Está claro que a crise institucional brasileira se tornou aberta e observável, até mesmo, aos olhos dos mais desavisados. Não bastasse o mal-estar social com o curso da pandemia, em seus aspectos incertos e nos riscos criados por um governo desastroso, agora temos a junção emblemática da crise econômica, a tragédia social e a pandemia política.
Não estamos diante de uma conjuntura desfavorável, mas da realidade profunda que permite que se especule abertamente sobre um possível “golpe”, sem que a defesa social tenha equivalência com a enunciação desabrida do provável fato.
Vale notar que estamos em um estado permanente de crise há pelo menos oito anos e permanecemos resignados a vivê-lo sem iniciativas que possam cessar este cotidiano.
As instituições do Estado e do governo hoje estão tomadas por interesses limitados a exercer um papel contido, fruto daquilo que Hanna Arendt chamava do divórcio entre o poder e a política. De fato, à autoridade falta o bom exemplo, a cidadania, a liturgia. Ao poder falta o interesse público o qual foi tomado, por dentro do Estado, pelo interesse privado mais direto, aqueles dos “representantes do povo”.
Rapidamente estamos a mitigar continuamente a funcionalidade da política pela perda absoluta de confiança entre a sociedade e os governantes (ou a própria governança).
A delegação inerente ao processo e ao mandato democrático recaiu sobre o ex-capitão devotado à criação permanente de meios atentatórios à democracia e o zelo pela confusão ideológica, fruto de incessante processo de criação de factoides e distorções comezinhas e imaginárias. O falseamento da democracia é processo muito mais profundo do que, em princípio, se imagina. Afinal, parte enorme da sociedade se debate em torno de fatos e temas sem raízes públicas ou comunitárias, sem priorização, sem programa, sem visões, sem meios e fins. O governo se tornou uma máquina desgovernada que se confronta com a sociedade e não produz nada que realmente importe. Não se pode obter resultados concretos e interessantes à República se se tenta provar que a terra é plana, que os comunistas engolem crianças, que as vacinas não impedem as doenças ou que os estudantes devem estudar em casa para escapar da esquerda ideológica na escola. Kafka e Dostoiévski seriam concretamente explicados em vista do absurdo que imaginaram literariamente.
Ocorre que deste inepto e incrível debate escapulimos para algo mais concreto: a corrupção e a incompetência em torno do combate à pandemia, algo sempre presente neste desgoverno. A CPI, que trata dos secos e molhados da pandemia, desvendou a concretude da realidade e, logo, as ameaças de quebra da ordem constitucional apareceram novamente. Verdade seja dita: neste contexto de ameaças, os arroubos dos fardados empoderados tornaram a confusão um desengonçado acordo entre certo bolsonarismo destinado a contestar o que é óbvio e o descaso esquivo com a democracia de parte das Forças Armadas. Não à toa, o presidente enfaixado de verde e amarelo opera na faixa da fraude eleitoral vindoura, aquela que seria salva pelos votos de papel, enquanto os militares defendem coronéis que andam fazendo coisas nada republicanas. Neste estranho tenentismo, a confusão é o método do momento para arrastar a crise institucional e estrutural para o desfecho antidemocrático. Não vê quem não quer.
A única certeza que se pode ter neste cenário é que as inquietações da hora serão a crise aberta de amanhã. O princípio organizador que está em plena vigência é demonstrar para o cidadão comum que o seu antigo desgosto com a classe política, com o Judiciário, com as instituições em geral, pode ser solucionado pela obra redentora de um “regime forte”, calcado na solução milagreira das ameaças existenciais à sociedade. A pregação irá caminhar, agora com maior velocidade, para a falsa ideia de que não há como o “capitão do mato” resolver os problemas brasileiros na atual configuração institucional. A solução passa, está claro, pela ascensão definitiva da classe armada ao Estado e ao governo. Noto que isto inclui a base de polícias estaduais e milicianos ocasionais. A geleia é geral.
Enquanto isso, os poderes vigentes ficam a emitir “notas à imprensa” rechaçando a realidade que caminha a passos largos, concretos e cada vez mais céleres. Estejam certos: não irá funcionar este modus escasso de vigor entranhado na sociedade. Os cidadãos não acreditam que os poderes institucionais resolvam os seus problemas. Sem este preâmbulo a qualquer diagnóstico, o começo da solução está errado, inclusive para aqueles que acreditam na vinda redentora de um candidato em 2022.
O nosso Messias de plantão sabe desta fragilidade básica e é isto que dá segurança intrínseca ao seu discurso que esculhamba e escangalha as instituições.
É preciso criar rapidamente mecanismos de defesa.
O impeachment deve ser o começo das soluções, mas a República, desta vez, necessita que a restauração seja além da reunião de seus pedaços espalhados por entre políticos e poderosos. No mundo digital, a democracia brasileira caminha a vapor.