A engenharia do consenso no Brasil é historicamente praticada para afirmar aquilo que deve ser rejeitado.
“Quem somos nós, os brasileiros? Aqueles que dizem não à terra barbarizada ou os que reafirmam a escolha de 2018? Seremos Zelensky ou Putin? Escolheremos vida ou morte?”. Este inquietante tipo de questionamento é raro na sociedade brasileira. De fato, a preferência dos brasileiros, sobretudo de suas elites, é o esconderijo perante o mais forte, perante o necessário domínio da res publica e, de forma especial, perante o senhor do poder político em certo momento. A resistência no Brasil é vista como obra menor e os resistentes são vistos não como detentores da coragem necessária à vida, mas como pessoas que causam problemas e perturbam a ordem dos apaniguados com o poder estabelecido. Cria-se assim o exílio social velado dos que se movem contra a ordem posta. Esta lógica, em verdade perversa, vale para grande parte das atividades nestas terras abaixo do Equador, na América Latina e neste Brasil. Dos bairros mais humildes às casas mais abastadas, das empresas ao Estado.
O questionamento que abre este artigo é de João Moreira Salles, na Revista Piauí, da qual o documentarista é fundador, no último dia 25 de março, no magnífico e corajoso artigo “Nota sobre três presidentes, duas bombas e o fim do mundo”. É isto mesmo. A próxima eleição no Brasil não somente dirá respeito ao meio democrático de exercer (ou não) a democracia, mas indicará se o povo brasileiro e suas elites predatórias escolherão a civilização (ou não).
O que se verifica em relação ao pleito eleitoral é a quase que completa indiferença, inclusive em relação ao entendimento sobre o papel não-procedimental (cultural) da Política. Ou seja, a sociedade brasileira não assume a constatação óbvia de que a civilização está na UTI. Além, está claro, da emergência em relação à democracia como o meio de progresso humano, material e do significado espiritual da democracia. Vale dizer que o bolsonarismo, este fenômeno sem causa clara, mas estrago evidente, mostrou que, pelo menos ¼ da população tem dúvidas sobre o funcionamento da democracia e questiona a sua legitimidade. Não é incomum verificar que o apoio ao autoritarismo cresce e que, por vezes, é destinado à ditadura.
Além da insatisfação em relação à democracia, verifica-se que os candidatos e partidos são vistos como semelhantes ou mesmo iguais, não importando, com efeito às denominações partidárias e a polarização entre direita e esquerda. O melhor candidato, neste sentido, é aquele capaz de gerar uma certa “ordem”, mesmo que não se saiba exatamente de que ordem estamos a tratar.
Ora, esta visão personificada limita, mesmo numa acepção geral, o significado do momento atual, no qual a civilização, e não apenas a democracia, está em risco. Mais: a eleição é vista como uma delegação temporal de poder, sem que o eleitor tenha o compromisso de fiscalizar e contribuir para que se possa progredir. Cria-se, assim, o ambiente perfeito para que os predadores possam usufruir das presas em seus dentes, do orçamento público à Amazônia, como bem salienta Moreira Salles.
Também os sistemas de controles e contrapesos no Brasil estão tremendamente agastados o que cria as (i) disfuncionalidades para tentar reequilibrar o sistema democrático e de governo (e.g. Judiciário), (ii) os controles meramente formais e não materiais e, portanto, ineficazes da democracia de Pindorama sendo que (iii) tais controles são vistos (e muitas vezes são verdadeiramente) como empecilhos à solução dos problemas sociais, econômicos e políticos. Ora, diante de uma espécie de embargo civilizatório frente ao qual estamos, sobra o quadro desolador em relação a todos os temas relevantes: a violência urbana, o subemprego, a vergonha da educação nacional, o sistema de saúde deteriorado e assim vai. Além da inexistência de eficácia democrática, verifica-se que a realidade possível agora é o abismo, a destruição concreta das possibilidades de o Brasil ser uma país, digamos razoavelmente civilizado. É este o jogo que será jogado na escolha do próximo presidente.
Há, neste contexto, quem pregue a busca do entendimento e da harmonia. A pergunta que surge é: em torno do quê?
A engenharia do consenso no Brasil é historicamente praticada para afirmar aquilo que deve ser rejeitado. Como alguém pode imaginar possível conciliar os interesses objetivos de um Arthur Lira, de muitos dos membros da bancada da Bíblia, do boi e da bala com aqueles que dizem respeito a laicidade do Estado, da preservação da Amazônia ou do combate ao crime baseado na lei e não na arma? Aqui, me permitam o ceticismo, vez que a questão é de dissenso e não de consenso. Chega de saltos triplos carpados em matérias de diálogos. Chegou a hora de separar o joio do trigo.
Otto Kirchheimer (1905-1965), dos maiores constitucionalistas alemães, afirmou, em relação à Constituição de Weimar (1919) que esta era “uma constituição sem decisão”, porquanto buscava a pacificação social por meio da satisfação de interesses que seriam inconciliáveis e até completamente opostos. É de se pensar como qualificar a nossa “Cidadã” de 1988.
Os compromissos concretos dos candidatos com a democracia, o papel exercido pelo ex-capitão nestes três anos e meio e a possibilidade concreta do país cursar um caminho político civilizatório são os temas cruciais da próxima eleição. É fundamental que a sociedade exerça o seu papel compromissado com os valores e intensifique as suas pressões em prol de um desfecho eleitoral positivo ao país ou cairemos no abismo. É do confronto e não do consenso sobre as diferentes posições políticas que evitaremos as piores consequências.