Especial – uma visão geral da crise
Hoje, excepcionalmente, a Coluna terá como foco o movimento que abre um novo ciclo social/institucional no país. Está um pouco mais extensa. Pedimos compreensão das leitoras e leitores. Mesmo assim, vou abrir com uma historinha, como tem sido costume nesse espaço. Escolhi uma parábola que se aplica aos nossos governantes e políticos.
Não sabem que não sabem
"Há pessoas que não conseguem perceber o que se passa ao seu redor. Não vêem que não vêem, não sabem que não sabem". Pequeno relato. Zé caiu em um poço e está a 10 metros de profundidade. Olhava para os céus e não viu o buraco. Desesperado, começou a escalar as paredes. Sobe um centímetro e escorrega. Passou o dia fazendo tentativas. As energias começaram a faltar. No dia seguinte, alguém que passava pelo lugar ouviu um barulho. Olhou para o fundo do poço. Enxergou o vulto de Zé. Correu e pegou uma corda. Lançou-a no buraco. Concentrado em seu trabalho, esbaforido, cansado, Zé não ouve o grito da pessoa : "Pegue a corda, pegue a corda". Surdo, sem perceber a realidade, continua a tarefa de escalar, sem sucesso, as paredes. O homem na beira do poço joga uma pedra. Zé sente a dor e olha para cima, irritado, sem compreender nada. Grita furioso :
– O que você quer ? Não vê que estou ocupado ?
O desconhecido se surpreende e volta a aconselhar :
– Aí tem a corda, pegue-a, que eu puxo.
Mais irritado ainda, responde sem olhar para cima :
– Não vê que estou ocupado, ó cara. Não tenho tempo para me preocupar com sua corda.
E recomeça seu trabalho. Parábola : "Zé não vê que não vê, não sabe que não sabe". Os nossos governantes e políticos não perceberam a corda que a galera há tempos joga para que eles possam sair do fundo do poço. Não vêem que não vêem, não sabem que não sabem.
A travessia brasileira
As manifestações que ocorrem no país são diferentes dos eventos ocorridos em décadas passadas, quando se identificavam eixos e discursos centrais (Diretas Já, impeachment de Collor), lideranças e intensa participação da esfera política, por meio de partidos. Distingo três movimentos nos eventos :
1. A canoa atravessa o rio
Um pequeno grupo manobra a canoa no rio para atravessá-lo de um lado para outro. O nome da canoa : MPL – Movimento pelo Passe Livre. Composição dos canoeiros : estudantes. A intenção desejada : reduzir a tarifa de ônibus em SP. A canoa começou a abarrotar de gente. Todos queriam entrar na canoa e chegar à margem oposta.
2. A canoa se transforma em navio
O Movimento pelo Passe Livre, de maneira surpreendente e rápida, assume enorme proporção. A primeira movimentação junta, em torno do grupamento inicial de estudantes, setores variados : ativistas de movimentos em defesa de gêneros, de minorias étnicas e sexuais, funcionários públicos, pais de estudantes, comerciários, punks e anarquistas. A reivindicação básica – redução da tarifa de ônibus – dilui-se na massa discursiva que se ouve e se vê nas palavras de ordem e faixas levantadas pela multidão em passeata :
- contra a corrupção;
- contra a violência;
- contra os serviços precários de saúde;
- contra a deteriorada malha educacional;
- (ao lado de outras bandeiras – como maioridade penal, contra a criminalização do aborto, contra a PEC 37, etc.);
- altos custos dos estádios/dificuldade de acesso a eles.
