Política, Direito & Economia NA REAL

Israel contra Hamas: o necessário dissenso do Brasil

A adoção de um hard power retórico coloca o Brasil em posição de inferioridade e não o contrário.

21/11/2023

Hanna Arendt informa que “a aparência – aquilo que é visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação por todos- constitui a realidade. (...) O domínio público, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia de uns dos outros e, contudo, evita que caiamos uns sobre os outros1. No âmbito da política internacional, a constituição da realidade nos termos que ilustrou tão bem Arendt, a aparência se torna ainda mais crítica.

A política externa é sempre exercida em um cenário caótico uma vez que a evolução, análise e discernimento dos fatos decorrem mais do poder real derivado da força do que daquele que repousa no Direito. A realidade é como ela é, e a retórica pública enquanto uma forma de realidade precisa se conectar com os fatos como eles são. Cabe bom senso, portanto, e não arroubos.

A guerra entre Israel e o Hamas tem variadas e complexas angulações que permitem concluir (ou não) de forma diferente sobre o que factualmente ocorre. A “dura verdade” é que se trata de um evento inegavelmente trágico para todos os lados. Está claro, que do ponto de vista do povo palestino, esta tragédia é sobremaneira grave dadas as consequências humanas do conflito. Jamais se deve fugir desta realidade.

A despeito desta constatação, digamos, objetiva em relação à força israelense é preciso que se analise o papel e o “que é visto e ouvido por todos” da parte do atual governo brasileiro. Cabe retidão analítica e, permito-me dizer, moral.

Mesmo os fatos mais duros e tristes exigem percepções corretas, caso contrário ficamos diante do superficial quando as soluções requerem o que é essencial. O proselitismo sem as percepções realistas e corretas nos leva ao erro de condução política, cujo resultado se espalha no futuro (que amplia a falsa realidade muitas vezes de forma exponencial).

É nessa perspectiva específica que me atenho a analisar a condução do Presidente Lula e seu governo em relação à guerra Israel – Hamas.

Em primeiro lugar vejo que o governo precisa delimitar claramente o seu discurso em vista do fato de a guerra ter sido originada de forma injusta pelo Hamas (e não pelo povo palestino). A quantidade surpreendente de mísseis lançados sobre Israel evidencia claramente o fato. Aqui não cabe tergiversações. Todavia, também não cabem derivações em termos de retórica e iniciativas de política externa no sentido de que as consequências possam ser avaliadas de forma descolada desta injustiça inicial cometida pelo Hamas.

Segundo: se é uma exigência reconhecer o papel terrorista do Hamas, é preciso tornar esse reconhecimento atemporal, mesmo diante da tragédia com a qual nos defrontamos do ponto de vista humanitário do lado palestino no transcurso das operações militares. Quem causou esta tragédia stritu sensu foi o Hamas seja o momento em que estejamos.

Terceiro: alguém poderia, até mesmo, alegar, que é e foi a desastrada política de Israel em relação aos assentamentos e às questões palestinas a causa remota do desastre em curso. Para tanto, cabe lembrar ao governo brasileiro e a Lula, que esta alegação é feita também em Israel. Há, naquele país democrático, substancial oposição às políticas do atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, inclusive em relação aos tratos com os palestinos. Vale dizer que Israel enfrenta desafios relevantes e materiais no que tange às suas instituições democráticas, como muito outros países, dos EUA ao Brasil. Mesmo neste contexto, a formação de um governo de união nacional em Israel, neste exato momento, indica que a questão da guerra injusta do Hamas permite que polos tão extremos em Israel possam se somar nesta hora. Pragmaticamente, o Brasil deveria observar e atuar neste espectro em busca de soluções junto a ampla gama de posições dentro do próprio governo israelense.

