Política, Direito & Economia NA REAL

Eleições 2022: a deformação da política no contexto do atraso

Para o advogado e economista Francisco Petros, estamos diante dos dilemas originários e estruturantes da nossa formação histórica, política e social, e o atraso da economia e da sociedade não consegue ser mais superado pelas estruturas institucionais e políticas do país.

4/5/2022

"Não almejar nem os que passaram nem os que virão. Importa ser de seu próprio tempo".
Karl Jaspers1

A caracterização do atraso no Brasil sempre esteve ligada à ideia do subdesenvolvimento econômico, da industrialização inexistente ou imperfeita e da ausência de capacidade de competitividade externa de suas exportações, especialmente de produtos industriais. Embora de diferente forma, observado o paradigma tecnológico do início deste século, esta interpretação sobre a realidade do país permanece intacta. Todavia, a complexidade social e política do Brasil adicionou novos e não necessariamente bons componentes que estão a influir decisivamente na consecução do atraso no qual estamos enfurnados.

 A profunda ignorância, aparente e funcional, das massas, fruto da sedimentação do descaso secular com a educação formal e para a cidadania, bem como, o aumento consistente da desigualdade entre as classes sociais, resultaram em um atraso quádruplo: econômico, tecnológico, social, cultural. Aqui, a separação entre o "econômico" e "tecnológico" é proposital. Além de a nossa economia ser retardatária diante do paradigma industrial anterior aos processos digitais (a denominada indústria 4G), não possuímos capacidade de gerar tecnologia de ponta, de forma geral, sequer em ambientes experimentais e acadêmicos, de forma plena. Os processos de inovação ficam parados ou são mal absorvidos nas manufaturas e em outros processos produtivos de serviços e bens.

Este atraso quádruplo tornou-se politicamente mais grave e paradoxal com o advento da liberdade política desde o fim do regime militar em 1984. A confluência entre o voto livre com o atraso social sempre foi terreno fértil para o populismo político. Sem a ocorrência de verdadeira revolução transformadora burguesa que solidificasse inclusivamente as classes sociais em níveis de renda e vida mais humanas e razoáveis, as soluções paradigmáticas das elites políticas sempre oscilaram historicamente entre a restrição do voto (e da democracia) pelos regimes autoritários ou pelo populismo, às vezes "modernizador".

Do ponto de vista das instituições políticas e do ordenamento jurídico, o caminho percorrido após o fim do regime militar foi oscilante e passou a ser, neste momento, inquietante. Enquanto a Constituição Federal de 1988 avançou em termos de direitos individuais e políticos, o excesso de emendas constitucionais tornaram o debate e o andar da política inconsistente ou irracional para que fossem construídas as políticas e as melhores escolhas para o desenvolvimento integral do país. Prova disso é a elevada variação do crescimento do Produto Interno Bruno que decorre da ausência de fortaleza nos fundamentos estruturais do país. Ademais, a desfiguração da política no Executivo e no Legislativo, observado ao longo dos últimos trinta anos foi, talvez, o movimento mais consistente que se verificou na história recente.

Se no regime militar a promessa institucional do parlamento foi o retorno da democracia, mesmo por parte da base política das administrações militares (a ARENA), no caso do advento da Constituição de 1988 verificou-se o "vazio institucional" resultante da inefetividade parlamentar para construir um projeto (ou projetos”) abrangentes para a sociedade brasileira. De fato, este processo distanciou a cada eleição a legitimidade eleitoral da legitimidade política: apesar das eleições serem a fonte do mandado, o exercício concreto e proveitoso do poder político para o povo foi se perdendo ao longo dos anos. A autoridade tornou-se escassa na desorganização política do parlamento e a relação com o Executivo passou a ser oportunística. As tensões entre ambos se relacionam cada vez mais com os interesses próprios da classe política, sem correspondência com as fricções e demandas oriundas do corpo social de um país atrasado e desigual.

Do ponto de vista econômico, o crescimento perdeu tração fruto da ausência de um projeto ou de um debate no qual poderia se formar uma consciência comum para o país se modernizar no contexto dos novos paradigmas tecnológicos mundiais. Se no passado, as posições dos articuladores da política econômica se dividiam entre aqueles que acreditavam num planejamento mais centralizado (que sempre foi majoritário desde Vargas) e os liberais de velha cepa, a partir de 1988 a dinâmica se transformou em projetos incompletos de desenvolvimento, cujos efeitos sempre foram mitigados pelas relações entre o Executivo e Legislativo e, mais adiante, a partir da década de 2000, pelo Judiciário, cada vez mais interventor no processo político, econômico e social.

