Luciano Andrade Pinheiro e Carolina Diniz Panzolini
No último dia 28 de junho, o sítio do Tribunal Superior do Trabalho na internet divulgou notícia do julgamento de um caso de um ex-empregado contra uma empresa de comunicação que envolve o Direito Autoral dentro do contrato de emprego. Trata-se do AIRR 873-05.2012.5.12.0039.
O reclamante pleiteava uma indenização decorrente do uso que ele considerava ilícito de um manual, que afirmava ter elaborado, direcionado a solucionar problemas no uso de aparelhos por parte dos clientes da sua ex-empregadora.
A empresa se defendeu arguindo que o manual não era obra protegida pelo direito autoral, porque mera compilação de dados que já existiam nos arquivos eletrônicos. Disse em sua defesa que o reclamante não criou sozinho o texto contido no documento.
A sentença julgou procedente o pedido. Afirmou que a as compilações são obras protegidas pelo Direito Autoral (art. 7º, XIII da lei 9.610/98) e que havia prova da autoria pelo reclamante. Aplicou por analogia as leis 9.609/98 (Lei do Software) e 9.279/96 (Lei da Propriedade Industrial) para condenar a empresa a indenizar o reclamante em R$ 50.000,00.
O Tribunal Regional do Trabalho, por sua vez, afastando a aplicação por analogia das Leis do Software e da Propriedade Industrial, reformou a sentença para julgar improcedente o pedido. Afirmou que não havia propriamente ato de criação na compilação das informações. A propriedade do acórdão na interpretação da lei de regência merece destaque.
No caso em análise, o autor condensou regras basilares para a solução de alguns habituais problemas, como, por exemplo, a de que o cliente deve, em tendo problemas na TV, verificar se estaria sintonizada no canal 3 ou 4.
O autor não criou nada. Limitou-se a fazer um esquema (manual, guia ou cartilha, independentemente do nome que se queira atribuir) de soluções possíveis para erros comumente verificados e relatados por clientes, conforme a base de dados da empresa, utilizando-se de maquinário da empresa, do conhecimento adquirido no período empregatício e do tempo de vigência da prestação de serviços. Não há traço de originalidade na elaboração de, coletados os dados, um breve repositório de possíveis soluções para problemas relacionados à prestação de serviços de TV, internet e de telecomunicações. Não houve obra intelectual ou criação do espírito nesse arranjo de possíveis soluções. As testemunhas (e.g., Ricardo Mondaca) falaram, unanimemente, que fora o autor quem criou a cartilha da fl. 75. Todavia, não há propriamente uma criação intelectual. A criação resulta indissociavelmente de um fator de originalidade e de inventividade.
Detendo-se à casuística, convém observar que o autor tinha por principais atividades aquelas que se afinam sobremaneira a soluções de problemas, porquanto ele deveria acompanhar a execução "dos serviços conforme o tipo de serviço e o horário agendado com o cliente" (fl. 62). Isso infunde a ilação de que a elaborada guia (de disponibilização gratuita a clientes) é desdobramento natural e esperado no bojo da relação empregatícia, se o trabalhador estiver imbuído do espírito e desejo de organizar rotinas de trabalho, como se afigura o caso em questão. A esquematização de conhecidas e corriqueiras recomendações de soluções não demandou esforço criativo (senão o da mera listagem de soluções) nem originalidade.
Ainda, como reforço, não há nesse arranjo de soluções feito pelo autor a feição de obra literária, que, por sua vez, se caracteriza pela criação de textos mediante a arte da linguagem. Esse arranjo está mais próximo a procedimentos normativos e esquemas, conforme o enunciado dos incs. I e II do citado art. 8º.
O autor, por não ser criador de obra literária, não tem direito autoral a ser remunerado, menos ainda lesão de ordem moral por ausência de pretensa autoria de um arranjo de soluções.
O Tribunal Superior do Trabalho negou provimento ao agravo por entender que "tratando-se de questões afetas ao conjunto fático-probatório dos autos, cuja análise esgota-se nas instâncias ordinárias, não há como se concluir pelas violações apontadas, tampouco se perquirir acerca de eventual dissenso jurisprudencial, ante o óbice da súmula 126/TST".
Afastando a discussão acerca de o manual objeto do processo ser ou não obra protegida, é atual e polêmica a questão da titularidade da obra intelectual concebida pelo autor empregado. Ou, a quem pertencem os direitos autorais da obra concebida na vigência de um contrato de emprego?
