A entrada do "Centrão" pelo meio, facilitou a saída dos "inimigos internos" do governo pelas pontas.
O momento político do país ganha contorno inédito: provavelmente, caminhamos com alguma celeridade para um desfecho de incerta crise institucional que pode provocar sérios abalos à democracia, não apenas do ponto de vista essencial (já trôpega há alguns anos) como do ponto de vista instrumental (ou formal). Em palavras ainda mais diretas, é possível que as instituições brasileiras passem por um teste de resistência entre o momento atual e as eleições do ano que vem.
Os 55,1% de votos válidos de Jair Messias Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2018, 57,8 milhões de votos, 10,0 milhões a mais que seu oponente petista Fernando Haddad, simbolizou não a disputa entre propostas de programas ou de estruturas de poder, mas a dicotomia cega e sem debate entre o petismo da gema e o antipetismo de alma ("ou raiz?"). Daí surge o bolsonarismo.
A eleição foi, ao contrário do que se possa imaginar, a terceira mais apertada desde 1989. A diferença mais elástica foi a entre Lula e Geraldo Alckmin em 2002, algo muito próximo de 60/40 em favor do antigo sindicalista. Paradoxalmente, o debate naquele momento foi centrista, comportado e, até mesmo, educado. Tempos idos, nos quais a radicalização eleitoral era contida e, de muitas formas, uma simulação (falsa) dos verdadeiros programas políticos. A radicalização era fake e conveniente do ponto de vista programático. Afinal, a transformação do país foi minúscula. Restou a praga da reeleição em meio a partidos frágeis e "fisiológicos" que não fazem maioria congressual.
Hoje a radicalização política e eleitoral atinge esferas institucionais abrangentes como, por exemplo, o federalismo: em 2018, 12 dos 27 governadores se converteram em bolsonaristas. (A proposta eleitoral "bolsodoria" é a mais lembrada). Hoje se pode afirmar que há unidade de pelo menos 20 governadores contra o presidente da República por conta da trágica pandemia que nos atinge.
Do lado daquilo que durante a luta pela redemocratização eram chamadas de "forças produtivas", o cenário tem contorno de decepção. A elite econômica que acreditava em Bolsonaro em 2018 e lhe fez acenos de subserviência ideológica em seguida, agora parte para o arrependimento contido. O surgimento de manifestações como a liderada pelo ex-presidente do BC Armínio Fraga, apesar de instigarem certa resistência social das elites, ainda carecem do motor potente das forças produtivas. Ademais, falta diálogo mais proveitoso com a turma que tem o voto, o distinto povo.
O atraso do país é visível: somente em trinta anos ou pouco mais podemos dobrar a renda per capita. O crescimento não tem tração e o desenvolvimento mais holístico e abrangente do país está atolado no atraso (senão na ignorância) ambiental, no atraso tecnológico, na profunda desigualdade social, na falta de infraestrutura, na falta de educação, nas deterioradas condições urbanas e assim vai.
Agora, temos em andamento o jogo duplo, comandado por Bolsonaro, de um lado, e pelo denominado "Centrão", por outro.
Do lado do "Centrão" verifica-se, mais uma vez, o seu típico "ataque de pinça" que, por um flanco, luta e conquista cargos no governo e, por outra fresta, usa o orçamento do Estado a seu favor de forma a manter os seus apaniguados e sua base eleitoral que é, senão grande, suficiente para dar aparência de "equilíbrio" ao jogo desequilibrado do petismo versus o antipetismo. Interessante que esta velha estratégia tem chance concreta de dar em nada, pois a aceitação momentânea do "Centrão", enquanto aliado do bolsonarismo, resulta do crescente montante de cadáveres da pandemia. A irracionalidade das políticas contra a covid-19 da parte do governo de Jair Messias jogou o país em uma rota cujo desfecho não está claro do ponto de vista sanitário. O "Centrão", ao tentar alinhavar o presidente em sua teia, com ele terá mesmo destino. Um cenário, portanto, bastante diverso daquele que existiu sob Dilma Rousseff, quando o "Centrão" dominou o governo da petista e repetiu a dose sob Michel Temer, sem que as sequelas da petista existissem no corpo dos partidos do "Centrão".
Do lado de Bolsonaro, o jogo é de larga escala. A entrada do "Centrão" pelo meio, facilitou a saída dos "inimigos internos" do governo pelas pontas. Para o presidente o ajuste que fez com os políticos do "Centrão" se tornou um "ajuste de contas" com os que não querem fazer parte de sua trupe ideológica. Portanto, ganha o "Centrão" o seu butim de cargos e os tesouros do Erário e ganha o presidente o apoio político necessário à sobrevivência política contra o impeachment no Congresso. Mas não é só isso.
O governo avançou nos últimos dois anos, em todas as posições estratégicas do governo e do Estado: nas principais estatais, nos serviços de inteligência, nas políticas em prol das "forças de segurança" (dos cadetes às políticas estaduais) e alguma coisa, até mesmo, no Judiciário com o qual vivia às turras. Imaginar que os poderes de Bolsonaro caem quando cai a sua popularidade é erro grosseiro do ponto de vista analítico. O Planalto tem muito bem mapeado quem está contra ele e quem está a seu favor. E sabe se articular em meio a sua própria confusão.
Agora, Bolsonaro, quem não age sozinho nessa, está avançando sobre as Forças Armadas, notadamente sobre o Exército, de onde saiu quase expulso e desmoralizado.
A troca dos comandantes das três Forças, terá inédito caráter personalíssimo desde o Governo Geisel nos anos 1970. Mesmo que Jair Messias não consiga tudo que quer, ele terá avançado sobre o poder militar do Estado.
No contexto atual que vivemos, não estamos assistindo a derrocada de um governo - ledo engano tratá-lo como mais frágil hoje do que ontem. De fato, o bolsonarismo caminha para testar a democracia, além do que já fez. O jogo estará decidido no curto prazo, possivelmente entre hoje e as eleições do próximo ano. Para quem derrubou as paredes e instalou a insensatez e a irracionalidade na democracia, agora pretende e pode balançar os seus pilares. Não à toa estamos em 31 de março.