PI Migalhas

Duas palavras sobre autoria da obra audiovisual

Uma discussão sobre autoria de obra audiovisual.

17/11/2014

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio

Conta-nos o professor André Bertrand que, em 10 de fevereiro de 1905, o Tribunal Civil de la Seine1 decidiu pela primeira vez um caso relacionado à autoria de uma obra audiovisual2. Um famoso cirurgião francês da época, Dr. Eugène-Louis Doyen, contratara um antigo operador de câmeras dos irmãos Lumière, Clément-Maurice Parnaland, para filmar uma de suas cirurgias, em que separaria duas irmãs siamesas. Descobriu o médico que Parnaland, depois de feito o trabalho, reproduzira-o em diversas cópias vendidas a cinemas no estrangeiro. A decisão do tribunal determinava que o autor do filme era, na verdade, o médico, que assumira na contratação um papel de produtor, e não Parnaland, responsável pela filmagem.

Se nos parece um tanto impróprio que a autoria tenha sido atribuída a quem não fez senão idealizar um filme e arcar com os custos da filmagem, a verdade é que esse singelo caso representa, de maneira condensada e já na origem, um dos problemas que a invenção do cinema desencadearia na conformação de um conjunto de regras de direito autoral que pudesse equilibrar os interesses em um nascente ramo artístico que, em sua natureza, era bastante diferente daqueles que lhe antecederam, na medida em que convergem na obra cinematográfica de maneira muito intensa os aspectos artístico, técnico, e de empreendimento empresarial.

Antonio Chaves, em seu Cinema, TV, Publicidade Cinematográfica, lembra-nos que "a obra cinematográfica é certamente uma obra de arte, e, como tal, uma criação intelectual. Mas, diferentemente das demais obras artísticas, não é somente o produto da atividade criadora de um ou mais artistas: é, ao mesmo tempo, uma obra técnica e um produto industrial"3.

Com efeito, o envolvimento de uma plêiade de indivíduos cujas contribuições servem de matéria-prima para a criação da obra audiovisual é uma das mais marcantes particularidades desse segmento criativo. Atividades que gozam de indiscutível autonomia artística, como a música, a literatura e a fotografia amalgamam-se na elaboração da obra audiovisual final que, embora não prescinda dessas contribuições, com elas não se confunde, seja ontologicamente, seja mesmo pela diversidade de gênero. Sistemas há, como o brasileiro e o francês, fundados na concepção de droit d'auteur, que alocam a titularidade originária de direitos aos que diretamente concorreram na criação do produto artístico final, como o diretor do filme, desde que não se trate de obra coletiva4, situação em que a titularidade originária é concedida ao organizador5.

Igualmente complexante é a dificuldade técnica de transmutar-se a ideia bruta da obra em registro passível de apreciação pelos seus destinatários. Se é verdade que há outras artes em que a fixação da criação exige um domínio técnico, como se verifica na escultura ou na pintura, também é verdade que nestas artes o conjunto de capacidades técnicas e artísticas normalmente se concentra na pessoa do criador, enquanto no cinema, ou no audiovisual em geral, muitas vezes a contribuição de extensa equipe técnica é indispensável.

Oferece, ainda, complexidades, a característica de verdadeiro empreendimento empresarial que possui, em maior ou menor monta, a obra audiovisual, o que leva determinados sistemas de proteção, especialmente o sistema de copyright, a atribuir ao produtor da obra audiovisual a titularidade originária dos direitos autorais. Na lei estadounidense, por exemplo, as diversas contribuições artísticas que compoem a obra audiovisual são consideradas work for hire, obra sob encomenda, com titularidade e autoria concedidas ex lege ao contratante6.

A existência desses sistemas distintos de atribuição de titularidade originária dos direitos patrimoniais expõe de maneira ilustrativa a heterogeneidade de fundamentos entre o sistema de droit d'auteur e o sistema de copyright. A tentativa de harmonizá-los aconteceu com algum vagar na conferência diplomática que deu origem à revisão de Estocolmo da Convenção de Berna, em 1967. Como produto das discussões ali desenvolvidas, à convenção adicionaram-se os seguintes termos, mantidos posteriormente na revisão de Paris, em 1971, e portanto em vigor no Brasil por obra do decreto 75.699 de 6 de maio de 1975:

"ARTIGO 14 bis

2) a) A determinação dos titulares do direito de autor sobre a obra cinematográfica7 é reservada à legislação do país em que a proteção é reclamada.

b) Entretanto, nos países da União nos quais a legislação reconhece entre estes titulares os autores das contribuições prestadas à realização da obra cinematográfica, estes últimos, se se comprometeram a prestar tais contribuições, não poderão, salvo estipulação contrária ou particular, se opor à reprodução, à distribuição, à representação e à execução públicas, à transmissão por fio ao público, à radiodifusão, à comunicação ao publico, à colocação de legendas e à dublagem dos textos, da obra cinematográfica.

3) A menos que a legislação nacional decida de outra maneira, as disposições do parágrafo 2) b) acima não são aplicáveis nem aos autores dos diálogos e das obras musicais, criados para a realização da obra cinematográfica, nem ao realizador principal da mesma. Entretanto, os países da União cuja legislação não contenha disposições prevendo a aplicação do parágrafo 2) b) precitado ao referido realizador deverão notificá-lo ao Diretor-Geral mediante uma declaração escrita que será imediatametne comunicada por este último a todos os outros países da União8.

