Aqui a ação simplifica-se
Derrubei a paisagem inexplicável da mentira
Derrubei os gestos sem luz e os dias impotentes
Lancei por terra os propósitos lidos e ouvidos
Ponho-me a gritar
Todos falavam demasiado baixo falavam e escreviam.
(Paul Éluard (1895-1952) – Poema "Gritar")
Há sinais de que a sociedade brasileira, em meio à sua desorganizada percepção política, acordou e percebeu que o ex-capitão do Exército Brasileiro é o principal empecilho para a saída da situação caótica do país. A atual administração, de forma holística e consistente, decreta a inviabilidade do desenvolvimento econômico, científico, tecnológico, do resgate de qualquer dívida social, da sustentabilidade ambiental, da diplomacia de resultados e dos temas das minorias e das identidades que florescem numa sociedade complexa como é a brasileira. Entretanto, a pergunta que surge é: a percepção social se transformará nos votos necessários para a derrota do atual ocupante do Planalto?
A sua eventual derrota levará o país à frente?
O ano de 2022, marco dos 200 anos da independência política do país e dos 100 anos da Semana de Arte que marcou a inauguração do modernismo no Brasil, será, provavelmente, de vigorosa inflexão na história do Brasil. Ouso especular de que se esgota neste curso eleitoral o processo político e econômico que decorreu da redemocratização brasileira. Cabe à história depurar o que se perdeu e o que se ganhou ao longo dos anos, desde 1990. Todavia, vê-se um avanço consistente nos direitos individuais, observados do ponto de vista jurídico, ao tempo em que as conquistas coletivas e políticas acabaram sendo minimizadas e obscurecidas por um sistema de representação obsoleto, sem accountability, paroquial, patrimonial e corrupto. Frente à este contraste, vê-se a economia cambaleante no investimento, com surtos de consumo e forte ampliação da desigualdade social, cuja marca não é mais o analfabetismo clássico, mas o funcional, aquele que desloca o povo para longe do padrão tecnológico vigente no capitalismo moderno.
A escolha de 2022, portanto, se insere, a meu ver, num contexto marcado: o modelo econômico e político brasileiro passou da fase esclerosada para a de inviável. Ou teremos os ajustes necessários ou mergulharemos na decadência com a qual já convivemos há pelo menos dez anos. A nossa vizinha Argentina nos ensina que o fundo do poço sempre pode ser prospectado mais alguns anos. As consequências não são difíceis de se prever, mas o seu grau, num país do tamanho do nosso, são imprevisíveis.
Dentre os muitos prejuízos que o ex capitão trouxe ao país, verifica-se que ele criou uma espécie de “movimento sem causa”, uma ideologia de fundo de quintal que vai do liberalismo do século XVII de Paulo Guedes até a loucura moralista de, vejam só!, Olavo de Carvalho. Do armamentismo ilógico até o negacionismo vacinal, o ocupante do Planalto e seu acólitos e pimpolhos demonstraram que é possível tropicalizar com mais ignorância o reacionarismo vigente em outras partes do globo. Por aqui, o ex capitão deixa a marca da morte de muita gente por força de suas políticas.
Este "movimento sem causa" do ex capitão extremou as pontas da política o que legitima o discurso de lado a lado, mas deslegitima a construção e discussão minimamente consistente dos temas econômicos, políticos e sociais que realmente importam. As eleições de 2022 deverão, provavelmente, inflamar e, até mesmo, emocionar. Todavia, é razoável esperar que o debate sobre a nossa decadência fique mesmo perdido entre aqueles que irão para as trincheiras eleitorais com o ex capitão e os que irão combatê-lo com as armas e líderes que estiverem disponíveis.
Por entre os votos que serão coletados, a classe política comemorará a sua própria fragmentação. Afinal, são os pedaços do espectro partidário que se escondem os interesses mais comezinhos: seja quem for o presidente da República terá de construir uma “frente ampla” que dará pintura nova ao repositório de paroquialismo, patrimonialismo e corrupção. Não há projeto qualquer em construção em torno dos partidos políticos: o Brasil é a vívida expressão do Poder sem conexão com a Política. Os poderes constituídos em 2022 terão legitimidade para exercer o governo, mas podem cair no desgoverno, porque não têm projeto político.
O Estado brasileiro é inviável como força-motriz para modificar as sedimentadas placas da esclerose econômica e social. Sem reformá-lo profundamente não há como engendrar projetos e levá-los à frente. Das estatais disfuncionais às estruturas baseadas no corporativismo funcional, o Estado brasileiro tem alguma capacidade de contenção de crises e riscos, mas tem baixa capacidade de elaborar "espaços novos" de modernização e aperfeiçoamento da sociedade. Afora isto, os interesses privados e corporativos tomaram conta do centro dinâmico do Estado e alijaram ou mitigaram a prevalência dos interesses coletivos e comuns. A República é frágil.
Afora isto, o Brasil em 2022 estará sujeito às variações do mundo exterior, cujas incertezas vão dos efeitos de novas pandemias até os riscos do financismo do mercado de capital e financeiro. Há sinais de que o crescimento das economias centrais cai e a temperatura das relações geopolíticas se elevam. A matriz dos riscos brasileiros se torna ainda mais complexa diante de um mundo como este, no qual o Brasil terá de sair de seu isolamento atual perpetrado pela ignorância bolsonarista.
A saída deste beco eleitoral no qual estamos, certamente passa pela derrota do ex capitão, mas não estará completada com a vitória de um ou de outro, da esquerda ou da terceira via. Se faz necessário que a sociedade se organize, demande e oferte soluções que enquadrem o discurso e, sobretudo, a prática da classe política. Está na hora de as instituições que temos fornecerem elementos que permitam a construção de um projeto minimamente possível para que se evite que a inflexão seja na direção de nossa decadência.
Por ora, o que se vê são as ilusões perdidas serem resgatadas como sinal de esperança. Fácil entender, afinal estamos em tempos extremados. Contudo e de fato, estamos diante de fragmentos de um discurso político que não ultrapassam as eleições de 2022. A ausência de um projeto nacional que alinhe os interesses econômicos, sociais e políticos é barreira enorme para tornar a construção eleitoral em um governo viável, efetivo e que incline o país no sentido certo. Sem isso, candidatos de hoje trombarão com a realidade em 2023.