Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio
É comum que a progressão legislativa faça uso de categorias já existentes para acolher novas realidades do mundo fático, e a evolução do conceito de execução pública é um exemplo desse modus de evolução do direito posto.
Nos Estados Unidos, a revisão do antigo estatuto de 19091 que gerou a lei hoje vigente2 teve que lidar, na década de 1970, com um novo ramo de exploração comercial, a tv a cabo, que surgira no país a reboque das ineficiências técnicas das emissoras de televisão.
Como havia porções territoriais que os sinais das emissoras de televisão não conseguiam alcançar com boa qualidade, logo começou a surgir3 a oferta de um serviço de instalação comercial de uma antena, com maior capacidade de recepção, cujo sinal seria então redistribuído via cabo às casas que o desejassem. O serviço foi denominado CATV (community antenna television)4, e é o embrião histórico do atual pujante mercado de cabo.
Titulares de direitos sobre obras audiovisuais que as haviam licenciado apenas para as emissoras de televisão não aceitaram o fato de que uma retransmissão das obras via cabo se fazia comercialmente, por terceiros, e sem uma nova licença, e esse conflito resultou em duas demandas julgadas pela suprema corte daquele país5 que, sem sucesso, tentaram enquadrar a retransmissão a cabo no conceito de execução pública da lei de 1909.
Naquele ponto da história, a atividade das emissoras de televisão nos Estado Unidos já havia sido jurisprudencialmente classificada como execução pública6, segundo uma ficção que as comparava a exibidores de cinema, e seus telespectador à audiência das salas. Mas a Suprema Corte, ao julgar as tentativas de também inserir-se a atividade de retransmissão das CATV como execução pública, entendeu que elas não faziam mais do que estender a audiência, desempenhando um papel passivo de mera retransmissão do sinal, incompatível com a comissividade emanente do conceito de execução pública7.
A palavra final da Suprema Corte deixou aos titulares de direito a única opção de promoverem um encampamento legislativo da atividade das CATV, e assim se fez. Alargou-se, como resultado, a abrangência do conceito de public performance no Copyright Act de 1976 para artificialmente incluir a atividade de transmissão ao público. A cláusula resultante dessa empreitada legislativa, chamada de Transmit Clause, tem hoje a seguinte redação (17 U.S.C. § 101):
Executar ou exibir uma obra "publicamente" significa:
(1) executá-la ou exibi-la em um local aberto ao público ou em qualquer local em que esteja reunido um número substancial de pessoas fora do círculo normal de uma família e seus conhecidos; ou
(2) transmitir ou de qualquer forma comunicar a execução ou exibição da obra para locais especificados na cláusula (1) ou para o público, por meio de qualquer dispositivo ou processo, não importando se os membros do público capazes de receber a execução ou a exibição a recebem no mesmo local ou em locais separados, ao mesmo tempo ou em momentos diferentes"
Quase meio século depois das decisões que isentaram as CATV da necessidade de obterem licenciamento para exercer suas atividades, a Suprema Corte estadounidense se pronunciará em junho próximo sobre o caso ABC Inc v. Aereo, em que está em disputa justamente a abrangência da Transmit Clause e do conceito de execução pública na lei americana. O caso, como veremos é uma reedição daquele conflito adaptada para o cabo que mais importa para os nossos tempos: o da internet.
O que é e como funciona o serviço Aereo8
O sistema lançado pela Aereo permite que seus usuários "assistam" quase simultaneamente a canais abertos de TV via internet, em conjunto com uma função "gravar", que torna possível ao usuário assistir a programas de TV em tempo futuro9.
Embora o conceito do serviço seja bastante simples e pareça, à primeira vista, enquadrar-se de maneira óbvia na definição de execução pública estatuída pela transmit clause acima transcrita, veremos que os mecanismos implantados pela Aereo para prestar esse serviço foram cuidadosamente pensados para contornar o texto legislativo e permitir a defesa de um determinado ponto de vista que localizaria o serviço fora do âmbito de aplicação da definição de public perfornace da lei presente.
Para fazer o conteúdo chegar via internet aos computadores de seus assinantes, realizam-se, por meio do sistema da Aereo, os seguintes passos: (1) através de seu dispositivo conectado à internet, o usuário seleciona, entre os canais disponíveis, o programa a que deseja assistir, e clica no botão "assistir" ou "gravar"; (2) o sistema da Aereo, nesse momento, aloca ao usuário uma de suas milhares de mini-antenas, que sintoniza na frequência do canal para receber o sinal pertinente; (3) os dados recebidos via ondas são transformados em informações passíveis de armazenamento; (4) um conjunto de servidores de hospedagem contendo uma pasta para cada assinante do serviço começa a armazenar o programa de TV selecionado exclusivamente na pasta dedicada a esse usuário; (5) inicia-se um streaming desse conteúdo individual, via internet, para o dispositivo do usuário; (6) o conteúdo é eliminado da pasta do usuário ao se concluir o streaming, a menor que o usuário tenha selecionado a função "gravar", caso em que o conteúdo permanece disponível para streaming futuro.
