PI Migalhas

Direito autoral e o suporte da obra intelectual

É possível proteger, pelo direito autoral, o desenho materializado em um brinquedo de plástico?

28/6/2016

Luciano Andrade Pinheiro e Carolina Diniz Panzolini

Em uma recente pesquisa no sítio do STJ sobre Direito Autoral, me deparei com o julgamento ocorrido no processo Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial número 866986, cujo acórdão foi publicado em 29/4/2016. O interessante neste caso não é a decisão do STJ, porque limitada a aspectos processuais, mas a discussão travada nas instâncias ordinárias.

O inusitado é que a autora da ação, uma empresa do ramo de brinquedos, ingressou com um pedido inibitório contra uma outra indústria do mesmo ramo que copiou o desenho de uma boneca. Isso mesmo! A parte autora, por encomenda, havia criado um design de um brinquedo infantil feminino e a ré, segundo ficou decidido, copiou a criação.

A repercussão deste caso não é o destaque, mas a discussão em si. É possível proteger, pelo direito autoral, o desenho materializado em um brinquedo de plástico? Se o direito autoral é o ramo que protege as criações intelectuais ligadas as artes e à ciência, como recepcionar por esse ramo o esforço em produzir um objeto feito para divertimento de crianças?

É importante esclarecer que a proteção do desenho dessa boneca não está inserida na seara da propriedade industrial, porque não se trata de obra utilitária, sob os requisitos da novidade ou ineditismo. A lide se estabeleceu em torno da proteção pelo Direito Autoral de um design como resultado de um esforço intelectual criativo.

Um dos mais instigantes temas da propriedade intelectual é a definição do objeto do Direito Autoral, isto é, a fixação dos requisitos para a caracterização do que chamamos de criação do espírito ou obra intelectual protegida.

Qualquer produção do intelecto humano é resguardada ou tutelada pelo Direito Autoral? A resposta negativa necessária a essa pergunta nos conduz a uma nova indagação: Se nem todo pensamento materializado é protegido pelo Direito Autoral, como identificar a proteção? Para responder a essa segunda questão é necessário desenvolver um estudo dos requisitos formadores da criação intelectual protegida pelo Direito Autoral.

Os requisitos, para desconforto dos interessados, não são estabelecidos de forma unânime pela doutrina autoralista, o que só traz incerteza na proteção e uma fixação casuística.

Ninguém discute se "Gabriela Cravo e Canela" do saudoso Jorge Amado, "Abaporu" de Tarsila do Amaral ou as fotografias de Sebastião Salgado são obras protegidas pelo Direito Autoral. O problema apresenta-se quando nos deparamos com textos, representações gráficas ou fotográficas que pela suposta simplicidade ou pela suposta falta de esforço intelectual em sua concepção não se consideram obras do espírito.

A Lei de Direito Autorais (9.610/98) traz em seu art. 7º e incisos o que a doutrina aponta como objeto do direito autoral, mas, apesar do esforço do legislador, o rol ali posto é simplesmente enumerativo, não encerrando a discussão acerca de quais obras são ou quais não são escudadas pelo direito do autor, e até se aquelas ali postas, simplesmente por estarem ali postas, são protegidas jure et de jure pelo Direito Autoral.

Nesse dispositivo há um rol exemplificativo de obras protegidas pelo Direito Autoral, quais sejam: os textos de obras literárias artísticas e científicas; as conferências alocuções, sermões e outras obras expressas pela voz; as obras dramáticas; as obras coreográficas e pantomímicas; as obras musicais, com ou sem letra; as obras audiovisuais; fotografia; desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética; ilustrações e cartas geográficas; projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência; adaptações e traduções; programas de computador; coletâneas, compilações, antologias, enciclopédias; e as bases de dados.

A Convenção de Berna também apresenta um rol não taxativo de obras intelectuais a serem protegidas pelo Direito Autoral, conforme observa-se no Artigo 2:

"ARTIGO 2 - 1) Os temas "obras literárias e artísticas", abrangem todas as produções do domínio literário, cientifico e artístico, qualquer que seja o modo ou a forma de expressão, tais como os livros, brochuras e outros escritos; as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza; as obras dramáticas ou dramático-musicais; as obras coreográficas e as pantomimas; as composições musicais, com ou sem palavras; as obras cinematográficas e as expressas por processo análogo ao da cinematografia; as obras de desenho, de pintura, de arquitetura, de escultura, de gravura e de litografia; as obras fotográficas e as expressas por processo análogo ao da fotografia; as obras de arte aplicada; as ilustrações e os mapas geográficos; os projetos, esboços e obras plásticas relativos à geografia, à topografia, á arquitetura ou às ciências."

Como dito, o rol é apenas exemplificativo, escolhendo o legislador, no caput do art. 7o da lei 9.610/98, a expressão "tais como", demonstrando, a toda evidência, que outras obras serão protegidas, ainda que não constem do rol.

A autoralista Eliane Y. Abrão aponta que o rol posto no dispositivo mencionado é a primeira exigência para definir o objeto do direito de autor. Entendo a posição, mas não concordo com sua eleição como requisito. Com efeito, sem a conjugação de originalidade e criatividade, as criações nos incisos do art. 7o não guardam proteção do direito do autor, tornando o rol um excesso de zelo do legislador. Em outras palavras, não se chamará criação do espírito qualquer e toda fotografia, desenho e texto<_w3a_sdt id="-207263352" citation="t"> (Abrão, 2002).

