Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio
Malgrado as semelhanças advindas abstratamente dos ius utendi, ius fruendi e ius abutendi conferidos aos titulares, as diferenças entre os objetos dos dois tipos de propriedade1 produzem realidades bastante distintas tanto no plano deontológico (entre outros, regimes de aquisição da propriedade e os limites à propriedade) quanto no plano fenomênico, interessando-nos, aqui, especialmente este último.
A fim de explorarmos a superfície dessa questão, analisemos inicialmente o fato de a criação intelectual corriqueiramente guardar uma íntima relação com o seu criador, diferentemente do que ocorre comumente com o bem puramente material.
Imaginemos uma quinta de terra que tenha sido irrigada, arada e plantada por um agricultor, produzindo uma colheita de trigo. Ao ser introduzido no mercado, não se poderá posteriormente identificar em uma saca de grãos de trigo por quais mãos esses grãos vieram a existir. O grão de trigo, objeto da propriedade móvel tradicional, não carrega em si a marca indelével de seu originador, e é inquestionavelmente bem fungível, intercambiavel por qualquer semelhante.
No outro extremo desse raciocínio, imagine-se um quadro de Toulouse-Lautrec, retratando as famosas dançarinas do Moulin Rouge, ou um Picasso de sua fase azul. Em praticamente qualquer contexto, essas obras poderiam ser identificadas como de autoria desses famosos pintores, o que revela a existência de um liame entre criador e criação que sobrevive à separação física entre ambos.
Nos dois casos, ambos os originadores dos bens lhes apuseram seu contributo laboral2, sendo que no primeiro exemplo sobressai o caráter material e físico desse contributo (trabalho braçal), enquanto no segundo caso ressalta-se o contributo intelectual para o produto final. Neste, entretanto, o resultado fenomênico é um bem que, embora materialmente possa pertencer a pessoa distinta de seu criador, guarda com este um vívido liame (tido como criatividade ou originalidade) que os vincula de maneira virtualmente perene.
Esse diferencial fenomênico é resultado de um dissídio ontológico entre uma e outra classe de bens que poderia, ao nosso ver, justificar a inaplicabilidade de determinadas teorias da propriedade tradicional aos bens intelectuais.
Em seu Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, John Locke apresenta a teoria de justificação da propriedade em função do trabalho do homem sobre os bens da natureza.
"Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através de seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade"3.
Ainda:
"Sobre as terras comuns que assim permanecem por convenção, vemos que o fato gerador do direito de propriedade, sem o qual essas terras não servem para nada, é o ato de tomar uma parte qualquer dos bens e retirá-la do estado em que a natureza a deixou"4.
Dois conceitos se extraem da teoria de John Locke: (i) o fato gerador do direito de propriedade é a aposição de um contributo laboral a um bem disponível na natureza, e (ii) esse raciocínio se aplica em uma situação de abundância de bens livres in natura, sendo que o caso da propriedade em uma realidade de bens escassos repousaria em um fundamento convencional, e não puramente natural.
Se não se questiona o caráter laboral da atividade intelectual (e, de fato, não o questionamos), a validade dessa teoria para o surgimento de um direito de propriedade em relação a um bem imaterial qualquer dependeria, em primeiro lugar, de identificarmos se a matéria-prima sobre a qual o criador intelectual acrescenta seu trabalho é efetivamente um bem livremente disponível na natureza ou se o ponto de partida da criação intelectual poderá ser um objeto cultural, que por sua vez terá sido produto não da natureza, mas da elaboração de outro homem. Em segundo lugar, temos de analisar o requisito da abundância em cuja ausência a atribuição dos direitos dominiais teria de repousar, forçosamente, em um fundamento convencional.
