Pitadas Jurídicas

Direito a ser pai

A advogada trata do direito a ser pai.

18/8/2016

Na coluna de hoje, a advogada trata do direito a ser pai.

"Tradicionalmente o pai sempre foi considerado aquele que tivesse um vínculo natural. Primeiramente um vínculo genético, biológico com os filhos. Depois, passamos para a paternidade fundada na adoção. Então é possível que o pai se torne pai, seja reconhecido como pai, porque submeteu a um processo de adoção. E há também a possibilidade do reconhecimento voluntário, onde aquele pai espontaneamente vem e reconhece como seu um filho que não tenha a paternidade reconhecida.

O problema em relação a paternidade surge quando estamos diante de duas pessoas brigando pela paternidade. Temos inúmeros casos no Judiciário do Brasil, onde temos por exemplo um pai biológico, ausente, e por outro lado a gente tem o padrasto, que é o pai que cria, que a doutrina hoje chama de pai socieoafetivo. Se houver alguma disputa, um conflito entre esse pai biológico ausente e esse padrasto presente, nós temos várias decisões reconhecendo direito e deveres para esse pai que cria. Deveres não seria o caso de se impor, porque se esse pai que cria realmente tem esse afeto, se ele ama esse enteado, tem esse enteado como filho, espontaneamente ele pode conferir todos os direitos para aquela criança. Ele pode assegurar direito sucessório, direito a alimentos; a única coisa que ele pode ter dificuldade é pleitear algum tipo de direito perante o Estado, porque o Estado pode se recusar e aí precisaria de um reconhecimento judicial.

Mas, nós tivemos um caso essa semana julgado pela 10ª Câmara do Direito do TJ/SP que apreciou uma questão específica, que é uma decisão inédita, porque não estávamos no caso ali apreciado, segundo o acórdão decidindo um conflito entre um pai biológico ausente e um padrasto presente. Na verdade, o caso foi uma moça, começou a namorar e durante o namoro ela engravida de outro rapaz. O namoro é desfeito, uma briga e tudo mais, que acaba sendo superado. O rapaz perdoa, se casa com a moça e isso nasce a criança do outro relacionamento. E esse pai biológico reconhece direitinho a paternidade e segundo consta na decisão judicial, fornece todo o amparo material e afetivo para aquela criança. Estamos diante de um pai genético e afetivo, porque foi registrado ali que a questão afetiva estava presente naquele relacionamento. E do outro lado, o padrasto, chamado de pai socioafetivo. Quando aquela criança atinge os quatro anos, a mãe falece, e nessa situação o pai biológico leva a criança para a sua casa e por lá permanece por quatro meses. Só que o padrasto entra com uma ação de guarda e aí o Judiciário vai resolver. Quem vai poder ficar com a guarda daquela criança? O que deve prevalecer? A paternidade genético-afetiva ou a paternidade exclusivamente socioafetiva?

A grande novidade dessa decisão foi justamente que o TJ pela 10ª Câmara, de forma não unânime, conferiu direito ao padrasto. O voto apresenta um estudo psicossocial feito que demonstra o estado emocional do padrasto, que ele ficou muito sofrido com a perda da esposa e agora teria também a perda do filho afetivo, do enteado; o enteado convivia com uma irmãzinha unilateral e que ele era uma ótima pessoa e por isso o TJ entendeu que aquele caso seria melhor que aquela criança ficasse com o padrasto.

Essa decisão é bastante nova e nós temos duas correntes de interpretação. A primeira corrente de interpretação é aquela corrente que entende que a paternidade deve ter como seu pilar primordial o afeto. Que havendo o afeto, então essa paternidade tem que prevalecer. É complicado analisar esse caso porque não há ausência de afeto por parte da paternidade biológica. Nós estaríamos diante de uma decisão salomônica: temos dois pais e como que a gente vai fazer se a gente tem uma criança só. E há uma outra corrente que é defendida pela Associação de Direito de Família e Sucessões, a ADFAS, que realmente tem um posicionamento contrário a essa corrente que entende que a paternidade deve ter seu pilar fundamental no afeto. Vou explicar o porquê.

A paternidade é um direito da criança, inserido dentro da dignidade da pessoa humana, extremamente importante. Tanto é que em todos os sistemas jurídicos, essa paternidade acaba sendo muito estável, nós precisamos ter um pilar estável. As pessoas não podem ser pai, deixar de ser pai de uma forma inconstante. E o afeto é algo instável. Nós sabemos que temos famílias recompostas. Às vezes uma mesma criança acaba tendo um convívio do pai biológico, aí a mãe se casa, fica casada por sete anos, tem um padrasto, aquele casamento não dá certo, a mãe tem o direito de casar-se novamente, ter outro padrasto, e aí? Quantos pais essa criança tem? Será que essa paternidade tão instável, essa paternidade flutuante ou então o acúmulo de paternidade é saudável para uma criança?

É isso que nós devemos refletir. A decisão, o acórdão está publicado, reservado o sigilo das partes, ele é público, e merece uma reflexão. Nós não temos dados, não foi citado como fundamento no acórdão, nesse caso concreto, há o estudo psicossocial da criança, com quem a criança convivia mais, ou com quem aquela criança tinha um vínculo de afeto mais estabelecido. Porque vejam, nós não podemos presumir, que o simples fato do padrasto morar na mesma casa da criança, que isso quer dizer que ele tinha um convívio maior, porque ficou dito ali que de 15 em 15 dias aquela criança convivia com o pai biológico. E nós sabemos que nas pequenas cidades do interior ou nas grandes cidades, muitas vezes o pai que está dentro de casa, acaba convivendo com os filhos só aos finais de semana, seja porque ele passa a semana trabalhando numa fazenda, seja porque o trabalho dele é distante, ele sai de manhã cedo e os filhos estão dormindo e quando ele volta a noite, os filhos também estão dormindo, então o convívio acaba sendo mais aos finais de semana, porque ainda temos a figura do pai como provedor das famílias, então quer dizer, a gente precisa analisar isso, com muito cuidado, porque o que deve prevalecer nesse tipo de conflito é sim o interesse da criança, mas não o interesse momentâneo, e sim o interesse que resguarda o direito da criança ter um pai e também o direito de ser pai. Porque do jeito que é essa decisão foi colocada pode ser que todos os pais biológicos, hoje, que não convivem, que não moram na mesma casa com seus filhos, estão correndo risco sim de perder direitos para padrastos. Eu não sei se isso é saudável e eu queria trazer essa questão para reflexão e para discussão com todos vocês."

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Lauane Braz Andrekowisk Volpe Camargo é doutora e mestre em Direito pela PUC/SP. Advogada sócia do escritório Volpe Camargo Advogados Associados. Presidente da ADFAS - Associação de Direito de Família e Sucessões do Estado do Mato Grosso do Sul. Professora da graduação e pós-graduação da Universidade Católica Dom Bosco/MS. Advogada membro substituta do Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso do Sul, biênio 2015/2016.