Para compreender o resultado das decisões judiciais deste caso até o presente momento, é importante atentar-se para um fato: a cópia que é transmitida via streaming ao usuário final, seja na função "assistir"10, seja na função "gravar", é única e acessível apenas por aquele usuário que a solicitou, e a transmissão que se opera para usuário parte exclusivamente daquela cópia única.
Se milhares de usuários decidirem, por exemplo, gravar a partida final da copa do mundo de 2014 em sua pasta particular no sistema Aereo, serão feitas tantas cópias quantos milhares forem os usuários que as solicitarem.
Um outro ponto potencialmente relevante para a compreensão dos casos é o fato de que se um usuário decide que quer gravar um programa enquanto o estiver assistindo e pressionar nesse ponto, o botão "gravar", o sistema gravará o programa apenas a partir daquele ponto específico, sendo impossível ao usuário ver o conteúdo desde o início. Esse conceito reforça a evidência de que cada cópia é, efetivamente, única, e não pode ser acessada por nenhum outro usuário que não o solicitante.
O caso ABC Inc.11 v. Aereo Inc.
Um grupo de empresas, incluindo a ABC Inc., ajuizou duas ações na District Court for the Southern District of New York (primeira instância para este caso) em que se pleiteia decisão liminar impedindo a Aereo de continuar provendo seus serviços em razão de não tê-los licenciado, presumindo se equadrarem na definição de execução pública da lei autoral americana.
A liminar foi negada12 com base em dois motivos entre os quatro que devem ser analisados para concessão liminar de tutelas por aquele juízo: (i) as autoras não demonstraram haver probabilidade de sucesso no mérito da causa13, uma vez que não lograram convencer o juízo de que o caso da Aereo era substancialmente diferente do precedente vinculante da corte de apelação no caso Cablevisiom14, em que operações semelhantes foram consideradas como não abrangidas pelo conceito de execução pública, e (ii) os prejuízos suportados em razão do eventual deferimento do pedido liminar seriam muito maiores para a Aereo (fim do negócio) do que para as autoras, sendo que é requisito que o contrário aconteça.
As autoras agravaram dessa decisão15, e novamente perderam16 na Court of Appeals for the 2nd Circuit (segunda instância neste caso), com base nos mesmos fundamentos, o que levou as autoras a levarem o caso17 à Suprema Corte estadounidense, que realizou audiência nos autos do caso na semana passada.
Interessa-nos uma análise feita pelas instâncias inferiores ao debruçarem-se sobre a probabilidade de sucesso no mérito das ações propostas pelas autoras, uma vez que, neste ponto, exploram a fundo a abrangência do conceito de execução pública na lei americana.
O precedente que vinculou o entendimento das duas instâncias que analisaram o caso até agora é o caso Cartoon Network LP, LLLP v. CSC Holdings, Inc, conhecido como o caso Cablevision18. Analisou-se neste precedente a tecnologia, hoje comumente disponível nos serviços de TV a cabo, que permitia que o usuário gravasse ou programasse a gravação futura de um conteúdo qualquer, para posteriormente assisti-la19. A questão aqui, superada a discussão sobre o direito de reprodução, era se havia ou não execução pública quando o usuário assistia ao conteúdo previamente gravado por meio do sistema da Cablevision, que também criava uma cópia particular e única, acessível apenas pelo usuário solicitante daquela gravação.
O entendimento, reproduzido na decisão que ora comentamos, foi de que o fato de a cópia ser única, acessível apenas pelo usuário que solicitou sua gravação, colocava essa transmissão na condição de execução privada, e não de execução pública.
A transmit clause, que coloca na categoria de execução pública as transmissões que são feitas para o público, não abrangeria este caso porque aquela cópia única e específica, feita pelo sistema da Aereo ou da Cablevision, nunca seria transmitida para o público, mas sempre unicamente para aquele usuário que a solicitou, o que, ainda que minimamente, diferencia esta situação daquela em que a mesma cópia é disponibilizada ou transmitida para pessoas diversas, ainda que em locais distintos.
A audiência realizada na Suprema Corte no dia 22 de abril de 201420 revelou aparente ausência de uma posição firme já constituída no colegiado da corte, e ambos os causídicos foram colocados em situações difíces pelos juízes, de modo que é bastante difícil prever para qual lado da balança a decisão penderá.
