Recentemente um intérprete baiano bastante conhecido nos consultou sobre a possibilidade de gravar um fonograma com músicas de outros autores. Para tanto, ele não queria obter licenças individuais e sofrer com a comum negativa ou com o também comum, segundo nos relatou, pedido de valores muito altos pelas autorizações, que acabam inviabilizando economicamente o projeto.
Esse intérprete ainda nos encaminhou uma licença obtida em um site norte-americano chamado 'Easy Song Licensing', que o "autorizava" a gravar todas aquelas faixas de autores brasileiros que desejava. Ao final, nos consultou se essa licença era válida no Brasil e quais seriam as consequências do uso.
A resposta é simples, mas vale a reflexão.
A despeito de o direito sobre criações intelectuais ser fruto de convenções internacionais das quais os Estados Unidos fazem parte, o sistema de proteção para eles é diferente do nosso. No Brasil, seguimos o direito de autor de origem francesa (droit d'ateur) e eles lá seguem o de origem inglesa ou "copyright". São muitas semelhanças, mas outras tantas diferenças. Uma dessas diferenças é a chamada licença compulsória de música.
Para os americanos, uma vez publicada uma música, qualquer que seja ela, o seu autor não pode impedir que outra pessoa a publique. Não é preciso uma autorização, que poderia ser seguida de uma negativa, mas é preciso pagar pelo uso. Esse pagamento, entretanto, não é do arbítrio do autor nem do utente, mas fixado pelo US Copyright Office, uma espécie de agência do governo americano que cuida do direito de autor deles.
Funciona assim. O intérprete que desejar regravar uma música, comunica por carta (Notice of Intention) ao titular dos direitos que pretende usar a obra, descreve informações técnicas do fonograma e especialmente o número de cópias que fará. Essa comunicação é feita antes de qualquer distribuição ou venda. Adicionalmente a isso, o usuário paga ao titular uma taxa já estabelecida, que hoje é de 9,1 centavos de dólar ou 1,75 centavos de dólar por minuto, o que for maior. Assim, em uma música de 4 minutos, que estará contida em 10.000 cópias de um fonograma, o usuário pagará 910 dólares ao titular.
Note que essa carta não é um pedido de autorização, mas apenas um aviso que serve para o titular saber que sua composição será regravada. O autor, lá nos Estados Unidos, só poderá se opor se aquele que pretende usar sua obra fizer mudanças substanciais na letra ou na melodia.
Aqui é diferente. No Brasil, o autor controla de maneira quase absoluta o uso da sua obra. É direito do criador intelectual autorizar ou não o uso de sua composição musical. Também é ele quem estabelece o preço pelo uso. Pela nossa legislação, não se pode obrigar o autor a aceitar a regravação de sua composição musical. Isso decorre do disposto nos arts. 28 e 29 da Lei de Direito Autoral que estabelece:
Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.
Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:
I - a reprodução parcial ou integral;
(...)
V - a inclusão em fonograma ou produção audiovisual;
Não havendo autorização e constatada a ilicitude, o Superior Tribunal de Justiça fixou entendimento no sentido de que o valor da indenização deve corresponder - na proporção de faixas do fonograma reproduzidas – ao preço do fonograma vendido no varejo. Assim, se um CD é vendido a R$ 20 nas lojas, contém 10 faixas, mas uma delas é produto de contrafação, a indenização é de R$2,00 por CD produzido. Tome-se esse precedente na parte que interessa:
(...)
3. Consoante a jurisprudência desta Corte Superior, o ressarcimento pela utilização indevida de obra artística deve se dar com o arbitramento de indenização a ser fixada com a observância da proporção da efetiva contribuição do autor na totalidade do fonograma produzido, sob pena de se promover seu enriquecimento sem causa.