3. Transatlânticos invadem os mares
A travessia se transforma, de repente, em gigantesca navegação em uma frota de transatlânticos que abrigam milhares de pessoas em mais de 100 capitais e cidades do país. Calcula-se que um milhão de pessoas participou da última manifestação, ocorrida semana passada. A movimentação apresentou algumas características :
- violência da PM no primeiro grande movimento, segunda-feira, dia 17; cenas de vandalismo e depredação de prédios públicos; destruição de carros de empresas jornalísticas;
- hoje, mais de uma semana depois, já chega a quatro mortes (três atropelados e uma gari que morreu de enfarte), além de centenas de feridos em muitas capitais e cidades;
- distanciamento dos grandes partidos políticos. Mesmo os pequenos partidos (de extrema esquerda) foram repelidos pela multidão;
- um discurso difuso – propostas genéricas no entorno da proposta central do MPL : redução de tarifas de ônibus;
- contingentes de classe média foram encorpados por contingentes de jovens da periferia. As massas se fundiram em um grande movimento sem lideranças tradicionais.
Surpresa
As esferas política e governamental foram tomadas de surpresa. Algumas razões estão por trás do susto. Alinho algumas :
- a falsa impressão de que o conforto econômico – mesmo sob ameaça de volta da inflação - apaziguava o país;
- a falsa impressão de que os jovens, descrentes da política, formam grupamentos amorfos, desinteressados e sem motivação para acorrer às ruas;
- a surpresa pela rapidez da formação dos contingentes; pouco se tinha ideia das condições de interatividade e mobilização propiciadas pelas redes eletrônicas da internet;
- a área política encheu-se de indagações : O que dizer ? O que fazer ? Como fazer ?
Gigante não estava adormecido
A ocupação das ruas de grandes e médios centros urbanos por multidões é algo inusitado na feição institucional. Por ocasião das Diretas Já e do Impeachment de Collor, as motivações eram claras e grandes lideranças puxavam as mobilizações. Depois do surto Collor, reaparecem as massas na rua. Ocorre a maior mobilização de toda a nossa história, fato que merece ampla reflexão por emergir como contraponto ao cenário de harmonia que se imaginava, até então. O que significa ? Reflete o fechamento de um ciclo de aceitação/passividade e sinaliza a abertura de um tempo de participação da sociedade, como um todo, no processo decisório.
Democracia direta
Sob certo aspecto, podemos falar da emergência de traços da democracia direta em contraposição à democracia representativa, em crise. O povo percebe que tem a força para fazer mudar as coisas. A redução do preço das passagens de ônibus foi o atestado mais evidente dessa capacidade. Geraldo Alckmin decide suspender também os aumentos do pedágio em SP. Tal percepção do povo funciona como fator de animação/disposição/animus animandi.
PNBIS
Além das causas acima enumeradas, qual o eixo que moveu a ampla movimentação ? Não há um, mas um conjunto de fatores. Podemos inseri-los dentro do que designo de Produto Nacional Bruto da Insatisfação Social (PNBIS), composto por mazelas nas seguintes áreas :
a) Corrupção generalizada;
b) Educação deteriorada;
c) Saúde em estado precário - estruturas inadequadas, ineficientes, obsoletas;
d) Violência em expansão nas médias e grandes cidades;
e) Sistema de mobilidade urbana locupletado;
f) Gastos excessivos em estádios de futebol;
g) Saturação com o modus operandi da velha política. Escândalos e denúncias.
Bolsa-cabeça
Sensação é a de que o ciclo do Bolsa-Barriga (que resulta do Bolsa-Família) está esgotado. Fecha-se. Estudantada de todos os lados quer um Bolsa-Cabeça. Um pacotão para embalar as grandes demandas populares.
Raiva e indignação
Essas áreas compõem a massa de negatividade / insatisfação / indignação que chega, rotineiramente, ao sistema cognitivo do cidadão comum. Para agravar o quadro, os avanços alcançados pela sociedade e a esperança de que o país abra novos capítulos sofrem reveses. (Veja-se, a propósito, a declaração do ministro Dias Toffoli, de que o mensalão poderia durar, ainda, dois anos. Um balde d'água fria na cabeça dos esperançosos brasileiros, que distinguiam o final do maior processo criminal julgado pela mais alta Corte do país).
