uma Vacina em Prol da Ética e da Moralidade", no jornal Tribuna do Norte (RN): "Além das vacinas contra a epidemia que grassa pelo Brasil, necessita-se também imunizá-lo contra o ódio, radicalismo, egoísmo, interesses escusos, desrespeito, injustiças e mentira. É incontestável que a fragilidade da saúde pública é um problema crônico, que se arrasta há décadas. Não faltam alertas e denúncias de profissionais e líderes. Não se improvisam soluções duradouras, nem existem respostas automáticas e mágicas. Urge uma dose maior de solidariedade e otimismo. É necessário crescer no altruísmo, inoculando na sociedade mais respeito, diálogo e amor."
Marés altas e baixas
Vamos ao cenário nacional. A pandemia vai e vem, não dando sinais de que vai amainar em curto prazo. Os dados exibem picos de mortes e contaminados, a ponto de os gráficos mostrados nas TVs começarem a gerar o efeito de "dormência", a repetição rotineira que já não impacta, causa susto ou sensação de coisa nova. O registro nas últimas semanas é de mais de mil mortes por dia. Uma estatística que causaria pânico fosse banhada por um toque de originalidade. Temos de nos acostumar com a ideia de que conviveremos com esse bicho feroz durante todo o ano. Não nos enganemos. E mesmo após vacinadas, as pessoas não se livrarão das variantes desse corona mortífero. O Carnaval vem aí, mesmo proibidas as concentrações populares. Não se espere bom senso na folia.
Mas o Brasil...
Costumo lembrar os quatro tipos de sociedade no planeta: 1. a inglesa, liberal, onde tudo é permitido, exceto o que é proibido; 2. a alemã, rígida, onde tudo é proibido, exceto o que for permitido; 3. a ditatorial, fechada, onde tudo é proibido mesmo o que for permitido; e 4. a brasileira, onde tudo é permitido mesmo o que for proibido. Pois bem, por causa dessa extrema liberalidade, do desrespeito às leis e implantação de um estado de anomia, a paisagem nacional é propícia para ruptura da norma. As pessoas costumam praticar pequenos delitos, ponte para os médios e grandes ilícitos. Donde emerge o conceito de "país da impunidade".
Panorama político
Não há como abrir um grande sorriso quando se tenta ver nosso amanhã na política. Os protagonistas mudam de posição, mas não de índole. A agenda do Parlamento na esfera das reformas caminhará a passos de tartaruga. Arthur Lira, mesmo com vontade de mostrar algum grau de independência, estará ao lado do Palácio do Planalto. Rodrigo Pacheco terá uns centímetros a mais de independência, nada que ameace as intenções do Poder Executivo. O que pode ocorrer é um certo remanejamento no traçado partidário. O DEM, por exemplo. Depois de atravessar um bom tempo numa posição mais central do arco ideológico, na vivência de Rodrigo Maia como presidente da Câmara, mostra-se inclinado a habitar o espaço da direita, após a liberação da bancada para votar em qualquer candidato na Câmara. Despejaram o voto em Lira, em explícita traição ao acordo firmado por Maia para votar em Baleia Rossi, MDB.
O DEM com Bolsonaro
Trata-se de uma decisão que aproxima os demistas do governo Bolsonaro. O presidente do partido, ACM Neto, por mais que diga que comanda a entidade, mas não é seu proprietário, cometeu explícita traição. Na verdade, agiu de acordo com as vontades dos correligionários, que tentam assegurar posições na administração. O DEM poderá, até, ser o partido de Bolsonaro, caso o presidente queira. ACM Neto deverá recebê-lo sem objeções. Já se fala até na entrega ao DEM do Ministério da Cidadania. Especula-se, ainda, com a hipótese de Neto vir a ser vice na chapa de Bolsonaro. Mas ele pretende, mesmo, é ser governador da Bahia. Rodrigo Maia, por sua vez, promete sair do DEM, tendo como opção preferencial o PSDB. O fato é que os partidos iniciam uma atividade de agregação de perfis, em um processo de engorda que tem como mira o pódio de 2022. É muito cedo para decisões de alianças e parcerias.
Um xeque em Garcia
O DEM criou um imbróglio com o vice-governador de SP, Rodrigo Garcia, fiador de João Doria para 2022, sendo ele mesmo o nome preferido pelo governador para disputar o governo paulista em 2022. E como ficará a questão? Garcia teria condição de permanecer no DEM ou é mais provável que saia e ingresse no PSDB? A decepção de Doria com o DEM foi grande e a parceria com o partido em 2022 subiu ao muro. A aproximação dos antigos pefelistas com Bolsonaro, nos últimos dias, elimina essa hipótese. Por isso, Rodrigo Garcia também tende a deixar a sigla. Não vai se afastar de João Doria.
