Na crise, a dose de realismo que nos faltava
Lula passou rapidamente da reação irônica do início da semana passada – "Crise ? Perguntem ao Bush." – para uma visão mais realista a respeito da crise da economia (não mais apenas das finanças) dos EUA e seus reflexos no mundo e no Brasil. Viu que esta história de "estamos imunes" é propaganda enganosa. Ou conversa de quem não quer – ou não sabe, ou não pode agora – agir.
Como se aprendia nas velhas cartilhas escolares, "Ivo viu uva". Ou melhor, Lula viu o "precipício" que se abria à sua frente, na expressão ouvida pela repórter Cláudia Safatle, do jornal "Valor Econômico".
O presidente do BC andou pelos EUA sondando o ambiente na semana passada. Mandou torpedos alertadores para cá. Não é hora para tergiversações. Os poucos mais de US$ 200 bilhões de reservas nossas são muito menores do que o capital especulativo que veio pra cá nos últimos dois anos, aproveitando nossa bonança e nossas facilidades. E o dinheiro, sabe-se desde todos os tempos, é covarde.
Lula fica esta semana no olho do furacão. Vai receber homenagens, fazer palestras e participar da reunião de abertura dos trabalhos da Assembléia anual das Nações Unidas. Tem ótimos números para mostrar, mas a esta altura os investidores não querem apenas acompanhar o que mostra o retrovisor. Querem ver a luz lá na frente. No caso, quais são os remédios preventivos que tomaremos. Nessa hora farão falta algumas medidas estruturais que poderíamos ter tomado nos tempos de bonança. E não tomamos por empecilhos políticos.
Ensinava Machado de Assis que é melhor cair das nuvens do que do terceiro andar. Ainda podemos pousar suavemente das nuvens.
A crise o jogo político-eleitoral
Toda a estratégia eleitoral de Lula, para 2010, estava montada no momento edificante vivido pela economia brasileira e seus efeitos benéficos sobre a vida dos cidadãos, maior renda, nova classe média, etc. etc. Antes do fantasma de uma possível reversão desse quadro de euforia surgir no horizonte com a imagem do Tio Sam estampada na cara, o Palácio do Planalto se considerava imbatível na sucessão presidencial. Com cacife para criar um candidato – ou mais corretamente, uma candidata – quase do nada político.
Este o desafio que está posto agora para o operadores econômicos e os conselheiros do presidente Lula : como exorcizar este fantasma, que ameaça se materializar também entre nós, ainda que apenas como um "fantasminha camarada" sem quebrar o pote no qual tem se sustentado em boa parte nossa bonança : crédito fácil e abundante, gastos públicos generosos sustentados por elevações constantes na receita tributária...
Da resposta satisfatória para este dilema dependerá a estratégia de Lula – e também da oposição – para os embates de 2010 (ver nota mais abaixo). A oposição estará se suicidando se apostar no agravamento da crise. O governo poderá matar suas pretensões se não enxergar o tamanho do abismo e render-se a tentação de deixar tudo como está.
