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Fraudes contábeis: Detecção e tipificação requer análise abrangente

A técnica e a eficiência sem atribuições de valores éticos não consideram, de fato, as pessoas e as empresas.

20/8/2024

A evolução tecnológica e a crescente complexidade das operações empresariais impuseram novos desafios à integridade das informações financeiras. Nesse cenário, os SIC -Sistemas de Informação Contábil se destacam como ferramentas indispensáveis, não apenas para a gestão eficaz, mas também para a detecção e prevenção de fraudes contábeis. Este artigo visa aprofundar a análise sobre os elementos cruciais dos SIC que devem ser observados para mitigar riscos de fraude, integrando conceitos teóricos, dados empíricos e argumentos apresentados em estudos recentes, relevantes para as disciplinas do Direito, especialmente sob o prisma da imputação de ilícitos penais, civis e administrativos.

Os SIC são plataformas baseadas em tecnologia da informação, projetadas para coletar, armazenar, processar e relatar dados financeiros e contábeis, na forma de demonstrações financeiras e outras peças contábeis e extracontábeis que servem, por exemplo, à atribuição e pagamento de tributos. Tradicionalmente, um SIC é composto por três subsistemas principais: O SPT - Sistema de Processamento de Transações, o SRF - Sistema de Livro Razão Geral e Relatórios Financeiros, e o SRG - Sistema de Relatórios Gerenciais. Esses componentes desempenham funções críticas na estrutura contábil de uma organização e, se mal configurados ou monitorados, podem gerar lacunas significativas que facilitam práticas fraudulentas. É crucial destacar que eventuais inconsistências contábeis podem ser relevantes e resultar na imputação de danos e outros ilícitos civis; contudo, sob a ótica penal, faz-se necessária a comprovação de dolo para a caracterização de crimes. Um documento adulterado somente configura fraude contábil se for contabilizado. Há fraude quando há intenção dolosa, como veremos mais à frente em detalhes.

O SPT, responsável por apoiar as operações diárias de negócios, automatiza e registra transações de receita, despesa e conversão. Qualquer falha ou manipulação neste sistema pode resultar na adulteração de registros, dificultando a detecção de fraudes. Portanto, é imperativo que o SPT seja robusto e dotado de controles internos eficazes que garantam a integridade dos dados inseridos e processados. É importante ressaltar que documentos contendo erros ou que demonstrem intenção dolosa somente se caracterizam como ilícitos se e quando forem inseridos no SPT. A importância de uma estrutura sólida de controle interno é evidente, uma vez que fraudes frequentemente ocorrem devido a fraquezas neste sistema. A implementação de procedimentos de verificação automáticos e manuais pode atuar como uma barreira eficaz contra a manipulação de dados, aumentando a confiabilidade das transações registradas. Reitera-se que um documento adulterado só se torna uma fraude contábil se for efetivamente contabilizado, isto é, registrado na estrutura contábil.

O SRF e SRG, encarregados da sumarização das atividades contábeis e da geração de relatórios financeiros, devem ser continuamente auditados, tanto internamente quanto externamente, para assegurar que as informações refletidas nas demonstrações financeiras sejam precisas e verídicas. A ausência de auditorias internas rigorosas ou de controles de conformidade pode permitir que fraudes sejam mascaradas por meio de ajustes contábeis inadequados ou falsificação de dados financeiros, usualmente por meio de lançamentos manuais. Neste ponto, a governança corporativa desempenha um papel central na eficácia dos sistemas de contabilidade. A governança corporativa fragilizada, por vezes influenciada por acionistas controladores e/ou executivos empoderados, e que não exige a revisão contínua dos sistemas de relatórios financeiros, pode facilitar a perpetração de fraudes, uma vez que falhas sistemáticas podem permanecer despercebidas por longos períodos. Portanto, a imputação de responsabilidades aos administradores das empresas (como conselheiros de administração) em casos de fraudes depende da verificação da diligência e da consistência concreta (e não apenas formal) da governança corporativa.

