Defender o Estado Democrático de Direito requer, desde já, a proposição para os impasses do país
A polarização no processo eleitoral está consolidada. A ilusão da terceira via esvazia-se com rapidez. Não propriamente porque não possa existir (ou ter existido) o legítimo desejo (e direito) da recusa aos projetos do ex sindicalista ou o do ex-capitão. Em verdade, seria desejável que houvesse maior renovação na política brasileira. Não apenas os nomes são “velhos” como os seus programas e proposições requerem obrigatório aggiornamento para conciliar os interesses mais intestinos da sociedade. No século XXI, merecemos melhor política para os desafios brasileiros e mundiais - a dependência econômica e cultural do país não é somente um problema fundamental e histórico de nossa sociedade. No tempo atual, estamos encalacrados com desafios globais como as alterações climáticas, os processos migratórios, as novas demandas sociais de gênero e raça e assim por diante.
O que ocorreu, no meu entender, com a denominada “terceira via” foi que a ausência de ação política oposicionista e permanente nos últimos anos não motivou a sociedade para buscar novas alternativas para a profunda crise econômica e social nas quais estamos mergulhados. Ademais, a pandemia ceifou milhares de vidas não apenas como fruto dos efeitos do vírus COVID-19, mas também pela adesão tardia e tímida do governo federal às políticas públicas necessárias ao combate desta tragédia.
Em artigo publicado pelo Migalhas em 30/9/21, escrevi:
O marco temporal das eleições do ano que vem não deve impedir o início da construção de um processo politicamente relevante para que possamos voltar a sonhar e para sairmos do pesadelo que tomou o país como nunca dantes. A terceira via só virá se houver ação política. O resto é conchavo de gabinete desprovido de capacidade transformadora.1
Sem deitar raízes na representação e ação política alternativas não há como ser originada a “terceira via”. Foi neste contexto que o eleitorado se voltou para as estruturas políticas “disponíveis” e “visíveis” – nenhuma outra via exerceu o seu papel político.
Os dois candidatos, nas duas pontas da disputa eleitoral, constituem a realidade objetiva. São eles que, muito provavelmente, falarão e serão escutados até o fim do pleito que definirá o próximo presidente da República e a composição do Congresso Nacional, a suportá-lo ou confrontá-lo.
Conforme já escrevi em artigos anteriores, a gênese do bolsonarismo inclui o golpismo. Já o golpe de Estado, propriamente dito, depende da oportunidade. Para evitá-lo, a sociedade e parte substantiva das instituições do Estado recentemente se mobilizaram. O ato pró-democracia nas Arcadas do Largo de São Francisco e o discurso de posse do ministro Alexandre de Moraes na presidência do TSE simbolizam ações políticas de natureza republicana que ergueram muros para evitar a invasão da barbárie – infelizmente, não são muralhas.
A vigilância que o ministro Alexandre de Moraes e o TSE estão a exercer sobre grupos radicais que estão associados ao atual presidente da República e as medidas coercitivas adotadas nessa direção são essenciais à luta contra o fascismo que está a ameaçar a sociedade e a República. Embora ainda não saibamos se tais medidas do TSE têm o revestimento da completa legalidade e regularidade, do ponto de vista exclusivamente político, o enfrentamento aos radicais é essencial. Contudo, esteja claro, não se pode degradar a rule of law. Temos de estar atentos sobre este tema.
Considerado o cenário polarizado do atual momento e a defesa ainda insuficiente da ordem legal e democrática pela sociedade, vale explorar outro aspecto desta eleição a partir de seguinte indagação: serão os votos dados a quaisquer dos candidatos suficientes à legitimação destes enquanto presidente da República?
Para aguçar a provocação intelectual que escorrega da questão, gostaria de citar o brilhante e saudoso José Guilherme Merquior (1941-1991) quem escreveu magnífica reflexão sobre “legitimidade” no seu (terceiro) doutoramento (em sociologia, no caso) na London School of Economics:
“Nem o tempo, nem a natureza, nem a força, nem o poder econômico produzem um direito genuíno e uma obrigação válida. Por conseguinte, a fonte de toda autoridade legítima deve se encontrar noutra parte: exprime-se em um pacto espontâneo, única forma determinada, não pelo medo meramente disfarçado de voluntária obediência, mas pelo sentido do interesse comum”.2
Este extrato do texto de Merquior refere-se ao “pacto espontâneo” originado nas eleições a partir das quais a legitimidade decorre e é colocada em contraposição àquela que é imposta pelo medo e pela obediência involuntária que por sua vez, são consequências de quebras da ordem institucional. Esta posição de Merquior, como se pode verificar, é teórica e prescritiva na medida em que está baseada na visão de que os sistemas políticos (e democráticos) e suas instituições construídas a partir de tais sistemas funcionem para cumprir os seus sentidos finalísticos, os denominados interesses comuns da sociedade.
Do ponto de vista concreto, esta campanha eleitoral de 2022 escancara as fragilidades institucionais do Brasil e, sobremaneira, demonstra que a modulação sub capitalista, oligárquica e patrimonialista engessaram a forma e a representação concreta daqueles que elegem. A classe política está longe do povo e há visível paralisia na promoção de políticas públicas que reduzam as desigualdades sociais e econômicas. A estagnação não é mais uma situação conjuntural, mas o registro das debilidades estruturais do Brasil. O desequilíbrio em termos de renda, riqueza e possibilidades se tornou tão grandioso que não se pode mais requerer “liberdade econômica” porquanto o Estado não cumpre sequer seu papel básico em prol da igualdade mínima.
Neste contexto, afora os riscos imediatos que o bolsonarismo impõe à legitimidade oriunda das urnas (exceto, se ele mesmo for o eleito), o próximo mandatário, seja quem for, terá de recuperar com relativa rapidez maior identidade ao binômio “igualdade social e liberdade para o progresso econômico”. As fórmulas falsamente liberais para empurrar a economia para frente esbarram na falta de vontade dos representantes do povo em reconstruir um Estado que seja inclusivo e mais justo. De outro lado, o corporativismo e a visão distorcida do papel estatal, ainda presente na esquerda atrasada, podem mergulhar o país ainda mais no padrão de baixa produtividade e má distribuição de renda e riqueza.
Defender o Estado Democrático de Direito diante da atual urgência requer, desde já, a proposição concreta e realista para os impasses econômicos e sociais do país. Os indicadores econômicos sofríveis, os sociais deploráveis e a corrida política dos dois atores do jogo político precisam inspirar a salvação da legitimidade que será originada nas urnas em outubro próximo. A eventual falha neste aspecto imporá risco ao país, mas também ao próprio eleito.
__________
1 Disponível aqui.
2 Rousseau e Weber – Dois estudos sobre a Legitimidade. P.20. Rio de Janeiro: Editora Guanabara. 1990.