O pacotão de Bush e seus reflexos
O pacote lançado pelo governo Bush tem o objetivo de salvar o sistema financeiro da maior crise desde os anos 30. É preciso entender algumas coisas sobre este pacote antes de tomar decisões empresariais e pessoais sobre finanças :
1) A simplicidade do pacote de medidas, incluso em um documento de apenas três páginas, indica que o governo americano ainda não tem dimensão dos problemas específicos que estão a imperar no sistema financeiro. Assim sendo, deseja ter flexibilidade para agir;
2) Os recursos, neste momento, são destinados para salvar as instituições financeiras e não alcançam os devedores do sistema de habitação, por exemplo. Portanto, o impacto no consumo e no investimento será limitado, pois dificilmente a propensão a emprestar dos bancos que serão salvos vai aumentar;
3) O pacote (simples e flexível) de Bush pode (ou deve ?) se tornar menos eficaz dependendo da atuação do Congresso em relação a ele; e o Congresso, via democratas, já avisou que quer fazer mudanças, para ter mais controle sobre o processo e para ajudar o lado dos mutuários : saberemos seus resultados até sexta-feira;
4) Além das medidas urgentes adotadas, o Governo e, sobretudo o Congresso, devem mudar a regulação do sistema financeiro que deve se tornar mais rígida. É impossível estimar o impacto destas futuras medidas sobre fundos alavancados e especulativos, tais quais os hedge funds;
5) O pacote é obviamente destinado às instituições norte-americanas ou que atuam nos EUA. Ocorre que os problemas estão espalhados sobre todo o sistema mundial, sobretudo o europeu no qual a crise está num estágio anterior ao momento dos americanos. Na Europa a crise pode ainda se tornar mais aguda;
6) Devemos nos lembrar que o déficit fiscal dos EUA já é da ordem de 6% do PIB. Uma situação muito diferente de quando ocorreu o 11 de setembro de 2001. Portanto, não existe grande espaço fiscal para alavancar a atividade econômica pela via fiscal. Assim sendo, a recessão continua sendo o cenário mais provável;
7) A onda de fusões e aquisições no sistema financeiro mundial persiste muito provável com impactos diferenciados para cada banco que vier a participar deste tipo de operação e, obviamente, para os seus acionistas. Há ainda o fato de que os grandes bancos de investimento passaram a ser holdings financeiras, agora sob regras mais rígidas do Fed e do Tesouro americano o que indica que as suas carteiras de ativos estão com problemas substanciais no momento;
8) A política monetária americana se tornou altamente incerta. O Federal Reserve na semana passada se recusou a usar a taxa de juros básica como instrumento para acalmar o mercado. A taxa foi mantida em 2% ao ano. Há uma inflação a ser combatida e, no curto prazo, esta tarefa deverá ser colocada de lado;
9) Sendo incerta a política monetária nos próximos meses, é igualmente imprevisível a movimentação das principais moedas. O dólar norte-americano até a semana passada era a moeda que estava com tendência de valorização. Daqui pra frente redobrada atenção em relação às taxas de câmbio será adotada pelos investidores e pelos bancos centrais;
10) As operações de provisão de liquidez coordenadas pelos principais bancos centrais do mundo continuarão altamente necessárias. Note-se que há comentários entre os operadores das principais mesas de dinheiro dos bancos que tais limites estão tomados no limite. Sem trocadilhos. Mais de US$ 500 bilhões estão envolvidos nestas operações. Somente na sexta os bancos centrais liberaram US$ 230 bilhões para o sistema.
Bush Jr. e a credibilidade
Bush é o presidente mais impopular da história dos EUA. Jogou o país numa guerra que custou algo como US$ 600 bilhões por meio de mentiras sobre a existência de armas de destruição de massa no Iraque. Agora está a administrar uma crise bancária sem precedentes desde os anos 30. Nos últimos meses de mandato sua figura ao lado do Secretário do Tesouro Henry Paulson e do Presidente do Federal Reserve Ben Barnanke é patética e seu discurso sofrível de vez que o diagnóstico inicial sobre a crise foi simplesmente desastroso. Vamos torcer para que o tempo passe. Bush jr. é um extraordinário empecilho para a solução da crise.
Confiança, a palavra-chave
De nada valerão as providências no campo financeiro-econômico comandadas pela dupla Bernanke-Paulson se não for restabelecida a confiança dos investidos/consumidores na solidez do sistema financeiro americano e mundial e na capacidade de seus líderes de enfrentar a crise.
E a China ?
Nunca o mundo olhou para a China como agora. Mais do que nunca ela é a esperança de dias menos piores. Se o gigante chinês desacelerar fortemente, arrasta junto boa parte da economia mundial, ao demandar menos petróleo, menos commodities...
Os Bancos americanos perguntam
Por que os investidores vão manter o dinheiro aplicado nos bancos comerciais se os fundos de money market (que correspondem aos nossos fundos DI) estão rendendo mais ? Se os investidores começarem a sacar dos bancos a coisa vai piorar.