Talvez o único consenso que se formou consistentemente foi o reconhecimento da necessidade se ter uma moeda mais estável fruto do sucesso incontestável do Plano Real. De resto, as visões sobre a necessidade de instituições sólidas do Estado para garantir as regras do jogo capitalista são cada vez mais fragmentadas e o debate não ultrapassa os fatos cotidianos e as querelas endogenamente formadas na própria elite política. O país está acostumado à crise institucional e política permanente, como se fosse um destino irremediável, mesmo que trágico.

As próximas eleições em outubro de 2022 podem se tornar um importante marco da crise institucional na qual estamos metidos. Os fundamentos da Constituição de 1988 estão sob especial escrutínio vez que o regramento daquele pacto político não parece ser, ao mesmo tempo, o guia e o limite da construção da democracia brasileira. De fato, os avanços formais contidos na Constituição estão sendo inviabilizados pelo exercício continuado do embate institucional. Este conflito não é novo e não foi inaugurado pelo atual presidente, diga-se. Exemplo disso, são os dois impeachments presidenciais deste a promulgação da Constituição e o excesso de modificações no texto constitucional para atender demandas políticas e institucionais de cada hora. Porém, não resta dúvida de que o primeiro mandatário da nação, desde 2019, contribui decisivamente para que a crise institucional tenha se tornado aberta e evidente para que se possa abrir espaço político para uma ordem política e institucional autoritária e antidemocrática.

Até agora o enfraquecimento da democracia formal por parte do ex capitão não teve o esperado sucesso dos ocupantes do Poder Central. Enquanto o atual presidente se empenha (com sucesso) na ocupação dos espaços que lhe permitem o controle do Estado, ele ainda não logrou desmoralizar e demonizar o processo eleitoral que está sob fogo cerrado de seu grupo político – por ora, a ameaça é não reconhecer o resultado das eleições deste ano. Da mesma forma, a sua plataforma política não conseguiu tornar o seu projeto autoritário em uma concreta redução ou eliminação dos mais basilares princípios e direitos da civilização atual. Mesmo que por meio de uma ideologia mal elaborada sobre questões identitárias e de direitos humanos, o atual mandatário não viabilizou a divisão social necessária ao seu projeto antidemocrático. Vale notar que são os princípios e direitos fundamentais constantes na nossa Constituição de 1988 aqueles que melhor estão sedimentados na sociedade brasileira, em todas as classes sociais. Não parece algo ocasional o insucesso do mandatário atual do país. Chama atenção também que as pressões exercidas pelo ocupante da cadeira presidencial sejam feitas abertamente, sem qualquer reserva institucional quando não além da própria legalidade.

Apesar da solidez social na defesa dos direitos fundamentais, o atual presidente da República consegue tornar mais rarefeito o Estado Democrático de Direito. O enfraquecimento das leis ambientais, das normas de controle da corrupção e da improbidade administrativa são provas inequívocas de que os acostados no Palácio do Planalto têm um projeto consistente para deixar a sociedade mais frágil para atingir objetivos mais elevados no sentido de uma sociedade mais fechada e de um Estado autoritário. Junte-se a isso o fato de que o ex capitão conseguiu tornar débil e controlável o Ministério Público e, com efeito, as leis mais frágeis sequer atingem os detentores do Poder Político. Se no passado a efetividade do Ministério Público era contestada pelos seus próprios desacertos, por ora, a sua passividade se tornou forçosamente institucional. A gravidade do tema, interessante notar, sequer faz parte da reação institucional promovida pelo Judiciário. O assunto adormece solitário na análise de poucos observadores da cena institucional e política brasileira.

Considerado o fato de que o atual presidente da República carece de maiores virtudes enquanto estrategista, a promoção de seu projeto autoritário acabou por tropeçar na política partidária. Uma ironia da história.

