Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio
A sonhar um pouco nesta impassível segunda-feira, deixemo-nos imaginar brevemente o real potencial da digitalização de conteúdos e das tecnologias de rede quando aplicadas em conjunto a todo o acervo de conhecimento humano já produzido e que se encontre, hoje, em qualquer biblioteca do globo. Imagine: qualquer criação, de qualquer parte, acessível de maneira quase imediata por meio de preciosos mecanismos de busca que só na última década se aperfeiçoaram à utilidade, como a indexação de termos1 e a busca de imagens.
Imagine também que todo esse conteúdo estivesse disponível não para compra, mas para consulta online. À semelhança do que ocorre quando visitamos uma biblioteca, todo o acervo digitalizado dessa Meca do conhecimento estaria disponível para consulta à distância, e até mesmo para que permanecêssemos com a obra emprestada em nossos dispositivos até que o prazo de devolução se cumprisse.
Para termos uma vaga ideia do que isso representaria, tomemos como exemplo aquela que é considerada a maior biblioteca do mundo, a Library of Congress2. Lá hospedam-se cerca de 160 milhões de exemplares, entre os quais mais de 36 milhões de livros e impressos. Sua seção jurídica abriga quase três milhões de obras, colecionadas desde 1832 nesta que é considerada também a maior biblioteca jurídica do mundo. Sendo esta somente uma das centenas de grandes bibliotecas do mundo, vislumbre a grandiosidade que seria termos todas reunidas, transformadas em bits e bytes pesquisáveis.
Pesquise o termo "statute of limitations" e todas as obras desse mundo de livros que contenham esse termo seriam listadas, lista esta que conteria também o número da página, em cada obra, em que o termo pesquisado aparece, bem como o número de vezes que o termo se repete. Organize, depois disso, a lista de resultados por data de publicação, biblioteca de origem, idioma, país, tipo de publicação. Mais um par de cliques e filtros, e as obras que você selecionou estão diponíveis integralmente para consulta, ou para retirada online.
Percebam que, por mais que a internet e a disseminação de dispositivos já nos tenham presenteado com um salto quântico de acesso ao conhecimento em um grau verdadeiramente impensável há trinta anos, a ideia de termos o que se poderia chamar de uma biblioteca digital digna dos nossos tempos é ainda um devaneio, uma quimera, não somente pela magnitude do trabalho e pelos desafios técnicos, mas também pelas barreiras regulatórias e jurídicas envolvidas em um projeto desse gênero. Há, sim, sementes, ainda muito distantes dessa visão globalizante, mas que deram o primeiro passo nessa direção, como a Google Library3 e o Hathi Trust Digital Library (HDL)4.
Uma das questões fundamentais a serem resolvidas para que uma ideia como esta seja efetivamente viabilizada é a dos direitos autorais, embora mais sob a perspectiva de seus fundamentos econômicos que sob a sua lógica interna, puramente jurídica. Essa questão, diga-se, sob o mesmo enfoque, é a que reiteradamente surge sempre que nos debruçamos sobre as mudanças a que a internet e a digitalização submeteram praticamente todos os modelos de negócio do segmento de conteúdo.
Na venda de bens, a questão poderia ser vista como um falso paradoxo: um livro digitalizado é virtualmente imperecível, e pode ser distribuído e reproduzido a custos que, quando não tendem a zero, são muito inferiores ao da distribuição de exemplares em papel. Ceteris paribus, o modelo digital deveria, portanto, representar um ganho. Apesar disso, essa virtual imperecibilidade do corpus que materializa a criação e justamente os baixíssimos custos de distribuição e de reprodução potencializam a violação, transformando-a em um fenômeno que compete com a comercialização legítima das obras5. Em outras palavras, o digital, ao mesmo tempo em que gera benefícios, gera prejuízos, e promove uma mudança no equilíbrio de forças, já que aniquila limites do mundo físico que antes contribuíam para a manutenção do sistema de compensações6.
Para o caso da nossa imaginária biblioteca, a consulta online de toda e qualquer obra do acervo por usuários de qualquer parte do globo, com possibilidade de retirada (empréstimo), mesmo que por prazo limitado, é um ideal de eficiência e disseminação de conhecimento, mas, no sistema de direitos autorais que temos hoje, certamente exterminaria o equilíbrio entre acesso e compensação. Os limites que existem para consulta e empréstimo do exemplar em papel nas bibliotecas do mundo offline – a necessidade de locomoção, o número limitado de exemplares, a inviabilidade prática de deslocamento para grandes distâncias – seriam, todos, como no exemplo da venda, aniquilados pelo digital sem limites. O resultado prático dessa mudança seria, uma vez mais, a criação de uma realidade que compete seriamente com a do mercado regular de obras, podendo prejudicá-lo a ponto de inviabilizá-lo.
Desistiremos, então, de perseguir a viabilização extensa das admiráveis tecnologias que investimos anos de ciência para construir? Renunciaremos ao mandato de promover a disseminação do conhecimento? Certamente que não será esse o resultado final da constatação das dificuldades. Apesar de todas as mazelas, sabemos, usuários e titulares, que a ampliação do acesso é um objetivo a ser perseguido. O desafio, sempre maior com a passagem do tempo e a disseminação dos meios tecnológicos, é promovermos uma solução jurídica e econômica que não se volte contra sua própria razão de existir.
Se é verdade que ainda não há projetos dessa magnitude em curso e que estatutos e modelos comerciais de hoje não dão conta da idéia vislumbrada, o tema da modelagem do direito autoral ao desejo de ampliação do acesso digital via bibliotecas está claramente na pauta do dia.
