PI Migalhas

Relações entre o tema das biografias e a Propriedade Intelectual

Os colunistas abordam a relação biografias x Propriedade Intelectual.

21/10/2013

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio

 

Aos migalheiros, um apelo: proíbam imediata e irrevogavelmente seus clientes de dizerem por aí que detêm direito autoral sobre a própria vida e sobre a própria imagem. Podem, inclusive, fazê-lo sem temor da pecha de censores ou de intransigentes, porque não haverá Paula Lavigne que possa desafiá-los nessa lúcida e temperada assertiva. Para além do debate moral ou político, essa recomendação é, como se verá, de ordem puramente técnica.

Sejamos ou não a favor da irrestrita liberdade de biografar e independentemente de nossas posições acerca de poder-se ou não falar sobre outrem independentemente de remuneração, fato é que o enfrentamento dessas questões se dá em um terreno que não é propriamente o da propriedade intelectual, mas sim o dos direitos da personalidade.

A famigerada biografia não-autorizada de Roberto Carlos, por exemplo, que se encontra recolhida e impedida de circular, foi fulminada por temas que não possuem relação direta com o tema da propriedade intelectual (ainda que seu autor seja naturalmente titular de direitos sobre essa obra), mas sim aos direitos da personalidade tal como previstos hoje.

Estão positivados no nosso estatuto civil e garantidos constitucionalmente1 o direito à honra, à intimidade, à vida privada e à imagem, além de a disposição infraconstitucional restringir atualmente seu uso não autorizado, em qualquer caso, a fins não-comerciais. É nessa pedra fundamental – nos direitos da personalidade, portanto – que se sustenta o Procure Saber; e justamente a esta base é que estão amarradas as dinamites do debatido projeto de lei.

Mas a potencial mistura entre alhos e bugalhos tem lá a sua razão de existir, e convém explorar por que os dois temas apresentam, desde há muito, enorme propensão à confusão.

A área dos direitos da personalidade apresenta segmentos bastante próximos ao tema da propriedade intelectual em geral. Há, inclusive, quem os entenda como domínios conexos, e parte da doutrina vê a ambos como componentes de um grupo maior denominado propriedade imaterial2.

Debrucemo-nos topicamente sobre as relações entre os direitos da personalidade e os direitos de propriedade intelectual, aproveitando a onda midiática que cerca o tema, ainda que um pouco para longe dele nos permitamos divagar.

(a) Direitos da personalidade e direito autoral

Do ponto de vista prático, verifica-se, de início, que ao contar a história de uma vida, o biógrafo fará sua criação vir ao mundo sempre sob a forma de um objeto passível de proteção autoral. Seja um livro, seja um artigo de revista, seja uma obra audiovisual, a biografia como obra será bem sobre o qual recaem direitos de autor, estando aí a primeira conexão entre esses dois ramos. O mesmo acontece com a imagem pessoal, já que sua captura muito comumente dará ensejo à proteção autoral da fotografia ou do filme que a registram3.

Não se confunda aqui, entretanto, o direito do biografado ou do fotografado (direitos da personalidade à vida privada, à imagem, e potencialmente à honra, se denegritória a biografia) com os direitos que surgem a partir da criação de uma obra biográfica ou de um retrato.

É possível, entretanto, que o vínculo mais profundo entre os direitos da personalidade e os direitos de autor esteja não nessa constatação pragmática, mas na disciplina dos denominados direitos morais de autor4. São eles, no nosso ordenamento, o direito à paternidade da obra, o direito de atribuição de autoria no uso da obra, o direito de inédito, o direito à integridade da obra, o direito de modificá-la, o direito de retirada da obra de circulação, e o direito de acesso a exemplar único e raro. Sua existência revela o histórico entendimento da obra autoral como projeção da personalidade do autor.

Desde a Revisão de Roma de 19285 estão os direitos morais previstos sistematicamente na Convenção de Berna. Uma análise dos anais dessa revisão revela a mesma linha de raciocínio que até hoje promove a vinculação teórica entre direitos da personalidade e direitos morais do autor.