O primeiro aspecto a ser observado é a absoluta impertinência de se invocar, como fez a sentença do caso relatado, a analogia das regras de Propriedade Industrial e da Lei do Software para o julgamento de matéria afeta ao direito autoral, sobretudo na questão da titularidade e do objeto de proteção. São ramos do direito com distinções que, de tão evidentes, não podem se comunicar para sustentar uma analogia.
A principal dessas diferenças que, a nosso ver, impedem a analogia, é que na propriedade industrial e na legislação do software, a titularidade é, em regra, originária da empresa contratante. No direito autoral, ao contrário, a titularidade originária é do autor empregado.
É preciso compreender que a omissão na Lei de Direito Autoral sobre o direito do autor empregado é proposital. Quis o legislador transferir para o âmbito contratual as regras de remuneração, participação em royalties, extensão da exploração e etc. A omissão, de qualquer sorte, não autoriza a aplicação da analogia das regras da Propriedade Industrial ou da Lei do Software.
Seguindo a tendência dos países cuja legislação deriva do droit d'ateur, o legislador de 1998 contemplou a pessoa física como única capaz de criar e, portanto, de ser titular originária de direito autoral. Reserva em princípio às pessoas jurídicas a titularidade derivada de direitos patrimoniais e excepcionalmente de direitos morais.
Quanto à obra realizada por pessoa física autônoma, que não sofre ingerência de terceiros, seja financeira ou intelectual, a lei parece precisa. A omissão, que a todo custo como já dito se pode entender proposital, surge quando se busca o tratamento da titularidade da criação realizada sob a vigência de um contrato de trabalho.
Para o Direito Autoral não importa se o criador de obra intelectual é autônomo, empregado, prestador de serviços ou funcionário público. Hoje, diferentemente da lei anterior, o legislador exclui a disciplina diferenciada para as obras realizadas sob contrato de trabalho e afins, restando a aplicação da regra geral, que atribui exclusivamente a titularidade originária às pessoas físicas. Relembra-se, por oportuno, que a lei 9.610/98 determina em seu art. 11 que o titular é pessoa física que cria obra literária, artística ou científica, vedando que o empregador se aproprie originariamente da obra criada por seu empregado.
A antinomia das regras de Direito do Trabalho com as de Direito do Autor é clara. Pelo Direito do Trabalho, o fruto do labor pertence ao empregador que remunera na forma de salário a força (física ou intelectual) do empregado. Já o direito autoral afirma a titularidade àquele que produz intelectualmente, sem questionar sua situação jurídica de autonomia ou subordinação. Negar o princípio geral de direito do trabalho é tão trágico quanto negar o direito que o autor, empregado ou não, tem sobre o que produz intelectualmente.
A quem pertencem o Direito Patrimonial e o moral sobre uma obra produzida, quando quem produz recebe salário? O empregador que paga salário a seu empregado por aquele trabalho, ou o empregado que tem seu esforço intelectual protegido pela LDA?
Para responder a essas perguntas, tenha-se em mente estas regras: contratos que envolvem direito de autor devem, necessariamente, ser restritivamente interpretados; toda relação de emprego é pautada num contrato escrito ou tácito, que implicitamente contém cláusula que prescreve que o fruto do trabalho do empregado pertence ao empregador, em troca de um salário.
A ressalva preliminar necessária é: os contratos de natureza civil ou trabalhista não atingirão os direitos morais. Seguindo o que determina o art. 27 da lei 9.610/98 e pela própria natureza personalíssima, esses direitos são inalienáveis. Independentemente da condição do autor permanecerão sob sua titularidade.
Diante do quadro, a solução é entender o negócio de natureza trabalhista/autoral de forma que o empregador apenas exercerá a parte do direito patrimonial necessária ao fim do próprio contrato. O salário pago ao autor empregado servirá como remuneração à modalidade de utilização da obra necessária e suficiente à finalidade do contrato, ou para o fim primário das atividades do empregador.
O Superior Tribunal de Justiça, adotando a regra acima descrita, decidiu que:
DIREITO AUTORAL. FOTÓGRAFO CONTRATADO. RELAÇÃO DE TRABALHO. PROPRIEDADE IMATERIAL INALIENÁVEL DAS FOTOGRAFIAS. NECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO DO AUTOR DA OBRA PARA A PUBLICAÇÃO POR TERCEIROS. DESNECESSÁRIA A CESSÃO, CONTUDO, PARA A PUBLICAÇÃO PELO PRÓPRIO EMPREGADOR.
