"Os acontecimentos da história humana sempre submeteram a duras provas aqueles que querem revelar-lhes a moral."
Norberto Bobbio (1909 – 2004)1
Sedimentados os fatos do último dia 8 de janeiro de 2023, bem como, a sucessão dos acontecimentos dos dias posteriores a depredação da sede dos poderes do Estado, verifica-se conclusão inequívoca de que não ocorreu somente um desrespeito ao Estado Democrático de Direito, mas um atentado contra todos os seus elementos mais estruturais.
Noberto Bobbio ensina que “o direito é produto do poder contanto que se trate de um poder por sua vez derivado do direito, onde por “derivado do direito” deve-se entender regulado pelo menos formalmente, senão também pelo seu conteúdo”. O direito emergente do poder é aquele que autoriza, por meio de uma ordem jurídica, a autoridade sobre este mesmo poder.
A turbamulta golpista que avançou e depredou, não apenas um (como nos EUA), mas todas as sedes que representam o poder estatal (Staaltsgewalt), um fato grave que, por sua vez nos leva à reflexão de Hans Kelsen, mais especificamente a nota deste filósofo e jurista sobre a disputa entre o “bando de malfeitores” e a “comunidade jurídica”. O jurista austríaco usou a famosa disputa entre Alexandre, o Grande e o pirata para explicar sobre o tema. O comando do bandido tem apenas o sentido subjetivo do comando, uma vez que lhe falta o comando objetivo da norma, da lei. O bandido pressupõe que o seu comando é garantido pela pressuposição de que ele exerce os poderes de uma norma absolutamente soberana que “fecha o sistema”.
Por que é importante avaliar com profundidade sobre o que ocorreu em Brasília? Somente assim podemos claramente perceber que o que vivemos foi de facto a concretização de uma visão de poder que “fecha” com a de um típico golpe de Estado. Encarar os corridos como “fato isolado” de vândalos é deixar de lado a constatação de que houve “autorização” para que os acontecimentos fossem perpetrados. A autorização mais vil perante o Estado juridicamente constituído.
No Estado absolutista valia a máxima de Ulpiano sobre o poder: Quod principi placuit legis habet vigorem. Quando se diz que o imperador tem o vigor (poder) há decorrência imediata que é deste poder que decorre a lei. Tão somente do poder e sem limites.
A evolução do processo civilizatório, não apenas no sentido temporal, mas também no sentido da evolução conceitual - nem sempre na marcha reta da história - da Política e do ordenamento jurídico, incluiu a “norma” como originada pelo Poder, mas que objetivamente o limita. Ou seja, a construção do Estado de Direito (Rule of Law) reconhece o Poder como fonte, desde que isso seja limitado por uma ordem de valores (e.g. democráticos) que está necessariamente expresso na ordem jurídica.
Não à toa que na história, o maior confronto moderno seja entre o Poder e o direito. A fonte primária (o Poder) por vezes torna os governantes ou aspirantes aos governos estimulados à destruição ou limitação do direito. Aqui vale dizer que, do ponto de vista essencial (ontológico), não há diferença alguma entre a organização criminosa que exerce o poder para cometer crimes contra o ordenamento jurídico e o governante que atenta contra o Estado de Direito. Neste último caso, estamos diante de um criminoso, de um bandido a atentar contra todo o corpo social.
Parece-me inegável que Jair Messias Bolsonaro, seus asseclas mais próximos (notadamente alguns militares) e a turba que foi se amontoou ao seu redor, ao longo dos últimos cinco anos (desde a campanha eleitoral de 2017), agiram, enquanto aspirantes ao governo ou no seu exercício pleno, como criminosos que, pouco a pouco, atentaram contra o Estado Democrático de Direito. É certo que larga maioria dos empoderados (e.g. políticos eleitos) e da própria sociedade (sobremaneira os detentores do poder econômico) subestimaram o medíocre ex capitão, por tantas vezes encarado como um figura folclórica e detentora de ampla simpatia do povo. Não foi diferente na moderna e culta Alemanha dos anos 1920, quando um cabo austríaco também foi subestimado.
Não precisamos, num artigo como este colecionarmos os muitos, repetidos e graves atentados que o ex capitão cometeu ao longo dos últimos anos. Das suas lives de mau gosto estético e de conteúdo aos desfiles e encontros com o militares, o recado sempre foi claro no sentido de que o seu poder estava limitado pelos poderes constituídos do Estado, sobretudo o Judiciário.
Como temos registrado neste espaço, há muito tempo, golpismo e bolsonarismo eram lados da mesma moeda.
Os eventos do dia 8 de janeiro foram, quiçá, inesperados, mas podiam ser pressentidos ao longo dos últimos cinco anos. A sociedade subestimou o personagem, suas pretensões e sua ideologia. A turba chegou inusitadamente, mas sempre este lá.
A descoberta de um “rascunho” de um decreto, nas mãos de Anderson Torres com o objetivo de retirar as prerrogativas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é prova cabal da natureza do bolsonarismo, além de sua ignorância, inclusive para escrever. Especulo, com elevada probabilidade de acertar, que este pedaço de papel não deve ser a única evidência dos objetivos bolsonaristas. Creio, até mesmo, que em escritórios de certos “juristas” estejam acostados pareceres a sustentar um possível regime autoritário no Brasil – quem sabe isso apareça logo. Digo mais: isto não é novidade, como não foi na edição do AI-5.
As consequências dos eventos de Brasília ainda estão a se desenrolar, mas é possível reconhecer que o governo atual ganhou adicional poder concreto que, esperamos, possa usar em favor do país. A legitimidade de quem administra crises e as vence, sempre aumenta. O exemplo de Barack Obama na sequência da crise de 2008, por exemplo, é uma das provas disto.
De outro lado, a eventual fragilização do Estado por meio do fracasso de suas políticas, poderá levar a sociedade a fomentar processos de legitimação de poder que não incluam os limites do ordenamento político. Noto que a tarefa de criar políticas sustentáveis e positivas ao distinto povo não é somente da administração do Presidente Lula, mas de todos os poderes da República, cada um nos seus limites jurídicos e institucionais. Portanto, a “harmonia” dos poderes, algo impossível de concretizar e positivar do ponto jurídico é tarefa primordial neste momento. Há notável emergência em relação ao tema.
Infelizmente, Jair Messias Bolsonaro não é ator fora do jogo político e talvez não esteja exatamente frequentando os parques da Disney em Orlando na Flórida. Os fatos graves de Brasília requerem dura resposta daqueles que zelam pelas leis, em termos de investigação e punição, o que certamente deve incluir o ex-capitão e alguns de seu círculo patético. A pacificação social não pode incluir aqueles que não propagam a paz. A hora é dos fortes, com a lei na mão.
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1 N. Bobbio, Teoria Geral da Política, 2000. P.347 - São Paulo: Ed. Elsevier.