Como outros presidentes desde a inauguração da Nova República, o atual ocupante do Planalto não percebeu o quanto a fragmentação, corrupção, deformação institucional dos partidos políticos era uma significativa barreira para a consecução de seu projeto autoritário. Sendo o bolsonarismo um movimento sem causa definida e clara, nenhum partido absorveu algum viés ideológico oriundo da eleição do ex capitão. Até mesmo o PSL que elegeu o presidente, partido inexistente de fato até 2018, acabou por ser desprezado no projeto do atual governo. Nem sequer as multidões reunidas em torno dos discursos confusos do líder, mesmo que perigosos, receberam as recomendações necessárias para se aglutinarem politicamente. Nem mesmo um “movimento popular” em torno do chefe deste movimento foi conseguido. Ganhou a sociedade com esta desorganização. Um paradoxo relevante. De todo modo, o ex capitão aprendeu que o voto na urna tem característica de um “ato de fé”, baseado na imagem, eventualmente, sofista diante da realidade concreta. Os fins nem sempre importam.

De outro lado, o STF ocupou o vácuo de poder deixado pelo Legislativo o qual é fragmentado e imbuído de seus próprios interesses corporativos, na fiscalização e na imposição de limites democráticos e institucionais à atual administração. A centralidade adquirida pelo Judiciário neste contexto é daquelas distorções que são sinais evidentes da enfermidade institucional em que vivemos, mas que nesta hora se mostrou providencial.

Ao se tornar de fato um ator político, o STF sofre da parte do governo o combate de quem vê à frente um limite senão uma barreira. Não tem, por certo, o ocupante do Executivo a preocupação com a institucionalidade, mas sim com os impedimentos ao seu projeto. Aqui também vale ressaltar que a existência da pandemia, reforçou o papel do STF na medida em que a sua intervenção também resvalou para o tema do federalismo. Foi a Suprema Corte aquela capaz de repor aos municípios e estados o poder normativo e operacional para fornecer vacinas contra a pandemia do vírus sars-covid, bem como, para legitimar os programas necessários ao controle sanitário da expansão da contaminação. Ao regular concretamente o “direito de ir e vir”, bem como, as garantias e as obrigações em relação à vacinação, o STF minou diretamente o uso do poder do ex capitão para praticar aberto negacionismo sanitário e científico.

De outro lado, a CPI da Covid, obra do Senado Federal, mostrou e demonstrou as aberrações cometidas pelo governo federal em relação à pandemia. Seus resultados indicam que houve um excesso de, pelo menos 300 mil mortes por negligência e incompetência da atual administração federal no tratamento do tema da pandemia. Assusta o fato de que as reações sociais posteriores às divulgações da CPI tenham sido tão modestas frente à gravidade dos fatos. Eis mais um sinal da falta da vitalidade institucional do Legislativo, com o apoio explícito de seus líderes na Câmara Federal e no Senado Federal. Na sociedade, por sua vez, prevaleceu a apatia e o cansaço com os acontecimentos de Brasília.

As distorções e a crise das instituições do Estado brasileiro, como as apontadas de forma exemplificativamente acima, são sinais graves do ponto em que nos encontramos no momento. O questionamento da legitimidade política e institucional no Brasil não se dá somente pelas dúvidas imaginárias e sem evidências objetivas que o ex capitão levanta em relação ao processo eleitoral. Ocorre, muito mais, pelo afastamento da sociedade em relação ao que se discute no Parlamento brasileiro, pela promoção diabólica do ocupante do Palácio do Planalto contrária à democracia, pelos ataques à mídia (e a sua credibilidade na apuração e comunicação dos fatos), pela fragilização do ordenamento jurídico e do principal pilar de sua fiscalização, o Ministério Público, bem como, em face da comunicação direta com as multidões para estimulá-las ao ódio político e social, bem como a um exercício libertário em relação a micropoderes de certos grupos (caminhoneiros, policiais, evangélicos pentecostais, etc.). Estas constatações são verificadas em cada etapa e tempo do atual governo. Desde o início do mandato verifica-se a pregação consistente e, na maioria das vezes, competentes para o atingimento de seus objetivos antidemocráticos. O mais consistente é que os ataques contra as instituições têm sido cada vez mais graves, em ondas que muitos julgam ocasionais e desorganizadas – será? O discurso demonizado contra a política e os políticos do início do mandato é, no atual momento, extensivo a quase todos os pilares institucionais e democráticos.