Eventual impacto para o mercado televisivo e para as tecnologias de cloud computing, e a possibilidade de um novo ciclo legislativo
Uma decisão favorável à Aereo tem potencial de promover mudanças significativas no segmento de entretenimento nos EUA, especialmente no que diz respeito ao relacionamento entre emissoras de televisão e operadoras de TV a cabo. Se estas últimas puderem reproduzir a operação da Aereo, transmitindo conteúdo das TVs abertas sem serem obrigadas a pagarem uma licença para tanto, é certo que o impacto dessa mudança no seu custo de operação promoverá um rearranjo do mercado, rearranjo este que poderia, inclusive, redundar na manutenção da tecnologia que as TVs a cabo já têm, mas a custo zero.
Outro desdobramento que poderia advir de uma confirmação da derrota das emissoras de televisão na Suprema Corte é o início de um novo ciclo legislativo, destinado a alargar ainda mais o conceito de execução pública e nele incluir modelos de negócio semelhantes ao do Aereo, tal como aconteceu na década de 1970 com as CATV.
Uma questão que despertou bastante atenção dos juizes da Suprema Corte e foi objeto de algumas petições de amici curiae, inclusive a petição do próprio governo estadounidense21, foi o potencial impacto da decisão sobre os serviços de computação na nuvem.
Se a decisão estabelecer, contra a Aereo, que a transmissão da cópia singular para o usuário que lhe promoveu a gravação constitui execução pública nos termos da Lei Americana, poderia esse conceito ser estendido para, por exemplo, serviços como o Dropbox, iCloud ou OneDrive? Essa decisão faria com que esses serviços tivessem que buscar uma licença de execução pública para continuarem a operar?
Os desdobramentos, neste ponto, são incertos, e parecem depender do conteúdo específico de uma eventual decisão da Suprema Corte.
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3Aparentemente, o primeiro sistema desse gênero surgiu em 1948, pelas mãos de John Walson (ver nota de rodapé seguinte).
4A história de John Walson merece uma leitura do migalheiro mais interessado. Tudo o que ele desejava era vender televisores, mas sua cidade era cercada por uma geografia montanhosa, que impedia a recepção de sinais.
5Fortnightly Corp. v. United Artists Television, Inc. - 392 U.S. 390 (1968) e Teleprompter Corp. v. Columbia Broadcasting - 415 U.S. 394 (1974).
6Traduzimos o termo public performance como execução pública, descuidando propositalmente de entrar no mérito das distinções entre comunicação ao público (gênero) e execução pública (espécie).
7"Held. Judicial construction of the Copyright Act, in the light of drastic technological changes, has treated broadcasters as exhibitors, who "perform," and viewers as members of the audience, who do not "perform," and, since petitioner's CATV systems basically do no more than enhance the viewers' capacity to receive the broadcast signals, the CATV systems fall within the category of viewers, and petitioner does not "perform" the programs that its systems receive and carry." (Fortnightly Corp. v. United Artists Television, Inc. - 392 U.S. 390)
8Há explicações bem detalhas no site da Aereo.
9A função gravar não é objeto de nenhum tipo de pleito relacionado ao direito de reprodução nas ações comentadas neste artigo em razão dos precedentes da Sony e da Cablevision, que entenderam que a cópia doméstica de conteúdo televisivo (cabo ou TV aberta) se encontrava abrangido no conceito de fair use.
10Mesmo na função "assistir", o conteúdo a que o usuário assiste é conteúdo que é primeiramente gravado no servidor da Aereo para posteriormente ser transmitido via streaming para o usuário final. O atraso entre a transmissão real e a recepção do streaming da gravação é, em média, de apenas 10 segundos.
11A ABC Inc. é uma companhia do ABC Television Group, que pertence à Disney Media Networks, divisão da The Walt Disney Company.
13Um semelhante agravado do nosso fumus boni iuris, talvez até mais próximo da verossimilhança, esta última um requisito para antecipação de tutela em nosso sistema pátrio.
14Cartoon Network LP, LLLP v. CSC Holdings, Inc., 536 F.3d 121 (2d Cir. 2008).
15Interlocutory appeal.
16United States court of appeals 3 for the second circuit.
17Petição.
18Link na nota 14 supra.
19No caso cablevision, os temas relacionados ao direito de reprodução são analisados com bastante profundidade e retomam a decisão do caso Sony em que essa cópia doméstica foi considerada abrangida pelo fair use.
20Transcrição e gravação da audiência disponível nesta página da Suprema Corte.