I - A fotografia é obra protegida por direito do autor, e, ainda que produzida na constância de relação de trabalho, integra a propriedade imaterial do fotógrafo, não importando se valorada como obra de especial caráter artístico ou não.
II - O empregador cessionário do direito patrimonial sobre a obra não pode transferí-lo a terceiro, mormente se o faz onerosamente, sem anuência do autor.
III - Pode, no entanto, utilizar a obra que integrou determinada matéria jornalística, para cuja ilustração incumbido o profissional fotógrafo, em outros produtos congêneres da mesma empresa.
IV - Recurso Especial provido. (REsp 1034103/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/06/2010, DJe 21/09/2010)
José de Oliveira Ascensão, com base em ULMER, chamou essa teoria de "disposição funcional" (Zweckübertragungstheorie) e asseverou: "1) o negócio autoriza, salvo cláusula em contrário, todos os atos que sejam necessários para a obtenção daquela finalidade; 2) o negócio não autoriza nenhuns atos que ultrapassem aquela finalidade"1.
Terminado o contrato de trabalho, por motivo justo ou sem motivação, os direitos que já eram do empregado permanecem com ele. A empresa não poderá mais usar a obra sem autorização. É como se aquela licença de uso pela empresa existente na vigência do contrato de trabalho encerrasse com a demissão.
Exemplifique-se com um articulista que recebe salário para escrever crítica sobre filmes da semana. Seu empregador terá direito de publicar o artigo uma só vez. Não poderá traduzi-lo, negociá-lo com outro veículo de informação, adaptá-lo ou fazer outro tipo de uso sem autorização do empregado, sob pena de violar direito de autor.
A mesma resposta serve para um autor de jingles publicitários contratado por uma agência para criar obra musical para uma campanha. A agência só poderá, sob pena de incorrer em ilicitude, utilizar a obra para a específica campanha. Não poderá, por exemplo, incluí-lo em um fonograma de jingles famosos. O fim do contrato não escrito é exclusivamente o primeiro, não o segundo ou qualquer outro.
A questão relativa a utilização do material, dados e equipamentos da empresa é irrelevante para o direito autoral. Se há obra, o direito é de quem exteriorizou o pensamento em um suporte tangível ou intangível. Alguém que é contratado como fotógrafo de carros para um site de revenda, recebe para trabalhar uma câmera fotográfica profissional e a utiliza para fazer outras fotos artísticas não compartilha o direito sobre as últimas com sua empregadora. O uso do equipamento, se ilícito ou fora do contrato, poderá ter consequências de outro ramo do direito, mas não do direito autoral.
Uma ressalva necessária. A solução que se descreveu até aqui se adéqua às situações em que não há contrato de trabalho escrito com cláusulas específicas de transferência de direito de autor. Atendendo-se à exigência de contrato escrito, qualquer direito patrimonial pode ser negociado, cedido, transferido ou licenciado. Se houver contrato com cláusula específica de cessão, a titularidade dos direitos patrimoniais pode ser transferida para o empregador.
A via de resolução de eventual conflito entre autor/empregado e empregador aqui apresentada está de acordo com a cláusula geral de boa-fé objetiva prevista no art. 422 do Código Civil. O empregado que impõe obstáculo ao uso da obra dentro da finalidade do contrato de trabalho ofende o princípio do venire contra factum proprium. O empregador que se desvia dos fins do pacto trabalhista também o viola.
O legislador brasileiro omitiu-se da disciplina da relação do autor empregado com seu empregador. Ditou regra genérica de que à pessoa física criadora pertencem todos os direitos sobre a criação intelectual. A omissão revela a clara intenção de deixar à autonomia privada, aos contratos, a disciplina dos interesses do empregador e do empregado/autor.
Na ausência do contrato escrito prevalecerá o interesse do autor/empregado. As regras de direito autoral impedem uma interpretação extensiva dos negócios que envolvem obras intelectuais protegidas. Essa regra, aliás, é compatível com o direito do trabalho que prega a aplicação da norma mais benéfica, em eventual conflito, ao empregado.
Em caso de haver contrato escrito, deverá ele conter pacto adjetivo regulamentando a cessão ou a licença de direitos de autor, prevendo as modalidades de uso específicas negociadas e a forma de remuneração independente do salário pactuado.
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1 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito autoral. 2 ed. Rio de janeiro: Renovar, 1997, p. 374.