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Licença compulsória de música

Licença compulsória de música.

26/2/2018

Recentemente um intérprete baiano bastante conhecido nos consultou sobre a possibilidade de gravar um fonograma com músicas de outros autores. Para tanto, ele não queria obter licenças individuais e sofrer com a comum negativa ou com o também comum, segundo nos relatou, pedido de valores muito altos pelas autorizações, que acabam inviabilizando economicamente o projeto.

Esse intérprete ainda nos encaminhou uma licença obtida em um site norte-americano chamado 'Easy Song Licensing', que o "autorizava" a gravar todas aquelas faixas de autores brasileiros que desejava. Ao final, nos consultou se essa licença era válida no Brasil e quais seriam as consequências do uso.

A resposta é simples, mas vale a reflexão.

A despeito de o direito sobre criações intelectuais ser fruto de convenções internacionais das quais os Estados Unidos fazem parte, o sistema de proteção para eles é diferente do nosso. No Brasil, seguimos o direito de autor de origem francesa (droit d'ateur) e eles lá seguem o de origem inglesa ou "copyright". São muitas semelhanças, mas outras tantas diferenças. Uma dessas diferenças é a chamada licença compulsória de música.

Para os americanos, uma vez publicada uma música, qualquer que seja ela, o seu autor não pode impedir que outra pessoa a publique. Não é preciso uma autorização, que poderia ser seguida de uma negativa, mas é preciso pagar pelo uso. Esse pagamento, entretanto, não é do arbítrio do autor nem do utente, mas fixado pelo US Copyright Office, uma espécie de agência do governo americano que cuida do direito de autor deles.

Funciona assim. O intérprete que desejar regravar uma música, comunica por carta (Notice of Intention) ao titular dos direitos que pretende usar a obra, descreve informações técnicas do fonograma e especialmente o número de cópias que fará. Essa comunicação é feita antes de qualquer distribuição ou venda. Adicionalmente a isso, o usuário paga ao titular uma taxa já estabelecida, que hoje é de 9,1 centavos de dólar ou 1,75 centavos de dólar por minuto, o que for maior. Assim, em uma música de 4 minutos, que estará contida em 10.000 cópias de um fonograma, o usuário pagará 910 dólares ao titular.

Note que essa carta não é um pedido de autorização, mas apenas um aviso que serve para o titular saber que sua composição será regravada. O autor, lá nos Estados Unidos, só poderá se opor se aquele que pretende usar sua obra fizer mudanças substanciais na letra ou na melodia.

Aqui é diferente. No Brasil, o autor controla de maneira quase absoluta o uso da sua obra. É direito do criador intelectual autorizar ou não o uso de sua composição musical. Também é ele quem estabelece o preço pelo uso. Pela nossa legislação, não se pode obrigar o autor a aceitar a regravação de sua composição musical. Isso decorre do disposto nos arts. 28 e 29 da Lei de Direito Autoral que estabelece:

Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.

Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

I - a reprodução parcial ou integral;

(...)

V - a inclusão em fonograma ou produção audiovisual;

Não havendo autorização e constatada a ilicitude, o Superior Tribunal de Justiça fixou entendimento no sentido de que o valor da indenização deve corresponder - na proporção de faixas do fonograma reproduzidas – ao preço do fonograma vendido no varejo. Assim, se um CD é vendido a R$ 20 nas lojas, contém 10 faixas, mas uma delas é produto de contrafação, a indenização é de R$2,00 por CD produzido. Tome-se esse precedente na parte que interessa:

(...)

3. Consoante a jurisprudência desta Corte Superior, o ressarcimento pela utilização indevida de obra artística deve se dar com o arbitramento de indenização a ser fixada com a observância da proporção da efetiva contribuição do autor na totalidade do fonograma produzido, sob pena de se promover seu enriquecimento sem causa.