Do ponto de vista legislativo, há, fora do país, exceções ou limites aplicáveis especificamente para bibliotecas cujo acervo esteja disponível para o público em geral, e não apenas para pesquisadores cadastrados ou membros de uma determinada entidade privada, como é o caso do §108 do estatuto estadounidense7 e do artigo 5(2)(c) da Diretiva 2001/29/EC da União Europeia8.
O Brasil segue sem nenhum dispositivo legal voltado a essas entidades, embora o anteprojeto submetido a consulta pública em 2010 contivesse dois dispositivos relacionados ao tema que seguem as linhas mestras do regramento europeu:
"Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais a utilização de obras protegidas, dispensando-se, inclusive, a prévia e expressa autorização do titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza, nos seguintes casos:
XIII - a reprodução necessária à conservação, preservação e arquivamento de qualquer obra, sem finalidade comercial, desde que realizada por bibliotecas, arquivos, centros de documentação, museus, cinematecas e demais instituições museológicas, na medida justificada para atender aos seus fins;
XVI - a comunicação e a colocação à disposição do público de obras intelectuais protegidas que integrem as coleções ou acervos de bibliotecas, arquivos, centros de documentação, museus, cinematecas e demais instituições museológicas, para fins de pesquisa, investigação ou estudo, por qualquer meio ou processo, no interior de suas instalações ou por meio de suas redes fechadas de informática;"9
O tema é também objeto dos trabalhos do Comitê Permanente de Direitos de Autor e Direitos Conexos da OMPI, com vistas à elaboração de um instrumento jurídico internacional sobre exceções e limitações aplicáveis a bibliotecas e acervos. Ainda sem um volumoso progresso, o esse Comitê se reunirá novamente no próximo mês e deve voltar a debater a questão.
No campo jurisprudencial, além da famosa decisão de primeira instância em favor do Google Books nos EUA, duas recentes novidades mantêm o tema na pauta do dia: a decisão do caso Authors Guild, Inc. v. Hathi Trust, nos EUA, e a publicação do parecer do Advogado-Geral Niilo Jääskinen ao Tribunal de Justiça da União Européia.
No caso estadounidense10, diversas associações nacionais e estrangeiras que representam titulares de direitos, incluindo a Author's Guild11, ajuizaram ação contra diversas universidades e o Hathi Trust, entidade desenvolvedora e implementadora do sistema Hathi Digital Library (HDL), que conta com suporte de infraestrutura da empresa Google.
O HDL, com base na digitalização integral de obras, permite que (i) o usuário de uma das bibliotecas participantes faça buscas que resultam em uma lista das obras que contêm aquele termo, além de identificar o número de vezes que o termo buscado ocorre, em em quais páginas, sem entretanto exibir partes da obra; (ii) o usuário que seja comprovadamente portador de uma deficiância que o impede de acessar a obra, seja motora, seja visual, consiga imprimir a obra em um formato que lhe seja adequado, como braile; (iii) bibliotecas participantes do sistema forneçam umas às outras, para reprodução, exemplares de obras que a biblioteca solicitante tenha, por algum motivo, perdido.
O juiz da causa, em favor do Hathi Trust Fund, aplicando a doutrina do fair use, entendeu inteiramente legítima a operação.
No caso alemão, objeto de consulta feita pelo Bundesgerichtshof ao Tribunal de Justiça da União Europeia12, a editora Eugen Ulmer KG ajuzou ação contra a Technische Universität Darmstadt diante da recusa da universidade à proposta de contrato regulando o manejo digital de obras de titularidade da editora em seu acervo.
A opinião do Advogado-Geral submetida à apreciação do tribunal, que deve, em breve, prolatar seu entendimento, também favorece as universidades, entendendo pela possibilidade de os estados-membros concederem às bibliotecas e assemelhados o direito de digitalizar as obras de seu acervo para colocá-las à disposição do público nos terminais dedicados a essa finalidade dentro das bibliotecas, embora tenha sedimentado a interpretação de que a impressão ou cópia dessas obras em dispositivo USB não são permitidas.
Progressivamente, portanto, parece configurar-se um cenário que prestigia a liberdade de manejo e o acesso, em bibliotecas, de obras protegidas por direitos autorais, enquanto pretere, nesses casos, a pretensão exclusivista do titular. Preservam-se certos limites, como no caso europeu, e o acesso extra-muros ao conteúdo digital das bibliotecas ainda não cabe nas exceções que temos à mão. Esse novo passo, talvez, dependa de um outro modelo de remuneração, ainda não pensado adequadamente.
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2Biblioteca do Congresso Estadounidense.
4HDL.
5Analisamos o problema da exaustão de direitos autorais em exemplares digitais no artigo Quero Vender Meus Bits and Bytes, de setembro de 2013.
6Há inúmeras críticas aos modelos tradicionais de negócio dos produtos culturais que, procedentes ou não, não invalidam a análise.
7Limitations on exclusive rights: Reproduction by Libraries and archives.
11A Author's Guild acabou sendo excluída da lide por falta de legitimidade ativa. A decisão é interessante inclusive por essa questão. Com base na lei americana, o juiz entendeu que a Author's Guild não podia representar suas associadas diretamente em juízo, mas aceitou a litigância das associações estrangeiras com base no fato de que, em seus respectivos países de origem, as leis locais concedem às associações essa legitimação extraordinária.