A solução atingida em Estocolmo para a obra cinematpográfica representou uma acomodação de interesses. Deixa a atribuição da titularidade dos direitos de autor da obra cinematográfica ao alvitre dos estados unionistas, mas cria uma presunção de legitimação do produtor (contratante das contribuições individuais) para utilizar essas contribuições, ressalvadas estipulações em contrário. É um influxo, ainda que modesto, do sistema de copyright para dentro do sistema de droit d'auteur.

Vejamos dois dispositivos da nossa LDA para entendermos se esse sistema de atribuições funciona no país (que regulamentou o gênero, obra audiovisual):

Art. 16. São co-autores da obra audiovisual o autor do assunto ou argumento literário, musical ou lítero-musical e o diretor.

Art. 81. A autorização do autor e do intérprete de obra literária, artística ou científica para produção audiovisual implica, salvo disposição em contrário, consentimento para sua utilização econômica.

Se o autor do argumento é autor de uma obra literária, e tanto o diretor quanto o autor do argumento musical ou litero-musical são autores de obra artística, então uma interpretação possível é a de que o artigo 81 cumpre a regra do artigo 14bis (3) da Convenção de Berna, estendendo-a para todas as obras audioviduais, impedindo aos co-autores da obra audiovisual que se oponham ao produtor quanto à utilização econômica da obra.

Em uma realidade em que a maioria das produções audiovisuais ocorre ou em um sistema de contratação que prevê cessão de direitos patrimoniais ou em uma sistemática de obra coletiva, o raciocínio de recepção do regramento de Berna é dispensável, uma vez que a titularidade estaria já com o organizador da obra ou com o contratante.

__________

1T. civ. Seine, 10 févr. 1905, Doyen c/ Parnaland, DP 1905, J.389, apud BERTRAND, André R. Droit D'auteur. Paris: Dalloz, 2010, p.787.

2O termo "obra audiovisual" não era utilizado, por óbvio, naquela época, que assistia ao desenrolar dos primeiros anos da arte cinematográfica. Há uma evolução terminológica que culmina na adoção do termo "audiovisual" como gênero. "Antes discorríamos sobre o cinema, agora falamos genericamente do audiovisual, perante um collage de produtos e canais de difusão". DROGUETT, Juan. Griffando o sabor do Celulóide, in Juan DROGUETT e Flávio F. A. ANDRADE (orgs.), O feitiço do cinema. Ensaios de griffe sobre a sétima arte. São Paulo: Saraiva, 2009, p.23. Há críticas, como a do próprio BERTRAND, a respeito do tratamento uniforme concedido a obras tão variadas e diversas como a obra cinematográfica e outras espécies de obra audiovisual, como a com fins unicamente televisivos ou comerciais.

3CHAVES, Antonio. Cinema, TV, Publicidade Cinematográfica. São Paulo: Leud, 1987. p.12.

4Entendemos que a obra audiovisual nem sempre é obra coletiva, muito embora a praxis empresarial deste segmento funcione tipicamente sob um regime de obra coletiva

5Importa não se confunda autoria com titularidade originária de direitos. Assim, por exemplo, no Brasil, um filme realizado sob um regime de obra coletiva terá como autores o diretor, o autor do argumento e o autor da trilha sonora (por força do artigo 16 de nossa LDA), mas a titularidade originária dos direitos patrimoniais quedará com o organizador da obra. No sistema do copyright estadounidense, conforme já expusemos, a lei atribui a autoria mesma ao encomendante, e não meramente a titularidade de direitos patrimoniais, solução que, ao menos filosoficamente, parece-nos esdrúxula, uma vez que entendemos a autoria como relação de fato, de ordem causal, entre o criador e sua obra. Certamente a confusão entre autor e titular originário no sistema de copyright não ofereceu dificuldades práticas, considerando a histórica postura refratária desse sistema ao reconhecimento de direitos morais de autor.

6§101: "A "work made for hire" is (2) a work specially ordered or commissioned for use as a contribution to a collective work, as a part of a motion picture or other audiovisual work, as a translation, as a supplementary work…"; §201: (b) Works Made for Hire.—In the case of a work made for hire, the employer or other person for whom the work was prepared is considered the author for purposes of this title, and, unless the parties have expressly agreed otherwise in a written instrument signed by them, owns all of the rights comprised in the copyright.

7A interpretação deste artigo, em tese, se aplica exclusivamente à obra cinematográfica, e não às demais do gênero audiovisual.

8A tradução, lamentavelmente, é ruim. Sanamos os erros de ortografia constantes do decreto, mas, mesmo assim, a escolha dos termos poderia ter sido mais esclarecedora ("realizador principal", por exemplo, quando a melhor tradução seria, certamente, "diretor principal"). O termo "realizador" é importado do francês realizateur, mas é fato que na linguagem corrente nos referimos ao Diretor do filme, e não ao realizador.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Luciano Andrade Pinheiro é advogado. Graduado pela Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Autoral. Autor de artigos jurídicos. Palestrante. Perito judicial em propriedade intelectual. Foi assessor de técnica legislativa na Câmara dos Deputados, diretor adjunto da Escola Superior da Advocacia da OAB/DF e vice-presidente da Caixa de Assistência dos Advogados do Brasil/DF.