Como o Brasil será afetado ?
É sempre difícil fazer conjecturas e previsões num momento como este. A quase totalidade da população brasileira nunca passou por uma crise como esta. É preciso entender que a atual crise é extremamente diferente em comparação com as crises que nós passamos nas décadas de 70, 80, 90 e nestes últimos anos. Portanto, todas as indicações a seguir são preliminares :
1) Cautela é mais do que necessário. Não adianta ficar imaginando o futuro num momento em que até o passado é incerto !
2) Não aposte na valorização do real aos níveis anteriores à atual crise caso o cenário agudo (desconfiança no sistema financeiro) venha a amainar. O crédito externo do país e das empresas privadas está mais restrito e os investidores que atuam de forma alavancada no país estão sacando dinheiro de todos os segmentos financeiros;
3) O mercado de ações deve ser o melhor termômetro da gravidade da crise. Trata-se do mercado que sofre menor intervenção direta do governo e aquele no qual as informações são mais transparentes para os investidores. Do ponto de vista de desempenho as ações devem sofrer o impacto de uma provável recessão e, portanto, deverão operar com retorno negativo nos próximos meses. No caso do Brasil há o agravante de que uma parte significativa das principais empresas negociadas na bolsa é ligada ao setor de commodities as quais estão com preços em queda por conta das expectativas de uma recessão mais ampla;
4) O Banco Central está com um problema crítico : o controle da inflação dependia em grande medida do desempenho dos preços das commodities (dos produtos "exportáveis" de uma maneira geral). Agora, a inflação será "importada" em função da elevação do câmbio. Quanto mais rápida e significativa for a alta das moedas frente ao real, maior será a inflação e mais forte terá de ser a reação do BC para controlar a inflação. A venda de US$ 500 milhões de nossas reservas internacionais para o mercado é uma medida correta, embora seja impossível dizer se será suficiente;
5) O sistema financeiro nacional é sadio e não tem nenhum dos problemas estruturais do mercado norte-americano e europeu. Os investidores reconhecem isso. Os bancos brasileiros com ações negociadas nas bolsas de valores dos EUA apresentaram desempenho muito superior aos bancos daquele país. Aliás, há investidores que têm operações short/long nas quais estão comprados em bancos brasileiros e vendidos em bancos internacionais. Um sinal de confiança no nosso sistema financeiro;
6) A melhor aplicação do momento é a tradicional renda fixa. Ganha-se uma belíssima taxa de juros real e o risco é muito diminuto. Também é muito interessante comprar Certificados de Depósito Bancário que estão a remunerar muito bem os seus investidores.
Uma coisa é certa...
...porém : a desaceleração do crescimento do PIB brasileiro já está na conta. O tamanho da conta será proporcional à capacidade técnica e política do governo em reagir. O Banco Central, quando se dispôs rapidamente a vender dólares, mostrou que tem as garras afiadas. E o Ministério da Fazenda, quando mostrará as suas ? Balões de ensaio foram lançados no fim de semana de Brasília, com notícias sobre possíveis cortes de gastos de custeio para segurar os investimentos programados e manter um ritmo no crescimento econômico. É esperar para ver, uma vez que o que se tem até agora é uma crônica de gastos anunciada com pagamento de salários e novas contratações.
De onde sairá o dinheiro?
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, na ânsia de mostrar ação, anunciou que os bancos oficiais, BNDES à frente, suprirão as empresas de crédito se a moeda do financiamento externo e dos bancos privados perderem o fôlego como está a ocorrer. Faltou explicar onde esses bancos vão buscar os recursos, pois eles também fazem suas captações no mercado. Como lembrou o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola, há pouco o BNDES fez uma busca de dinheiro na base de emissão de títulos. Vai pagar por ele certamente mais do que receberá pelos empréstimos. Capitalizar o BNDES, Banco do Brasil e outros via aportes do Tesouro também pode ser problema. A não ser que o governo corte fundo na carne. Então, a política...