No contexto acima, as eleições de outubro de 2022 não serão majoritárias e proporcionais, do ponto de vista de sua essência. De fato, serão plebiscitárias. Os eleitores, conscientes ou não disso, não tratarão das possibilidades democráticas de o país se desenvolver integralmente, na economia, nos temas sociais, culturais e tecnológicos. A aposta do bolsonarismo é derivada da crença em uma comunicação metódica pela qual a melhor forma de não haver discussão é lançar argumentos que não são passíveis de ser verificados no momento da receptação da informação para justificá-los em relação a um futuro impreciso onde não se sustenta a memória do eleitor. Este método serve para desmoralizar o adversário (“inimigo”), bem como, para criar uma ideia que pareça interessante ao receptor. Esta é a razão pela qual o bolsonarismo pode dispensar os acólitos mais eruditos que querem apoiá-lo – Paulo Guedes é figura deformada e risível do governo.

Dentre os elementos atraídos pelo ocupante do Planalto destaca-se a ideia de que a "mídia organizada" é mentirosa e carregada de interesses próprios. Para tanto, montou uma engenhosa máquina de fake news e atuação nas redes sociais que é um imenso sucesso – cabe aqui o reconhecimento pleno. Sem ter compreendido completamente o sentido da sociedade em rede, no uso do termo de Manuel Castells, o ex capitão entendeu completamente as possibilidades e efeitos desta “admirável rede”. Enquanto isso, os seus opositores caminhavam nas trilhas da tradição midiática de dantes. A desmontagem da credibilidade da mídia tradicional, mesmo que incompleta, é preocupante vez que a desmontagem de um noticiário minimamente crível não foi seguida por alguma alternativa razoável de combate às fake news. Diga-se, enfim, que isto é fenômeno mundial e não somente brasileiro.

O Brasil passa por um período muito especial de sua história. Não temos propriamente uma polarização entre interesses explicitamente postos. Estamos diante dos dilemas originários e estruturantes da nossa formação histórica, política e social. O atraso da economia e da sociedade não consegue ser mais superado pelas estruturas institucionais e políticas do país. A inflexão antidemocrática que o atual governo representa é concretamente a aceleração das tendências construídas historicamente e, notadamente, desde a redemocratização dos anos 1980s. Observado todo o período e relativizados fatos em vista dos novos paradigmas sociais e econômicos, o Brasil está muito aquém de suas potencialidades. O fracasso estratégico do país é evidente.

A disfuncionalidade do parlamento para elaborar políticas e emanar leis para a modernização do país é cristalino. Do inconveniente bipartidarismo reinante no governo militar acabamos na completa fragmentação política que se constitui em uma plutocracia eivada de interesses próprios e distantes da participação social. Os ritos parlamentares pouco a pouco perderam seu sentido inovador em relação aos fatos e atos políticos e depurador de interesses para se tornarem meio de barganha (não política) de partidos e políticos. A interação com o Executivo não é realizada em vista de mediana racionalidade e funcionalidade em relação às matérias em discussão. Ocasionalmente, se registra saltos legislativos à frente, na direção do futuro que, posteriormente, são mitigados por outros atos e fatos que nos trazem ao passado. A reforma previdenciária foi mitigada pelos aumentos do funcionalismo público, a reforma política desembocou no fundo milionário partidário estatal, a Lei de Responsabilidade Fiscal é mitigada por "orçamentos secretos". Mesmo do ponto de vista institucional verificam-se muitas dúvidas sobre os processos de impeachment e o funcionamento das CPIs, estas últimas, elementos essenciais para a fiscalização pela minoria das atividades do governo em vigor.

Sem capacidade decisória, mas com capacidade de veto, o Parlamento é, do ponto de vista de sua funcionalidade política, esvaziado. É valorizado patologicamente para que não exerça a sua função de controle e sancionamento ao Executivo. O elemento catalizador destes dois polos, um disfuncional que lhe retira a ação e outro que lhe joga na passividade, resulta em aberto e inescrupuloso clientelismo e patrimonialismo. Os eleitores por meio do voto universal, por sua vez, carecem da necessária educação política para exercer seus direitos e veem-se distantes do Parlamento e sem condições de influir. Quebrado o elo de representação, resta ao distinto povo, a interpretação dos fatos em torno de um imaginário de que em Brasília sobram gatunos e gente pouco interessada nas coisas públicas. Não à toa, a classe política tem das piores avaliações populares em termos de credibilidade dentre as instituições brasileiras.