4. Na hipótese vertente - em que houve inequívoca utilização não autorizada de apenas uma composição musical do autor da demanda em fonograma (CD) possuidor de outras 13 (treze) faixas - a indenização deve ser arbitrada em valor correspondente a 1/14 (um quatorze avos) ao resultante da multiplicação do número de cópias comercializadas da obra musical na qual indevidamente inserida sua criação (100.000 - cem mil) pelo preço de capa de uma de suas unidades (R$ 10,08 - dez reais e oito centavos), o que equivale a exatos R$ 72.000,00 (setenta e dois mil reais), montante que há um só tempo promove o ressarcimento do autor da canção contrafeita e desestimula o comportamento reprovável dos responsáveis pelo plágio verificado. (REsp 1457234/PB, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Rel. p/ Acórdão ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/9/2016, DJe 4/10/2016)
Essa regra, entretanto, não é absoluta. Em um outro precedente recente, o STJ confirmou decisão do Tribunal do Rio de Janeiro, que condenou o contrafator em proporção diferente, porque, no caso, a música objeto de contrafação representou o sucesso das vendagens de 300.000 cópias do fonograma (REsp 1635646/RJ).
As diferenças entre o sistema brasileiro e o norte-americano ficam estabelecidas. Aqui a autorização para inclusão de composição musical em fonograma é obrigatória, lá apenas o aviso. No Brasil quem fixa o preço é o próprio autor, se consultado previamente. Caso a música seja reproduzida ilegalmente, a indenização é fixada na proporção do preço de capa do fonograma. Lá, o autor é apenas comunicado e o preço é fixo, estabelecido pelo US Copyright Office. Por esses motivos, respondemos à consulta afirmando de forma absoluta que a licença foi obtida nos Estados Unidos não tem nenhuma validade no Brasil.
Há um projeto de lei tramitando no Congresso Nacional apresentado pelo Deputado Carlos Bezerra PMDB/MT que trata, entre outros temas, de uma eventual licença compulsória de obra literária artística ou científica. No projeto original, PL 6.117/2009, essa licença seria concedida pelo Poder Judiciário mediante pedido do interessado. A redação proposta para um novo art. 52 da lei 9.610/98 é esta:
Art. 52-B. Poderá ser autorizada, mediante decisão judicial, a utilização de qualquer tipo de obra, fonograma, interpretação, execução ou emissão quando, ao exercer seus direitos patrimoniais, o sucessor ou qualquer outro titular derivado dos direitos sobre obra de autor já falecido: I - exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos costumes ou pelo fim econômico ou social do exercício dos direitos patrimoniais; e II - prejudicar, em virtude do disposto no inciso I do caput, o acesso ou a fruição da obra pela sociedade. § 1º A autorização prevista no caput se sujeita ao pagamento de remuneração, arbitrada pela autoridade judicial competente, a ser paga ao titular dos direitos sobre a obra. § 2º Podem pleitear a autorização de que trata o caput os mesmos legitimados para a propositura da ação civil pública, sempre que houver lesão ou ameaça de lesão a direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.”
No substitutivo ao projeto original (PL 3.133/2012), apresentado pelo deputado Nazareno Fonteles PT/PI, essa licença compulsória é concedida pelo presidente da República:
"Art. 52-B. O Presidente da República poderá, mediante requerimento de interessado legitimado nos termos do § 3.º, conceder licença não voluntária e não exclusiva para tradução, reprodução, distribuição, edição e exposição de obras literárias, artísticas ou científicas, desde que a licença atenda necessariamente aos interesses da ciência, da cultura, da educação ou do direito fundamental de acesso à informação, nos seguintes casos: (...)
Difícil dizer qual dos dois apresenta uma solução pior. O primeiro transfere ao Poder Judiciário, o segundo ao Executivo. A pergunta que fica sem resposta é: porque o próprio legislativo não opta por conceder essa licença por meio da lei, criando regras? Afinal, se estão tratando do tema, qual a razão de transferir a responsabilidade para um juiz ou para o presidente da República?
Por fim, uma ressalva importante. Essa licença compulsória aqui tratada é para gravação e distribuição. Não guarda nenhuma relação com a licença para a execução pública da música em um show, por exemplo, mas esse é um assunto para outro dia.