Medida precipitada
A idéia (negada pelo governo) de autorizar a aquisição de ações da Petrobras com recursos do FGTS é, no mínimo, equivocada. Num momento em que o mundo inteiro tem dúvidas sobre como será o desempenho dos mercados no curto e médio prazo como pode alguém lançar uma proposta desta ? Imagine se as ações despencam e a taxa de desemprego sobe, duas possibilidades concretas. O trabalhador receberá menos que poderia e aí a crise de desemprego se tornará mais grave. Aparentemente, o governo se preocupa em salvar o petróleo do pré-sal, um dos motores de sua propaganda. O trabalhador não pode ser cobaia do petróleo... Este pré-sal eleitoral pode custar muito caro aos brasileiros.
Os pequenos investidores e a Bolsa ?
Apesar de toda a crise ainda não houve sinais de que a fuga de pequenos investidores no mercado de ações brasileiro tenha sido significativa. Há uma boa nova nisso : os investidores mantêm a confiança. A má notícia é que se a crise agravar, estes investidores podem perder a paciência...e o efeito "manada" é inevitável. O que está fugindo mesmo é o capital especulativo internacional. Por enquanto.
Cadê os defensores do livre mercado ?
Bem, sempre se soube que o mercado perfeito, aquela imaginação que prega o funcionamento de uma "mão invisível" que está a regular os mercados, simplesmente não existe! O momento é de intervenção total dos governos sobre os mercados. Não há nenhum profeta do livre-mercado de plantão... De outro lado, esperemos que os prosélitos da intervenção não consigam tanto poder, senão aparecerão as ineficiências do Estado, tão difíceis de serem corrigidas... A verdade está no meio, não é mesmo ?
Aviso aos leitores
Não leiam as análises produzidas pelos wall streeters há menos de seis meses atrás dando conta da "pequena dimensão da crise". Você ficará com raiva do cinismo da tigrada. Logo eles que ficarão tão ricos nos últimos anos... Como se sabe : é possível enganar todo mundo durante algum tempo, mas é impossível enganar todo mundo durante todo o tempo!!!
Depois das eleições
Anotem aí os dois temas que ocuparão a vida do mundo político depois que ele tiver saído do mergulho das urnas :
1) No governismo, a possibilidade da re-reeleição, de um terceiro mandato consecutivo para o presidente Lula. A reforma política, re-turbinada pelo Palácio do Planalto, é a senha. Lula não quer, vai seguir empurrando o palanque de Dilma Roussef, mas, como todos sabemos, ele não tem tanta influência assim entre os companheiros... Vai se falar também em coincidência de mandatos, com novas eleições apenas em 2012, para todos os cargos. Isso implica em mais dois anos para quem sairá em 2010. Os olhinhos do Congresso e das Assembléias Legislativas brilham quando ouvem o assunto. O vice José Alencar deve ser o porta-estandarte dessas idéias. Com sugestões de consultas populares. Maior será a pressão quanto maior for o sucesso das forças governistas em outubro.
2) No oposicionismo, tentar-se-á uma acomodação geral depois das caneladas eleitorais, a começar pelas do tucanato em São Paulo. Começa a vicejar a idéia de acomodar numa mesma chapa a dupla José Serra e Aécio Neves, hoje adversários na corrida pela preferência do PSDB e dos aliados DEM e PC do B. Avaliam seus idealizadores ser possível tal composição, até com a atração de parcela do PMDB, insatisfeita com o apetite petista nesta eleição municipal e não convencida da viabilidade de Dilma. Lula percebeu esse lado do perigo e sonha com um peemedebista como parceiro de chapa de sua ministra. Esbarra nas ambições do PSB do governador Eduardo Campos e do deputado e ex-ministro Ciro Gomes. As urnas de outubro aqui dirão também como será possível fazer os arranjos. O ex-presidente Fernando Henrique poderá ser o porta-estandarte do acerto das oposições.