Exuberância dos estádios
Além disso, os estádios desta Copa das Confederações aquecem fogueiras. Ouçam-se as vaias a Dilma e ao Joseph Blatter no Mané Garrincha, em Brasília, enquanto o MPL já estava nas ruas. A indignação continuou depois, com pancadaria feia entre polícia e manifestantes à frente dos estádios de Fortaleza, de Brasília e BH. A revolta contra a exuberância dos palácios futebolísticos certamente contribuiu para a indignação, sob pano de fundo do contraste com a miséria, falta de saúde, educação, moradia, segurança pública, etc.
Padrão FIFA
"Portugal construiu 10 estádios 'padrão FIFA' para a Eurocopa de 2004. Sete anos depois o país estava falido...10 estádios fatídicos que hoje apodrecem ao sol. A Grécia cometeu iguais loucuras para as Olimpíadas do mesmo ano. Teve a honra de falir primeiro". (João Pereira Coutinho, escritor português, cientista político, FSP, 25/6/2013)
O rastro de pólvora
A mobilização social conta com um formidável aparato comunicativo : as redes sociais. Que funcionam como o rastro de pólvora. Os participantes se comunicam, as palavras de ordem são disparadas e os comandos (quase anônimos) vão somando milhares de seguidores e militantes das causas patrocinadas. A mobilidade dos grupamentos é algo surpreendente, a denotar a existência de um novo ator no desenho da movimentação das massas : a internet.
Sem lideranças e discurso difuso
Chama a atenção a ausência de lideranças tradicionais ou mesmo novas, que tenham visibilidade ou marquem presença na galeria dos comandantes de grandes operações de massa. Essa é outra característica da movimentação social. Os discursos nem sempre são claros, mostrando que a vontade do manifestante de abrir a locução ou ir à rua é o que interessa. Essa situação tende a ser mais visível nas próximas etapas das movimentações, quando novas propostas serão encaminhadas e verbalizadas. O MPL, depois de anunciar que se retira do palco paulistano, por enxergar oportunismo por parte de parcelas e grupos políticos, voltou atrás e promete novas mobilizações.
Clarificação
Sejam quais forem os patrocinadores/mobilizadores, uma séria questão se imporá ao movimento : clarificar metas, objetivos e propostas para que as vozes não caiam no vazio. Na polifonia da Torre de Babel. Os políticos, por sua vez, não são bem vistos nas movimentações, como se viu nas ações de queima e rasgo de bandeiras partidárias. Mas em algum momento, a área política haverá de se fazer presente porque as coisas passam necessariamente pelos governantes do Executivo e pelos parlamentares do Poder Legislativo.
A fala da presidente
A fala da própria presidente Dilma se explica. Tinha de dizer que o país tem governo. Aceita as demandas da massa, mas repele a violência. Afinal, a ordem tem de ser mantida. Mas prometer o que ? Pacotes para a educação ? Quando serão implementados ? Médicos importados ? Convocar governadores e prefeitos para formação de um pacto nacional ? Tudo isso entra na onda verborrágica. A presidente parece perdida. Sob os apelos crescentes do Volta, Lula.
A propósito
Matéria da revista Veja traz importante revelação de que episódio de queima de pneus, em Brasília, teria o patrocínio de forças e quadros do PT, desejosos de por lenha na fogueira. A ABIN, por sua vez, não pescou nada na maré cheia de ondas turbulentas.
MPL : despreparada
Seis representantes do MPL foram convidados para uma conversa com a presidente. Após a conversa, o porta-voz do grupo abriu o verbo : a presidente é uma despreparada para debater e apresentar soluções concretas para a questão dos transportes públicos. Um bumerangue.