Quinto: embora a retórica diplomática seja clivada em sua forma e objetivos, dentre os quais o de ser instrumento para a paz e não para a guerra – o que ocorre desde Hugo Grotius no século XVI em De Jure Belli ac Pacis- é preciso não cair na tolice de achar razoável que a ação militar de Israel não precise desalojar o Hamas de dentro de Gaza. Quem usa o sofrido povo palestino em Gaza é o Hamas. Isto é fato. Vale lembrar, nesse ponto, que não existe “um governo nacional de união” entre os palestinos porque a Autoridade Palestina não concorda com a ação do Hamas. Com efeito, a política externa brasileira precisa criar um cristalino caráter divisivo em relação à necessidade de isolar e, quiçá, neutralizar completamente o Hamas ao tempo que possa rogar pelos palestinos.

Sexto: Lula e o governo, ao desprezarem a realidade dos fatos em relação à guerra, criam um consenso na sociedade brasileira que é falso: não há um opressor (Israel) e uma vítima (Povo Palestino). Há, isso sim, um opressor (Hamas) e duas vítimas (Israel e Palestinos). Embora seja verdade que Israel tem o poder se proteger e o povo palestino não tenha condições de fazê-lo, nada retira a condição original de que ambos são vítimas. Nesse sentido, se Israel age desproporcionalmente é preciso agregar ao argumento de que o faz enquanto vítima e não como algoz. Os EUA, mesmo sendo aliados sólidos de Israel, assim atuam.

Sétimo: o governo brasileiro associa, de forma subliminar, o seu discurso interno sobre as conhecidas injustiças que vigem no Brasil com a situação catastrófica de Gaza. É preciso ser realista e encarar o fato de que o que lá ocorre têm causas não diretamente relacionadas com a essência e os valores (ou falta deles) do que cá ocorre. Se desejar usar a sua “visão de mundo” como parte da retórica em relação àquela guerra é preciso angariar argumentos de quanto o Hamas oprime o seu próprio povo. Equilíbrio é necessário até para argumentar ideologicamente.

Oitavo: Não importa se felizmente ou infelizmente, mas o fato é que esta guerra não serve para a construção da lógica da política internacional brasileira. Trata-se de fato isolado, mesmo que gravíssimo. Com efeito: ao flertar com o Hamas, mesmo com as ressalvas que, aqui acolá, o governo faz sobre o “terror”, o governo brasileiro retira a histórica autoridade que o Brasil sempre teve na política exterior, a despeito de seu papel limitado em termos geopolíticos.

A grandeza do Brasil na diplomacia sempre veio de seu papel moderador. A firmeza na cena internacional sempre foi calcada na inteligência e no conhecimento profundo dos fatos internacionais. O desastre que foi Bolsonaro na área externa foi causado pela falta dessa inteligência.

A adoção de um hard power retórico coloca o Brasil em posição de inferioridade porquanto confunde fatos e cria inação. É lamentável que possa o governo Lula imaginar que seja o contrário. A guerra contra o Hamas da parte de Israel é uma oportunidade histórica da diplomacia brasileira afirmar valores sem fugir dos fatos como estes são. Ademais, a trágica guerra nos deixa ainda mais confusos no meio dos tormentos da política multilateralista: calcar estacas em meio dessa areia movediça não firma a política externa brasileira. De fato, pode desmoralizá-la e fazer com que “caiamos uns sobre os outros ao invés de nos reunir na companhia dos outros”, na paráfrase de Arendt.

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1 Arendt, Hanna, A condição humana, 13ª edição, Rio de Janeiro, 2016, Forense Universitária, p.61 e 65.

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Colunista

Francisco Petros Advogado, especializado em direito societário, compliance e governança corporativa. Também é economista e MBA. No mercado de capitais brasileiro dirigiu instituições financeiras e de administração de recursos. Foi vice-presidente e presidente da seção paulista da ABAMEC – Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais e Presidente do Comitê de Supervisão dos Analistas de Investimento. É membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo e do Corpo de Árbitros da B3, a Bolsa Brasileira, Membro Consultor para a Comissão Especial de Mercado de Capitais da OAB – Nacional. Atua como conselheiro de administração de empresas de capital aberto e fechado.