Os maiores riscos são aqueles que decorrem de nosso atraso estrutural
Ainda resvalam pelos nossos olhos e ouvidos as imagens das manifestações bolsonaristas do último Sete de Setembro. O encontro do ex-capitão com suas hostes, organizadas pelas redes sociais, foi o único fato político que essencialmente deriva de uma ação política consistente. A essência reacionária daquele encontro permanece íntegra, mesmo que dormente, por ora. Houve, ainda, o discurso presidencial na Assembleia Geral da ONU. A vergonha do país só não é maior, porque o mundo nos vê como um país agastado, sofrido e sem destino. O desprezo internacional é o melhor que podemos ter nesta hora nada sublime.
De lá para cá as reações contra o atual governo se deram nos gabinetes e telefones ou por meio de convescotes regados a vinho de boa marca e cepa. O ponto alto e imagético da falta de ação política de outras fileiras que não as bolsonaristas foi o ex-presidente Michel Temer ter mediado uma "trégua", uma deténte, entre o ocupante do Planalto e o Ministro do STF Alexandre de Moraes. Não bastasse o feito de Temer, que per se conspira com modos macunaímicos contra as instituições, o ex-presidente participou de um jantar na casa de um investidor, onde as confidências do encontro presidencial foram contadas aos comensais por entre risadas de um imitador do ex capitão que nos governa. No Brasil dos quase 600 mil mortos pelo coronavírus o fato é apenas triste e trágico, nada cômico.
A CPI da covid-19 persiste o seu caminho, desengonçadamente, inquirindo um e outro, quando quase tudo que se discute já é sabido. Falta, em verdade, ação política e judicial para responsabilizar os malfeitores que contribuíram para a mortandade desta pandemia. A paralisia se institucionalizou no parlamento em meio a gritos de senadores e deputados.
Impressiona, ainda, o sumiço desembaraçado da denominada esquerda petista da luta contra os desmandos soltos que assolam a República. Lula vê-se refugiado de tudo na espera de que sua candidatura presidencial seja confrontada com a do próprio Messias do Planalto. Assim, pensa ele, o pleito lhe cairá no colo enquanto o país simplesmente despenca por mais ano e tanto, pelo menos.
Novidade mesmo, são os preços que sobem diariamente nas prateleiras do comércio e dos postos de gasolina. O choque de oferta, externo e interno, e a elevação do câmbio por conta dos riscos políticos, batem às portas dos empobrecidos brasileiros. A alta dos preços não é propriamente inflação (definida como “alta constante de preços”), mas rapidamente encontrou a resposta mais objetiva e óbvia que poderia haver: os juros básicos subiram e subirão mais para reduzir a demanda que já anda capenga. Os aplausos, por óbvio, vieram dos rentistas da dívida pública. A única política econômica existente é a praticada pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central. O resto é resto.
Lá de fora os riscos são cada vez maiores: o financismo que elevou sistematicamente as cotações dos ativos de renda variável, notadamente as ações, começa a apresentar sinais de instabilidade. A crise da Evergrande, a segunda maior incorporadora imobiliária chinesa, é apenas a ponta de um profundo iceberg. O Banco Central dos EUA sabe disso e monitora os seus movimentos para que as marolas não se tornem tsunamis. Afinal, à autoridade monetária norte-americana interessa o “emprego inclusivo” para o povo americano, conforme registrado na ata da última reunião do FOMC (sigla em inglês para Comitê Federal do Mercado Aberto, aquele que define os rumos da política monetária nos EUA). (Um comentário aos desavisados: o Federal Reserve não é comunista!).
Em meio a este cenário, o real anda desvalorizado e tem grande chance de permanecer assim, na melhor das hipóteses, nos próximos meses. O risco Brasil não fere aos amadores do mercado, mas faz as suas vítimas dentre as empresas que têm de captar recursos para as suas operações.
É preciso entender que o Brasil está ferido pelos desmandos seguidos que atentaram contra a saúde popular e a economia. A recuperação será lenta e, talvez, ainda mais lenta por causa do cenário externo desafiador, quiçá recessivo. Análises e pesquisas de instituições financeiras e think tanks respeitáveis estão sinalizando um conjunto de riscos às economias dos países mais ricos que podem minar o crescimento global. A conjuntura será provavelmente muito mais difícil em 2022 e 2023. O Brasil pode mergulhar ainda mais na incerteza econômica e na instabilidade social para além da administração de Paulo Guedes, "ex-cavaleiro da esperança do mercado".
Todavia, os maiores riscos não são os externos, mas aqueles que decorrem de nosso atraso estrutural, dentre os quais, do avolumamento de analfabetos funcionais, da falta de desenvolvimento tecnológico e crescente dependência do exterior, da infraestrutura débil e incapaz de atender às necessidades básicas do país no novo milênio, da desindustrialização continuada, do baixo volume de investimento público e privado fruto da crise financeira do Estado.
Não será um mero ajuste fiscal e monetário que nos recolocará na rota do desenvolvimento. Teremos de fazer um esforço coordenado, continuado e organizado entre o Estado e a sociedade civil para que nossas chances de sermos um país razoável possam ser críveis, mesmo que a longo prazo. A disputa ideológica entre segmentos liberais e intervencionistas é falsa. É a associação, politicamente organizada, entre o capital privado e público que tem contribuído para o desenvolvimento das economias mais dinâmicas. Esta é a "terceira via" verdadeira.
A anomia política e social impressiona. No campo jurídico estamos diante de um país de normas rígidas e complexas que sugerem um país organizado e que respeita as instituições. Todavia, vê-se que a prática social, de forma saliente àquela das elites, desmoraliza esta ilusão. Mais: a brutalidade dos crimes e a alienação de parcelas enormes da sociedade retiraram os véus da falsa ideia de que nós brasileiros praticamos relações sociais humanizadas. Há uma barbárie em cada esquina.
Aqui o propósito é provocar a indignação e relembrar que sem ação política consubstanciada em valores que delimitam o comportamento de todos no campo civilizatório, não há solução para a vala na qual estamos encurralados. Não é razoável a tolerância corrosiva com aquilo que nos destrói enquanto sociedade.
O marco temporal das eleições do ano não deve impedir o início da construção de um processo politicamente relevante para que possamos voltar a sonhar e para sairmos do pesadelo que tomou o país como nunca dantes. A terceira via só virá se houver ação política. O resto é conchavo de gabinete desprovido de capacidade transformadora.