É deste ambiente de descrença e desentendimento do papel institucional dos poderes republicanos que, sem grande inteligência política, o ex capitão engendrou seu projeto perigoso no cenário brasileiro. Sem as habilidades de Hugo Chávez, para citar um personagem que rejeita, mas com quem tem semelhanças inegáveis, ele acabou por reunir elementos altamente atraentes para encantar parcela substantiva do eleitorado e para atrair certos interesses da elite que se acostaram ativamente no seio do poder concreto do bolsonarismo. O melhor exemplo é o agronegócio.

Para suprir o vazio político de um parlamento representativo ao modelo de gestão e às posições políticas do bolsonarismo o ex capitão chamou as Forças Armadas. A adesão inicial foi realizada pela sentada em cargos anteriormente destinados aos civis. A justificativa para tal era a “eficiência e honestidade” da tropa frente aos desmandos dos civis. Todavia, esta adesão encontra-se atualmente muito mais disseminada nas fileiras castrenses. Generais de certa reputação o apoiam abertamente e as ideias do ex capitão, mesmo que primárias, são bem recebidas pelos estados-maiores das Forças Armadas. Também já se verifica da parte das Forças Armadas certa liberdade para criticar o STF e seus ministros. O “aparelhamento” do Estado pelos fardados também permite a ampliação da rede de informações do governo e atrai com mais rapidez as ações necessárias à defesa do governo. Os tropeços que vez ou outra ocorrem são insuficientes para que se chegue à conclusão de que a estratégia adotada não alcança em suficiência os resultados esperados pelo Planalto. Vale notar, adicionalmente, que as Forças Armadas permanecem no topo das pesquisas sobre a credibilidade popular nas instituições.

A obsessão do ex capitão por segurança também chama atenção. Além de contar com os fardados para seu projeto político, o presidente atual aparelhou todas as polícias que estão sob seu manto institucional, da Federal até a Rodoviária, bem como, valoriza os órgãos de inteligência que agora voltam a estar espalhados até pelas empresas estatais. Vale ressaltar que este aparelhamento é tratado na cúpula do governo com o status de projeto, mesmo que não de forma explícita. Não é, está claro, um projeto de Estado. É um projeto do bolsonarismo. E ainda resta a pergunta ainda sem resposta: está em formação uma "polícia política"?

Na comunicação social o sucesso do ex capitão é inegável. A sua capacidade de comunicação direta com o povo é muito desenvolvida e a sua imagem de "gente simples" e "comum", associada à imagem de um "paizão" das causas populares, encontra poucos similares na política brasileira, guardadas as proporções e virtudes, em Vargas, Adhemar de Barros, Jânio e Lula. O potencial da soma de fake news e um "bom ator" não é desprezível.

Do ponto de vista econômico a mutação do atual governo para o populismo aberto está a caminho. A simples verificação do papel que o Ministro Paulo Guedes teve no início do governo e a sua atual atuação avalizadora de medidas populistas e que conspiram contra a estabilidade monetária e fiscal indicam que a probabilidade de o populismo prevalecer completamente num eventual segundo mandato do ex capitão é muito elevada. Estranha a entidade do “mercado” não perceber ou temer esta perspectiva. A intervenção descabida e desmensurada no mercado de combustíveis, os aumentos salariais do funcionalismo público, a defesa, populista e dissociada de racionalidade econômica e social, de políticas de renda aos necessitados são algumas das indicações suficientes de que não estamos diante de um Estado do bem-estar, mas de um projeto populista de direita.

O que se escreve acima a partir de extratos da realidade política que vivemos é apenas para evidenciar o caráter excepcional da conjuntura política atual. O anormal tomou conta da cena política e nos acostumamos a relativizar os fatos cotidianamente verificados sem que seja abarcado para fins de análise a construção em andamento. Mesmo que o projeto antidemocrático e autoritário do atual governo fracasse, para quem o enxerga hoje caberia a ação política porquanto não se pode conviver com ele. A supressão das liberdades e o desrespeito às instituições são sementes que jamais originam boas cepas.