4. Na hipótese vertente - em que houve inequívoca utilização não autorizada de apenas uma composição musical do autor da demanda em fonograma (CD) possuidor de outras 13 (treze) faixas - a indenização deve ser arbitrada em valor correspondente a 1/14 (um quatorze avos) ao resultante da multiplicação do número de cópias comercializadas da obra musical na qual indevidamente inserida sua criação (100.000 - cem mil) pelo preço de capa de uma de suas unidades (R$ 10,08 - dez reais e oito centavos), o que equivale a exatos R$ 72.000,00 (setenta e dois mil reais), montante que há um só tempo promove o ressarcimento do autor da canção contrafeita e desestimula o comportamento reprovável dos responsáveis pelo plágio verificado. (REsp 1457234/PB, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Rel. p/ Acórdão ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/9/2016, DJe 4/10/2016)

Essa regra, entretanto, não é absoluta. Em um outro precedente recente, o STJ confirmou decisão do Tribunal do Rio de Janeiro, que condenou o contrafator em proporção diferente, porque, no caso, a música objeto de contrafação representou o sucesso das vendagens de 300.000 cópias do fonograma (REsp 1635646/RJ).

As diferenças entre o sistema brasileiro e o norte-americano ficam estabelecidas. Aqui a autorização para inclusão de composição musical em fonograma é obrigatória, lá apenas o aviso. No Brasil quem fixa o preço é o próprio autor, se consultado previamente. Caso a música seja reproduzida ilegalmente, a indenização é fixada na proporção do preço de capa do fonograma. Lá, o autor é apenas comunicado e o preço é fixo, estabelecido pelo US Copyright Office. Por esses motivos, respondemos à consulta afirmando de forma absoluta que a licença foi obtida nos Estados Unidos não tem nenhuma validade no Brasil.

Há um projeto de lei tramitando no Congresso Nacional apresentado pelo Deputado Carlos Bezerra PMDB/MT que trata, entre outros temas, de uma eventual licença compulsória de obra literária artística ou científica. No projeto original, PL 6.117/2009, essa licença seria concedida pelo Poder Judiciário mediante pedido do interessado. A redação proposta para um novo art. 52 da lei 9.610/98 é esta:

Art. 52-B. Poderá ser autorizada, mediante decisão judicial, a utilização de qualquer tipo de obra, fonograma, interpretação, execução ou emissão quando, ao exercer seus direitos patrimoniais, o sucessor ou qualquer outro titular derivado dos direitos sobre obra de autor já falecido: I - exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos costumes ou pelo fim econômico ou social do exercício dos direitos patrimoniais; e II - prejudicar, em virtude do disposto no inciso I do caput, o acesso ou a fruição da obra pela sociedade. § 1º A autorização prevista no caput se sujeita ao pagamento de remuneração, arbitrada pela autoridade judicial competente, a ser paga ao titular dos direitos sobre a obra. § 2º Podem pleitear a autorização de que trata o caput os mesmos legitimados para a propositura da ação civil pública, sempre que houver lesão ou ameaça de lesão a direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.”

No substitutivo ao projeto original (PL 3.133/2012), apresentado pelo deputado Nazareno Fonteles PT/PI, essa licença compulsória é concedida pelo presidente da República:

"Art. 52-B. O Presidente da República poderá, mediante requerimento de interessado legitimado nos termos do § 3.º, conceder licença não voluntária e não exclusiva para tradução, reprodução, distribuição, edição e exposição de obras literárias, artísticas ou científicas, desde que a licença atenda necessariamente aos interesses da ciência, da cultura, da educação ou do direito fundamental de acesso à informação, nos seguintes casos: (...)

Difícil dizer qual dos dois apresenta uma solução pior. O primeiro transfere ao Poder Judiciário, o segundo ao Executivo. A pergunta que fica sem resposta é: porque o próprio legislativo não opta por conceder essa licença por meio da lei, criando regras? Afinal, se estão tratando do tema, qual a razão de transferir a responsabilidade para um juiz ou para o presidente da República?

Por fim, uma ressalva importante. Essa licença compulsória aqui tratada é para gravação e distribuição. Não guarda nenhuma relação com a licença para a execução pública da música em um show, por exemplo, mas esse é um assunto para outro dia.

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Colunista

Luciano Andrade Pinheiro é advogado. Graduado pela Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Autoral. Autor de artigos jurídicos. Palestrante. Perito judicial em propriedade intelectual. Foi assessor de técnica legislativa na Câmara dos Deputados, diretor adjunto da Escola Superior da Advocacia da OAB/DF e vice-presidente da Caixa de Assistência dos Advogados do Brasil/DF.