O PSDB sem escopo
Os tucanos estão perdidos na floresta. Não sabem que rumo tomar, eis que o leit motiv da sigla, hoje, é o personalismo, o quem, os possíveis nomes que estarão no palco presidencial. Perdeu o PSDB sua bandeira social-democrata, como, aliás, outros partidos também enfiaram na gaveta seus escopos programáticos. Qual é o programa para o país? Qual seria a extensão do cobertor social? Qual o tamanho do Estado? O que e como privatizar? Quais as ações a serem empreendidas no tempo, hoje, amanhã e depois de amanhã? Afinal, como deve ser refeita a bandeira social-democrata? Como estão mudando os entes social-democratas nas democracias ocidentais?
MDB vai para onde?
A mesma indefinição impregna o espírito emedebista. O que fazer, para onde ir, com quem fazer parcerias? É cedo, pode-se alegar, para fazer composição. Mas onde está o MDB velho de guerra? Tinha um plano – Ponte para o Futuro, coordenado pelo ex-presidente Michel Temer. E hoje, ante a mudança de cenários, qual é a proposta do partido para o país? Enfim, o que se observa nos grandes entes partidários é um imenso vazio programático, onde estão poucos nomes de expressão. As massas sumiram. Em suma, os partidos carecem de um cimento programático. Como lesmas, derretem facilmente com um punhado de sal. Viraram o que Otto Kirchheimer, um dos grandes constitucionalistas alemães, designa de "catch all parties" ("partidos do agarra tudo").
PSD: um olho no norte, outro no sul
Gilberto Kassab é, reconhecidamente, um hábil articulador. O PSD entrou na composição de Arthur Lira. Kassab teria uma aliança com João Doria. Mas os últimos acontecimentos o afastam do governador, eis que seu PSD está de mãos dadas com o Centrão, hoje comprometido com o bolsonarismo. Mas o PSD herdou do seu homônimo do passado o estilo do matreiro Tancredo Neves. Um olho no norte, outro no sul. A bancada na Câmara é grande. Gilberto Kassab se mostra hábil na formação e no crescimento da sigla. Até 2022, passará um oceano de água por baixo da ponte. O ex-prefeito de São Paulo sabe a hora em que tem de submergir e de emergir. O partido também carece de escopo programático.
PDT com chances
O PDT está com posição bem localizada no espectro ideológico. Habita o centro-esquerda. Basta, agora, preencher as lacunas de seu escopo. Carlos Lupi conseguiu atrair e sustentar Ciro Gomes no partido. Um perfil preparado. Precisa, apenas, conter a língua. Mas o ex-ministro da Fazenda conhece bem o riscado. E em São Paulo há um moço bem talhado no métier da política: Gabriel Chalita, que cai bem no papel de candidato ao governo do Estado de São Paulo em 2022.
A régua dividida
Em 2002, o sonho de Bolsonaro é polarizar novamente com o PT, como temos dito e repetido. Da mesma forma, o sonho do PT é enfrentar o bolsonarismo, mas contando com uma ampla frente das oposições. Lula ainda pensa em concorrer. Este analista não acredita que, condenado em 2ª instância, ele possa vir a ganhar a condição de candidato. Será difícil que o STF anule os processos a que se submete. Por isso, Lula já sinalizou com o nome de Fernando Haddad. Ocorre que a mancha suja sobre a imagem do PT enfraquece, e muito, sua ambição. O lulismo parece fadado a um ciclo mais longo de afastamento do centro do poder. Então, olhemos para a régua: se os candidatos do centro – e suas margens direita e esquerda – forem muitos, com tendência à dispersão, os candidatos das extremidades terão mais chances de disputar um segundo turno. A economia e as circunstâncias no segundo semestre de 2022 definirão o rumo do páreo. O centro só leva a melhor se seus integrantes formarem um grupão.
Toma lá...
O populismo afeta a ação dos governantes. Em um momento tormentoso como o que vivemos, deixar de tecer o cobertor social seria o suicídio de um governante. Eis porque o governo Bolsonaro deverá implantar um novo pacote social. Já estão batizando o programa com o nome de Bônus de Inclusão Social – BIP. Seriam três parcelas de R$ 200,00, que se vincularão à obrigatoriedade de um curso de qualificação profissional. Esse BIP entraria na PEC do Pacto Federativo.
Fecho a coluna com o mineiro monsenhor Aristides.
Mata o bicho
O monsenhor Aristides Rocha, mineirinho astuto, fazia política no velho PSD e odiava udenistas. Ainda jovem, monsenhor foi celebrar missa em uma paróquia onde o sacristão apreciava boa aguardente. Um dia, o sacristão, seguindo o ritual, sobe o degrau do altar com a pequena bandeja e as garrafinhas de vinho e água, e não vê uma pequena barata circulando entre as peças do altar. Monsenhor interrompe o seu latim e, de olho na bandeja, diz baixinho ao sacristão:
– Mata o bicho...
O sacristão não entende a ordem. Atônito, fica olhando para o jovem padre, que repete a ordem, agora com mais energia:
– Mata o bicho, sô!
Ordem dada, ordem executada. O sacristão não se faz de rogado. Diante dos fiéis que lotavam a capela, ele pegou a garrafinha e, num gole só, sorveu todo o vinho da santa missa.
No interior de Minas, "matar o bicho" é dar uma boa bebericada.
(Do livro de Zé Abelha, A Mineirice).