Não sabemos se a "virada à direita" promovida pelo atual presidente da República é uma mudança estrutural do eleitorado brasileiro. O que se sabe é que uma parcela entre 15% e 25% do eleitorado gravita em torno de um bolsonarismo, ainda carente de ideias e ideais em suficiência para caracterizar um movimento político marcante. De todo modo, o categórico é que a eleição plebiscitaria que teremos em outubro de 2022 terá fortes contornos populistas.

Não se pode imaginar que em meio à provável colisão de ofensas e mentiras frente ao eleitorado sem educação política possa resultar na disputa entre dois projetos para o Brasil. Aqui não precisa ser cientista político para constatar esta realidade. A divisão entre a socialdemocracia "de centro direita" (PSDB) e a socialdemocracia sindical "de centro esquerda" (PT) ficou no passado. Se naquelas ocasiões não houve disputa calcada em projetos políticos consistentes dada a fragmentação política, agora devemos nos esquecer dos projetos e nos concentrarmos nos fatos, nos detalhes, nas micro estratégias. Esta é a realidade, aqui é que chegamos. Este é o resultado de nosso fracasso: escolheremos entre propagandistas.

Examinado o fundo do tema, as eleições de 2022 já estão pautadas pelo bolsonarismo. Iludem-se os que acreditam, em oposição ao ex capitão, que a escolha do povo será essencialmente feita com base na história pregressa dos candidatos, nos seus projetos e nos seus apoiadores. Estes serão detalhes do processo eleitoral. Não a sua essência.

O que importará é a capacidade dos candidatos em projetar o que será diferente em relação ao outro, caso venha a ganhar. O caráter propagandista dos enunciados políticos será muito mais importante que a elaboração racional e racionalizada de seus projetos. A ligação com a realidade quem fará é o eleitor, solitário e claramente despreparado para dirimir os despropósitos que serão emitidos pelos candidatos. O candidato não precisará se preocupar com a realidade e racionalidade do que propõe. As imagens serão mais importantes que os planos. Afinal o bolsonarismo atua com o imaginário. Tanto é assim, que o medo do comunismo é parte de sua figuração e do imaginário de certa parcela do eleitorado, mesmo sabendo-se que por estas terras o comunismo não é apenas improvável, é arqueológico.

O medo será parte essencial da discussão, mesmo que não de sua dissipação: medo da corrupção, do fim da família, da falta de comida, da ausência de futuro e oportunidade, dos temas das minorias, do "poder negro", da tomada da Amazônia e assim vai. Os causadores dos medos, estarão bem visíveis: o outro candidato. De resto, os "coletivos" serão culpados: "banqueiros", "mercado", "sindicalistas", "reacionários". A pobreza da discussão não permitirá detalhamento suficiente para que o eleitor possa entender "processos", "estruturas", "meios e fins". Os candidatos serão qualificados e identificados em "opressores" e "libertadores". Um cenário maniqueísta e divisionista. Sem racionalidade, exceto a imagética projetada. E mais: sem interesses visíveis e sim um ideário vazio que une grupos disponíveis a certos sacrifícios. Vale notar que, neste sentido, é razoável imaginar que o ídolo da hora seja o deputado Daniel Silveira agraciado pelo seu líder supremo. O seu sacrifício é pela "ideia" que projeta sem que sequer se saiba o que ele realmente pensa ou que interesse defende.

A dificuldade da esquerda provavelmente residirá no fato de que o ex capitão hoje empunha a bandeira da "liberdade". De fato, trata-se da bandeira libertária dos costumes sem as limitações do paradigma civilizatório do mundo moderno. A liberdade que permite a ofensa, a fomentação da discórdia, a presunção de uma igualdade inexistente. Neste sentido, a defesa da democracia encontrará imensas dificuldades para ser realizada para fins do discurso eleitoral. Afinal, esta democracia aos olhos do povo resulta em representantes que não os representam em Brasília.

Os temas da vida cotidiana, de sua plenitude, serão o tônus da campanha eleitoral. A segurança pessoal e coletiva, o preço do gás de cozinha, o drama do estudante sem escola, o policial abatido por traficantes, a carestia dos alimentos, o prejuízo das políticas ambientais, todos ganharão dimensões políticas talvez sem precedentes nas eleições brasileiras.