Vejamos o que afirma David Hume sobre o pensamento e o poder criativo da mente:
"Mas, ainda que nosso pensamento pareça ter essa liberdade ilimitada, ao fazermos um exame muito mais detalhado nos damos conta de que, em realidade, nosso pensamento está reduzido a limites muito estreitos, e que todo esse poder criativo da mente não vem a ser mais que a faculdade de mesclar, transpor, aumentar os materiais que nos são fornecidos pelos sentidos e pela experiência"5. (tradução nossa)
Se concordamos com Hume, concedemos que a matéria-prima da criação intelectual são os materiais que nos são fornecidos pelos sentidos e pela experiência, mas sabemos que esses materiais ora são, de fato, objetos no estado em que a natureza os colocou, ora são objetos que já sofreram elaboração intelectual por outro indivíduo. A célebre frase atribuída a Isaac Newton, em sua carta a Robert Hooke, aforiza este conceito: "If I have seen farther, it is by standing on the shoulders of giants"6.
Essa primeira constatação, portanto, resulta em conformação apenas parcial ao primeiro conceito extraído da teoria de John Locke, na medida em que nem todos os bens apropriados originariamente por meio de direitos de propriedade intelectual são resultado de aposição de trabalho a objetos no estado em que a natureza os colocou, havendo enorme parcela (a maioria, arriscamo-nos a dizer) que deriva de reelaborações sobre objetos que não existem senão em razão do trabalho de outro homem.
Em segundo lugar, temos o requisito da abundância7, já que o mecanismo descrito por John Locke se operaria "quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade"8.
Os bens intelectuais, como já exploramos anteriormente, preservam uma espécie de liame com seu criador, especialmente os bens que são objeto de apropriação por meio de um dos tipos de propriedade intelectual, o direito autoral. Já para os inventos que são objeto de patenteamento, é requisito das convenções internacionais que regem a matéria e da lei brasileira, entre outros, a novidade, definida como não-pertencimento ao estado da técnica9. Em outras palavras, o invento, para ser apropriado, não pode existir em qualquer parte do mundo10, e, uma vez patenteado, só pode ser empregado com autorização do titular da patente.
Sob um certo prisma, portanto, poderíamos dizer que um bem apropriado por meio de uma das espécies de propriedade intelectual carrega uma determinada infungibilidade, e o conceito de infungibilidade é incompatível com a idéia de abundância. Com efeito, patenteada uma invenção, criada uma obra, esta, especificamente, deixa de estar disponível durante o tempo de exclusividade concedido pela lei, e essa exclusividade é o fundamento econômico de valor desses bens intelectuais.
Assim, o segundo requisito apresentado pela teoria de John Locke não encontra aplicabilidade imediata (embora talvez a encontre de maneira diferida no tempo, já que a expiração da exclusiva insere a criação no domínio público) para o caso dos direitos de propriedade intelectual sobre as criações humanas, incompatibilidade esta que deriva, como dito anteriormente, das diferenças ontológicas entre os bens apropriados em um e em outro tipo de propriedade.
__________
2Requisito e fundamento de concessão de direitos de propriedade.
3LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos. São Paulo: Editora Vozes, 1999. p.98-99
4Idem, ibidem.
5HUME, David. Investigación Sobre el Conocimiento Humano. Madri: Mestas Ediciones, 2003. p.33
6KOYRÉ, Alexandre. An Unpublished Letter of Robert Hooke to Isaac Newton. Isis, Chicago, v.43, n. 4, p. 312-337, Dez. 1952. Disponível em: <_https3a_ lc.zju.edu.cn="" sts="" _lunwen25_5cupfiles25_5c8f1731f1-278a-4a7d-b3c4-6b037593cef5.pdf="">. Acesso em 03 Mai 2014.
7José Reinaldo de Lima Lopes nos lembra que "[...] a famosa condição para a propriedade natural (a propriedade natural só pode ser legitimada numa situação de abundância, toda outra propriedade sendo convencional) raramente é lembrada". LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: Lições Introdutórias. 1ª. Ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.
8LOCKE, John. op. cit.
9Artigo 11 da Lei 9.279/96. A invenção e o modelo de utilizade são considerados novos quando não compreendidos no estado da técnica.
10Abrimos mão do detalhamento do conceito de novidade em benefício da clareza na explanação do raciocínio.