A opção do legislador brasileiro por enumerar as obras seguiu uma orientação do art.1 da Convenção de Berna, aprovada no Brasil pelo Decreto 75.669/75, mas não tem como consequência necessária à proteção do direito de autor sobre aquelas obras. Não há correlação entre o rol e a proteção. Todos os incisos do art. 7o contêm obras que podem vir a ser protegidas se conjugados os requisitos de criatividade e originalidade. Sem eles, entretanto, não haverá proteção, nem ao menos poderá se falar em criação.

Sobre o mesmo tema, Delia Lipszyc afirma, em tradução livre, que:

"A proteção das obras está sujeita a os seguintes critérios gerais: - o direito de autor protege as criações formais e não as ideias; a originalidade (ou individualidade) é condição necessária para a proteção; a proteção não depende do valor ou mérito da obra, de seu destino ou de sua forma de expressão; a proteção não está sujeita ao cumprimento de formalidade".<_w3a_sdt id="133697284" citation="t"> (Lipszyc, 2001)

Note-se que uma das observações feitas por Delia Lipszyc é que para uma obra ser protegida é irrelevante a sua forma de expressão. Isto é, não importa como o fruto do pensamento se materializa, se numa folha de papel, se numa tela, se em um papel fotográfico, ou, pertinente ao caso que chegou ao STJ mencionado acima, em um brinquedo infantil. O que importa, de verdade, é que esse objeto que saiu do pensamento e se materializou tenha originalidade e criatividade.

A Lei 9610/98 é clara no sentido de que as obras intelectuais a serem protegidas serão aquelas criações do espírito, expressas em qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro. No caso concreto, é importante destacar que se a empresa ainda estivesse no plano das ideias e não tivesse procedido à fixação daquela manifestação, a discussão sobre a proteção ou não desse conceito não existiria, porque faz-se necessária a fixação em um suporte.

E esse suporte pode ser de qualquer natureza, inclusive por um que ainda não tenha sido inventado. Essa observação é importante, considerando a dinâmica da evolução das ciências humanas e tecnológicas e os novos modelos de negócio surgidos. Nada disso desnatura o Direito Autoral, em verdade, o conceito de proteção de obra intelectual em linhas gerais é o mesmo desde 1886, quando da primeira edição da Convenção de Berna.

Nesse sentido, o fundamental a se analisar é se há um mínimo de criatividade e originalidade na obra que se apresenta. Porque se for apenas a transcrição ou a justaposição de informações ou de atributos não estamos diante de uma obra intelectual, passível de proteção do Direito Autoral.

Esclareça-se, ainda, que o registro, para fins de proteção de obra intelectual, não é necessário. A Convenção de Berna já trazia a previsão de sua desnecessidade e a lei 9610/98 também reforça esse entendimento. Não obstante, embora o registro seja eminentemente declaratório (e, portanto, não constitutivo), é aconselhável fazê-lo, uma vez que pode servir de instrumento de prova acerca da temporalidade da produção daquela obra e reforço para argumentação da autoria.

Outro aspecto que merece destaque é que a obra, para ser protegida, independe do seu destino e da qualidade do seu conteúdo. Nesse sentido, ao conferir a prerrogativa da proteção da obra do direito autoral a uma obra intelectual não se está chancelando a qualidade daquela manifestação, mas única e somente, reconhecendo a criatividade e a originalidade aposta naquela criação, o que a qualifica para a devida proteção.

Ainda sobre o caso da boneca, vale notar o que foi verificado na perícia em trecho que consta do acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo:

"(...) o laudo pericial de fls. 202/379 identificou semelhanças entre as bonecas das partes, afirmando o expert do juízo que 'as comparações entre as bonecas analisadas permitem concluir que EXISTEM INDÍCIOS DE APODERAMENTO/CONTRAFAÇÃO: das feições da boneca 'Pequeno Amor' da Autora pela Ré, na boneca 'Luck Mommy'; dos membros (superiores e inferiores) e tronco da boneca 'Neném (Baby) Lú' da Autora pela Ré na boneca 'Luck Mommy';' (fls. 284/285).

16. Também concluiu o perito que 'Assim, na opinião da perícia, ressalvando-se todo o conteúdo deste capítulo III. 5., um observador que desejasse adquirir uma boneca da coleção da Autora poderia, por engano, adquirir uma da Requerida, em vista da semelhança das feições entre as mesmas e devido ao fato destes produtos estarem voltados ao mesmo público consumidor.' (fls. 283).

17. Portanto, resta nítido que os produtos das partes são similares e que a comercialização da boneca 'Luck Mommy' pela ré configura violação dos direitos autorais da autora e concorrência desleal em face das bonecas 'Pequeno Amor' e 'Neném Lú'."

Da análise do laudo pericial, ao que parece, não estava controvertido nos autos o esforço intelectual na concepção do desenho da boneca. Vale dizer, que as partes concordaram que havia gênio criativo e original na peça da parte autora e que a ré apenas refutou a existência de cópia ou contrafação.

Em conclusão, podemos afirmar que é viável a proteção pelo Direito Autoral de qualquer expressão do pensamento materializada em um suporte tangível ou intangível, desde que o fruto do gênio humano seja exteriorizado com originalidade e criatividade. Não há necessidade de registro para a proteção e ela independe do destino da obra ou de seu mérito.

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Coautoria :

Carolina Diniz Panzolini é advogada e mestranda em Direito Autoral pela Universidade de Londres.

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Colunista

Luciano Andrade Pinheiro é advogado. Graduado pela Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Autoral. Autor de artigos jurídicos. Palestrante. Perito judicial em propriedade intelectual. Foi assessor de técnica legislativa na Câmara dos Deputados, diretor adjunto da Escola Superior da Advocacia da OAB/DF e vice-presidente da Caixa de Assistência dos Advogados do Brasil/DF.