A hora não é de falsa pacificação ou de afagos de lado a lado com o atual presidente
Pela voz de Próspero, na sua obra prima "A Tempestade", William Shakespeare ensina que "somos feitos da mesma substância de nossos sonhos". Ao terminar de ler a "Declaração à Nação" de 9/9/2021 do capitão reformado que ocupa a presidência da República, fiquei com a sensação de que nós brasileiros somos forjados pelos nossos pesadelos. Próspero, principal personagem de "A Tempestade", busca restaurar o seu poder. No Brasil, verificamos que o poder do presidente atual pode ser mantido às custas dos dramas e pesadelos do povo brasileiro. É aceitável?
Está claro que jamais seria razoável esperar que o ex-capitão pudesse proferir um "Discurso de Gettysburg" endereçado em junho de 1863 por Lincoln ao dividido povo americano, então engolfado na guerra civil. Pela pena de Michel Temer, o primeiro mandatário do Brasil conseguiu produzir uma "Declaração" que, ao contrário do que imagina grande parte da sociedade brasileira, é um completo desrespeito às Instituições da República. Seria risível, não fosse trágica.
A cadeira da presidência da República não é banco de escola no qual se assentam meninos e meninas para aprender sobre o mundo e para receberem as lições que, conforme o trato que recebem, constroem a personalidade de cada um. Maus alunos podem ser admoestados e, até mesmo, punidos, para que se possa corrigir os erros que tenham cometido. A presidência da República é lugar de exemplo pessoal e institucional, de comprometimento com o progresso da Nação, com a manutenção de sua estabilidade, no sentido macro do termo. Não é lugar para penitências agostinianas de erros cometidos no curso do mandato presidencial. Não se pode fazer "rachadinhas" com os valores da Nação.
Erros políticos e de gestão causam custos políticos a quem os comete e repercussão negativa aos cidadãos que sofrem os seus efeitos econômicos e sociais. Não cabe aceitação fácil, sobremaneira quando se ofende aos princípios mais básicos do ser humano, a sua dignidade e a sua condição social e econômica.
No Brasil, que caminha para se consolidar como a pior dentre as nações do mundo no tratamento e no combate a maior pandemia em um século (em breve com 600 mil mortos), a "Declaração" presidencial, em face do papel subdoloso que o presidente exerceu nos palanques do dia Sete de Setembro de 2021, é um "atentado adicional" às Instituições porquanto tenta prover explicações simples para os pilares complexos da República. Ademais, a "Declaração" parece um termo de compromisso de colegial que, diante de sua suspensão das aulas por suas próprias falhas, tem de assinar junto com um responsável (Temer) um pedaço de papel. Não pode haver paciência suficiente para esta anedota de péssimo gosto.
A hora é grave e exigiria ação política equivalente à tal gravidade para que, assim, possamos trilhar um caminho que seja favorável aos brasileiros. Todavia, as Instituições parecem paralisadas diante de um ex-capitão que por quase três anos atordoa o cotidiano de cada cidadão, deseducando-o sobre os temas cívicos da forma mais ignominiosa que se possa imaginar. Faltam-nos nesta triste fase, lideranças que se comprometam com os interesses mais profundos do Brasil.
A hora não é de falsa pacificação ou de afagos de lado a lado com o atual presidente. O momento exige que se realize, isso sim, um "impeachment preventivo". Aqui é utilizada a analogia com termo "ataque preventivo" (preemptive strike) que se justifica pelo legítimo direito de atacar o inimigo frente ao iminente risco que ele representa em uma guerra ou batalha. Vejamos.
O "impeachment preventivo" deve ser imediatamente adotado em função:
(a) Da relevância do risco que o atual presidente representa em termos institucionais. Até as próximas eleições, além dos ataques à República, o ex capitão poderá causar enorme risco ao próprio pleito eleitoral;
(b) Da cristalina possibilidade de que eventos como os do último Sete de Setembro possam se repetir e se converterem em "movimentos", como a paralisação que os caminhoneiros tentaram realizar nos últimos dias;
(c) Do fato de que nenhum freio ou contrapeso dos outros poderes da República funciona diante da personalidade paranoica e psicótica do atual presidente. Não há a alternativa da contenção;
(d) Da existência de crime de responsabilidade ocorrido, seja diante da condução da pandemia, seja nos diversos eventos atentatórios contra às Instituições do país e à democracia;
(e) Dos poderes que um presidente detém, enquanto Comandante Supremo das Forças Armadas, para exercer tais atentados contra as Instituições e à democracia;
(f) Das recentes participações de indivíduos e entidades, brasileiras e estrangeiras, na consecução de atos e fake news em favor do projeto reacionário do atual presidente;
(g) Finalmente, porque os riscos, além de altos, são crescentes.
Como se pode facilmente verificar temos presentes todos os ingredientes para que se realize um processo de impeachment. É preciso excluir o ex capitão do processo político porque ele representa um projeto alinhado com a antipolítica.
Não resta dúvida de que, a despeito dos elementos políticos-jurídicos existentes na atual conjuntura, é preciso que a sociedade se mobilize vez que a classe política parece afeita à defesa de seus próprios interesses até o momento. Refiro-me especialmente às lideranças das casas legislativas que emitiram sinais anódinos e pouco sensíveis à defesa dos interesses republicanos do país.
Não pode haver paz quando se vive no afrontamento aos princípios mais básicos da democracia e no desrespeito mais vil à Constituição do país. A ideia de pacificação não é apenas falsa. É verdadeiramente tola frente às iniciativas deste personagem nefasto da história. Nossos sonhos se esvaíram. Precisamos voltar a tê-los. Por enquanto, tudo é pesadelo nesta tempestade sem fim.