A galera
Urge atentar para a composição das galeras e turbas. Por enquanto, a composição dos contingentes nas ruas mostra os seguintes setores : estudantes, participantes de movimentos em defesa de minorias e igualdade de gêneros, pais de estudantes, funcionários públicos, punks, comerciários, anarquistas, desempregados, profissionais liberais, e, depois, incorporação de segmentos jovens das periferias. Estão fora desse circuito as categorias profissionais de trabalhadores, principalmente os setores abrigados nas Centrais Sindicais. A propósito, as Centrais falarão, hoje, com a presidente para apresentar sua pauta de reivindicações. Mas, para surfar na onda, já marcaram greve geral para o dia 11 de julho. Vai pegar ?
Os próximos passos
Para onde o movimento seguirá ? Quais serão os próximos passos ? Quais as bandeiras a serem erguidas nos próximos movimentos ? Algumas trilhas são enxergadas :
- A melhoria da qualidade dos serviços públicos; essa bandeira continuará a ser desfraldada.
- Os problemas relacionados às localidades. A pedra jogada no meio da lagoa tende a chegar às margens. As questões de zonas e regiões da capital e regiões do Estado entrarão nas pautas do movimento.
- Nos Estados e outras capitais, a tendência será a mesma. Dará vazão às demandas específicas de cada comunidade.
- A área política deverá entrar no circuito. As oposições vão buscar motivos para endurecer as críticas.
- O governo Dilma, por sua vez, já se mostra inclinado a arrumar um "Bolsa-Cabeça", alguns programas voltados para agradar aos jovens.
Slogan do momento
"Melhorar a Vida do Povo".
Fechando a coluna
A barafunda quase se instala nesses últimos dias. Fecho a coluna com a polêmica sobre o plebiscito para a Constituinte Exclusiva, no bojo da qual seria feita a Reforma Política.
Plebiscito
No intuito de tomar a dianteira e mostrar serviço, a presidente apresentou um pacotão de 5 pontos para responder ao anseio das galeras. O ponto polêmico foi a proposição para se realizar um plebiscito para ouvir a sociedade sobre uma Constituinte Exclusiva, que realizaria a reforma política. A polêmica se acendeu. Não é possível uma Constituinte para decidir sobre uma especificidade. Ministros do STF, juízes e a OAB se pronunciaram em contrário à ideia da presidente. Que acabou recuando.
A voz do vice presidente
Chamou a atenção o fato de o vice-presidente Michel Temer, um dos mais renomados constitucionalistas do país, não ter sido ouvido preliminarmente sobre a questão. Tivesse ouvido o vice-presidente, Dilma não teria passado pelo dissabor de ouvir as contrariedades à sua ideia. Michel acabou consertando o imbróglio. E deu a solução. Disse à presidente, por ocasião de uma reunião com a OAB, não existir na CF a figura de constituinte exclusiva para tratar de uma questão específica.
A proposta de Michel Temer
Propôs que ela encaminhasse ao Congresso uma mensagem solicitando que o Parlamento convocasse um plebiscito para auscultar o desejo do povo sobre as diversas questões que permeiam a política, do tipo : tipo de voto – distrital, distrital misto, proporcional; fim ou não das coligações proporcionais, coincidência das eleições, etc. Sairia o modelo de interesse da sociedade. A se realizar em agosto. Até 3 de outubro, esse modelo deveria ser aprovado para entrar em vigor já em 2014.
Conselho aos governantes
Esta coluna dedica sua última nota a pequenos conselhos a políticos, governantes, membros dos Poderes e líderes nacionais. Na última coluna, o espaço foi destinado aos políticos e governantes. Pelo momento que o país atravessa, continuaremos a dirigir a eles o conselho :
1. Procurem auscultar as demandas do povo. E passem do discurso à ação.
2. Evitem promessas que não podem ser cumpridas; falas de caráter demagógico.
3. Saibam ler os sinais de um novo tempo. Comunicação governamental ultrapassa a linha do marketing de glorificação. Requer interatividade e compromisso com as comunidades.