Luciano Andrade Pinheiro e Carolina Diniz Panzolini
Esta é a história de uma menina e de um touro nas ruas de Nova York e tem como pano de fundo o rico debate sobre Direito Autoral. Tudo começou com o posicionamento de uma estátua de uma corajosa menina ("fearless girl") em posição de enfrentamento diante do touro mais conhecido dos Estados Unidos, no coração de Wall Street e representativo da pujante atividade econômica daquela região. O touro, que até então estava sozinho, recebeu a companhia da garotinha em forma de escultura e reagiu.
O autor da escultura do touro chama-se Arturo Di Modica. Ele se insurgiu à colocação da escultura da "fearless girl" (garota sem medo), porque a obra foi posicionada em frente ao touro, como se houve um diálogo entre ambos, o que, segundo Arturo, teria provocado um comprometimento da sua escultura, em razão da alteração do seu significado e de possível afronta à reputação (direito moral) do autor.
A celeuma em torno da menina e do touro é muito interessante, sob ponto de vista do Direito Autoral e, para ser enfrentado, à luz de um debate técnico, faz-se necessário que os interessados dissociem os aspectos políticos e ideológicos/filosóficos e se concentrem nos elementos atinentes ao ramo autoralista. Para analisar o Direito Autoral emergente desse fato recente, não deve-se adentrar no aspecto do relevante significado do poder feminino traduzido na "fearless girl", uma vez que foi idealizada em decorrência da data comemorativa de 8 de março (Dia Internacional da Mulher), ou mesmo do pleito de Arturo, que seria a transferência da estátua da menina, para um lugar aleatório, nas ruas de Nova York. Muito menos das questões políticas envolvidas, ou aproveitamento delas por autoridades. Portanto, o que se pretende nesse artigo é refletir sobre os limites e alcances do Direito Autoral.
Outro aspecto que não merece destaque, para a reflexão desse artigo, é a legitimidade ou a competência para a arguição do autor da escultura do touro, sr. Arturo. Muito já foi argumentado quanto à ausência de legitimidade do autor, uma vez que ele mesmo não teria solicitado autorização à prefeitura de Nova York, para posicionar o touro naquela área, além de outros questionamentos de ordem processual. Ademais, a análise não gerará em torno do sucesso da "fearless girl" e de como tem sido um ponto de turístico para inúmeros turistas. Por fim, também não será abordada a repercussão para permanência da estátua por meio do abaixo-assinado já produzido. Ou seja, tratemos do Direito Autoral, exclusivamente.
Nas argumentações apresentadas por Arturo pode-se identificar dois pilares:
a) Afronta à integridade da obra, uma vez que ao inserir uma escultura de uma menina em "diálogo" com o touro, ou seja, na sua frente, reagindo a sua pujança, haveria uma mudança de seu significado original. Se antes o touro, sozinho naquele lugar, traduzia exclusivamente a mensagem da força da economia americana, estrategicamente localizado no coração de Wall Street, agora estava inserido numa agenda discussão de gêneros e poder feminino;
b) Afronta à reputação e por conseguinte ao direito moral do autor da escultura do touro, na medida em que teve a concepção de sua obra alterada. O touro sozinho tinha um determinado significado e ao receber a companhia da "fearless girl", que reagia e dialogava com ele, teve seu significado alterado e foi inserido numa agenda de direitos de gênero (feminismo), completamente diferente à ideia original.
No que se refere ao primeiro argumento de afronta à integridade da obra, há aspectos interessantes nessa linha de defesa de Arturo. O primeiro destaque refere-se ao fato de não ter havido um comprometimento ou alteração da integridade física ao touro, uma vez que ninguém tocou na escultura. O que se passou foi uma alteração de significado e de mensagem criativa, partindo-se de uma nova dinâmica no local. O touro sozinho tinha um significado explícito que era a tradução da pujança da economia americana, num lugar estratégico como a Wall Street (ou sua proximidade). Aliás o local em que o touro foi instalado também diz muito sobre seu significado, uma vez que se tivesse sido posto no Times Square (que é um local de intenso entretenimento em Nova York), provavelmente o touro não transmitiria a mesma mensagem.
Nesse sentido, ao posicionar uma escultura de uma menina sem medo com uma postura de enfrentamento ao um touro imenso, estabeleceu-se um diálogo com a primeira escultura e toda a dinâmica criativa, de fato, foi alterada. Inclusive porque a escultura da menina foi inserida, à luz do movimento feminista, em decorrência do Dia Internacional da Mulher.
O importante debate que se estabelece é no sentido de até que ponto pode se alterar a integridade de uma obra, ao não se tocar nela, mas ao introduzir uma outra obra intelectual, em reação à primeira, e que venha a alterar o seu significado inicial e a sua dinâmica criativa.
Adotemos um outro exemplo como a Monalisa exposta num museu em Paris. O destaque dessa obra intelectual sempre foi seu sorriso enigmático e as inúmeras justificativas para sua expressão. Imagine que a obra de Leonardo da Vinci receba companhia de uma escultura de um homem nu, bem na sua frente. Ao observar essa nova dinâmica criativa, poderíamos deduzir a existência de uma reação, do sorriso da Monalisa, ter sido em decorrência da nudez estampada em sua frente.
Hipoteticamente a obra de Leonardo da Vinci (Monalisa) e a escultura nua de um homem em sua frente estavam dialogando e em tese uma obra intelectual reagia à outra. Situação, por conseguinte, totalmente diferente da condição anterior em que Monalisa permanecia numa posição solitária e exclusiva. A pergunta é: haveria uma alteração de significado da obra de Da Vinci, a partir da alteração da dinâmica criativa, ora discriminada?
No caso do touro, ele foi inserido numa outra agenda humana de discussão, de natureza política e filosófica, que é a discussão de igualdades de gênero, absolutamente distinta do contexto original em que foi idealizado. Isso é fato. Mas até que ponto seu significado foi alterado e até que ponto o comprometimento da integridade da obra, sob ponto de vista do Direito Autoral pode ser suscitado, partindo-se do fato que ninguém tocou no touro?
Por outro lado, não se trata de um vaso colocado perto do touro, trata-se da escultura de uma menina em confronto, ou melhor, em diálogo, com a escultura inicial, o que, também, insere a obra intelectual inicial num contexto novo.
No que se refere à outra linha de argumentação do autor da escultura do Touro, teria havido comprometimento de sua reputação, ou seja, teria ocorrido dano moral, em razão de sua obra intelectual não ter sido criada sob a agenda da discussão da igualdade dos gêneros, ainda que o autor se autodeclare favorável ao feminismo e à valorização da mulher (o que não está sendo discutido).
Seria possível a configuração da infringência ao direito moral, como decorrência do Direito Autoral, a partir da alteração de um contexto criativo, ao inserir uma obra reagindo à primeira?
O episódio da "fearless girl" e do touro, para além das questões políticas e filosóficas envolvidas, provocou o rico debate do alcance do Direito Autoral e de quanto uma obra intelectual primígena pode ser afetada, a partir da justaposição de uma outra obra em reação àquela e inserida numa agenda de discussão totalmente diferente da agenda anterior. Até que ponto é possível comprometer a integridade e o direito moral, como desdobramentos do Direito Autoral, de uma obra intelectual, mesmo sem tocá-la?
É uma grande reflexão e há linhas de argumentos em todos os sentidos. Essa é a beleza do Direito Autoral, que está cada vez mais presente em vários campos das nossas vidas.