O SRG, por sua vez, fornece à gestão interna relatórios gerenciais detalhados que auxiliam na tomada de decisões. Este sistema deve ser configurado para gerar alertas sobre discrepâncias e variações incomuns nas operações financeiras, funcionando como uma ferramenta de análise preventiva contra fraudes. No estado da arte da tecnologia moderna, relatórios personalizados que permitem o acompanhamento, muitas vezes em tempo real, das atividades contábeis são essenciais para a identificação precoce de irregularidades. O valor dos relatórios gerenciais vai além da simples apresentação de dados; eles devem ser ferramentas dinâmicas que permitam à administração reagir rapidamente a anomalias detectadas, ajustando processos conforme necessário para evitar prejuízos maiores. As estruturas de governança corporativa frequentemente utilizam esses sistemas para fundamentar suas decisões.

A importância da transparência e da confiabilidade dos sistemas contábeis na detecção de fraudes está intimamente ligada à estrutura e à governança dos SIC. Um aspecto crucial é a necessidade de que esses sistemas sejam projetados não apenas para cumprir com as obrigações legais e regulamentares, mas também para promover uma cultura de ética e conformidade dentro da organização – a técnica e a eficiência desprovidas de valores éticos não consideram, de fato, as pessoas e as empresas. Essa visão é corroborada por muitos estudos que apontam que a mera presença de sistemas tecnológicos avançados não é suficiente para prevenir fraudes; é necessário que esses sistemas estejam integrados a uma cultura organizacional que valorize a transparência e a responsabilidade.

Além dos subsistemas tradicionais, o uso de tecnologias emergentes como BI - Business Intelligence e BSC - Balanced Scorecard, integradas aos SICs modernos, contribui significativamente para a detecção de fraudes. Essas ferramentas fornecem uma visão holística das operações, identificando padrões atípicos e monitorando indicadores de performance que podem sinalizar atividades fraudulentas. A integração dessas tecnologias aos SICs permite que as empresas detectem fraudes de maneira mais proativa, identificando tendências e padrões que poderiam passar despercebidos ao escrutínio humano.

A auditoria interna, assistida por técnicas avançadas de auditoria computadorizada, também desempenha um papel essencial na detecção de fraudes. O uso dessas ferramentas tecnológicas permite a análise de grandes volumes de dados e a identificação de anomalias por meio de auditorias mais eficazes, minimizando a possibilidade de que fraudes passem despercebidas. Em um ambiente corporativo onde a auditoria interna é vista como uma área verdadeiramente estratégica, o impacto das fraudes pode ser drasticamente reduzido. Modernamente, as auditorias internas são conduzidas de modo contínuo, dentro de uma abordagem integrada que considera tanto os aspectos financeiros quanto os operacionais da empresa.

A ética corporativa, sob o prisma da prevenção de fraudes, desempenha um papel crucial. A implementação de um SIC eficaz e controlado deve necessariamente estar alicerçada em políticas de conduta ética e de compliance, que são marcos centrais para o comportamento dos funcionários em todos os níveis da organização. A adoção de códigos de conduta, treinamentos regulares e canais de denúncia confidenciais são práticas essenciais para criar um ambiente onde a fraude não seja tolerada.

Conselhos de administração independentes e a realização de auditorias periódicas por entidades externas são medidas eficazes para garantir a integridade das informações contábeis. Isso está intimamente relacionado à efetiva operacionalização da contabilidade e à elaboração de demonstrações financeiras. Governanças focadas em resultados a qualquer custo são aquelas mais vulneráveis às fraudes.

Ao observar cuidadosamente os aspectos críticos dos sistemas de informação contábil e integrar as melhores práticas de governança corporativa, as organizações podem não apenas mitigar os riscos de fraude, mas também fortalecer a confiança de todas as partes interessadas em suas operações financeiras. Do ponto de vista jurídico, é essencial respeitar os limites entre a má administração e as fragilidades de controles internos, evitando a fácil atribuição de crimes àquilo que, na realidade, representa apenas uma cultura corporativa, por vezes equivocada.

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Colunista

Francisco Petros Advogado, especializado em direito societário, compliance e governança corporativa. Também é economista e MBA. No mercado de capitais brasileiro dirigiu instituições financeiras e de administração de recursos. Foi vice-presidente e presidente da seção paulista da ABAMEC – Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais e Presidente do Comitê de Supervisão dos Analistas de Investimento. É membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo e do Corpo de Árbitros da B3, a Bolsa Brasileira, Membro Consultor para a Comissão Especial de Mercado de Capitais da OAB – Nacional. Atua como conselheiro de administração de empresas de capital aberto e fechado.