Neste reducionismo temático não é difícil imaginar que a esquerda será projetada pelo bolsonarismo como o "mal maior". Vejamos o que o ex capitão falou no início deste ano via Tik Tok e outras redes sociais: "se o PT voltar será o fim de todos nós" (sobre a regulação da mídia), "os militares são o último obstáculo para o socialismo no Brasil" (sobre o apoio de Lula a Maduro), "Se voltar, é para desviar o dobro" (sobre Lula e o PT), "Se o PT voltar ao poder, haverá maconha no Alvorada", "Responsabilidade não é só com economia, é com a vida, liberdade, futuro do seu país. Sabemos o que vai acontecer com esta pátria se esses bandidos voltarem para cá..."

Lula, o ex-metalúrgico, tem os recursos pessoais para elaborar um discurso que atinja a vida cotidiana dos cidadãos e eleitores. Todavia, as circunstâncias recentes de seu retorno à campanha presidencial parecem influenciá-lo no sentido de uma construção mais voltada para a sua luta pela justiça pessoal fruto das mazelas processuais da operação Lava Jato. Se Lula cultivar esta imagem de "vítima" como a central de sua campanha, atrairá para si todas as fragilidades de suas administrações e talvez nenhuma de suas virtudes. A corrupção e os desmandos na Petrobras voltarão rapidamente ao imaginário popular. É o melhor cenário para o bolsonarismo. A visão antipolítica do atual ocupante do Planalto prevalecerá, paradoxalmente pelo discurso de um político que ficou quase 30 anos no Congresso abastecido por votos das franjas da sociedade fluminense.

Diante de uma eleição plebiscitária e da elevada probabilidade de que não se discuta e não seja forjado nenhum projeto capaz de fazer o Brasil prosperar e se desenvolver não há razão alguma para que existam expectativas positivas e razoáveis sobre o futuro. Sobretudo na economia, residem as muralhas que impedem que se possa reformar o Brasil a partir de agora. O desequilíbrio macroeconômico é estrutural: O Estado é grande e disfuncional e o capital nativo é altamente dependente do Estado. Além do mais, a economia não pode ser, como tem sido por muitos analistas, dissociada das variáveis políticas e institucionais. Atualmente, é impensável que se possa maximizar emprego e renda, reagir contra flutuações excessivas da atividade econômica e manter a estabilidade monetária dentro da atual configuração política e institucional do Brasil.

Sem a construção de novos paradigmas institucionais e de uma verdadeira reforma política, que recentre o Poder na consecução de políticas públicas racionais, holísticas e profícuas à sociedade, não teremos um encaminhamento bem-sucedido para os desafios do país. Infelizmente, como aqui está demonstrado, a oportunidade de um debate aberto sobre os temas essenciais aos brasileiros não será realizada na campanha eleitoral em curso. De fato, teremos uma das disputas mais antidemocráticas da história porque as eleições tratarão mais dos candidatos do que dos eleitores. O delírio será a cegueira do sonho. É provável que alguns prefiram a melancolia do passado e o conforto de suas garantias mais momentâneas e básica. É fútil acreditar que é uma possibilidade, mesmo que aleatória, estar imune às tempestades que virão.

O dilema que o país nos mostra não é tão somente político. É civilizatório. Por vezes, é preciso germinar a semente que está dentro daquilo que combatemos para que se forje a sua própria destruição, quando a reconhecemos plenamente.

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1 Na epígrafe de "As Origens do Totalitarismo" (1950) de Hanna Arendt (1906-1975).

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Colunista

Francisco Petros Advogado, especializado em direito societário, compliance e governança corporativa. Também é economista e MBA. No mercado de capitais brasileiro dirigiu instituições financeiras e de administração de recursos. Foi vice-presidente e presidente da seção paulista da ABAMEC – Associação Brasileira dos Analistas do Mercado de Capitais e Presidente do Comitê de Supervisão dos Analistas de Investimento. É membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo e do Corpo de Árbitros da B3, a Bolsa Brasileira, Membro Consultor para a Comissão Especial de Mercado de Capitais da OAB – Nacional. Atua como conselheiro de administração de empresas de capital aberto e fechado.