Dois trechos merecem transcrição, não só pelo valor histórico, mas pela atualidade do raciocínio6:

"...o autor é titular de um direito, ou de um conjunto de direitos estritamente inerentes à sua pessoa, que são instransferíveis e ilimitados no tempo, e que dizem respeito, principalmente, a seu direito absoluto de publicar ou não publicar a obra, de ter sua autoria reconhecida e de, por fim, proteger a integridade da obra" (Trecho da proposta apresentada pela delegação italiana na Conferência de Roma para a Revisão da Convenção de Berna, 1928)

"...embora sejam bens econômicos que desfrutam de privilégio exclusivo de publicação e reprodução, as obras da mente são distintas de todos os outros bens porque são o produto de atos de criação intelectual e, em razão disso, têm caráter representativo da personalidade de seus autores. Dizer que o autor 'vive em sua obra' não é integralmente metafórico: em verdade, a idéia literária, científica ou artística contida na obra ou, no mínimo, a forma literária, artística ou científica de que o autor revestiu essa idéia para apresentá-la ao público revelam e refletem sua personalidade e portanto seu grau de capacidade intelectual, sua cultura, seus pendores espirituais ou morais..." (E. Piola Caselli, Vice-Presidente e Relator-Geral da Conferência de Roma para a Revisão da Convenção de Berna, 1928)

Sendo a obra autoral uma expressão da personalidade do autor, e servindo como referência desta personalidade para o público que atinge, permanecerá incessantemente como representação dessa personalidade, fundamento da decretação desses direitos morais do autor.

(b) Direitos da personalidade e propriedade industrial

Bem se sabe que o ramo amplo da propriedade intelectual comporta um recorte, um sub-ramo denominado propriedade industrial7, formado pela disciplina jurídica das marcas, patentes e desenhos industriais. Também aí encontra guarida a dimensão da personalidade do criador intelectual.

Não é por outro motivo que nossa Lei de Propriedade Industrial garante ao inventor sua nomeação como tal, devendo seu nome constar obrigatoriamente da carta-patente8. Essa disposição legal se repete para o caso do desenho industrial9, com adaptações unicamente de nomenclarura – autor em vez de inventor; registro no lugar de carta-patente.

Percebe-se, portanto, a concessão ao inventor e ao autor de desenho industrial do direito de ter seu nome associado às suas criações, da mesma forma como se dá no direito moral de autor, já explorado neste artigo. Trata-se claramente do reconhecimento da criação intelectual, seja em que campo for, como materialização exterior da personalidade de seu criador, preservando-se essa vinculação entre inventor e invento, autor e desenho industrial, por meio da obrigatória referência nominal.

Não há, para o caso das marcas, nenhum tipo de obrigatoriedade desse gênero, mas entendemos que trata-se de caso distinto, a merecer outro tipo de entendimento e aborgagem. A marca é resultado de construção social que comporta outros fatores para além de um simples ato criador de suas características10. Esses outros fatores, como a reputação da marca, inclusive, são muito mais importantes que sua materialização sensitiva, e resumem efetivamente o valor que esse direito imaterial carrega.

Haverá, entretanto, uma vinculação entre a personalidade da pessoa jurídica e o sinal distintivo que lhe é próprio, como veremos adiante.

(c) Direitos da personalidade, pessoa jurídica e as marcas

Nosso atual diploma civil reconhece, de maneira expressa, direitos da personalidade às pessoas jurídicas11. Essa atribuição, que pode parecer estranha à primeira vista, é decorrência lógica da existência da personalidade jurídica para além da natural, e confere garantias elementares para que, reconhecida essa ficção jurídica que é a personalidade jurídica, possa esta se desenvolver plenamente para atingir seu objeto. Assim, inegável que a pessoa jurídica terá sempre direito ao nome, tal como a pessoa natural, e à honra, embora, em nosso entendimento, apenas à honra objetivamente considerada, que nada mais é senão a reputação de que goza junto à sociedade.

Os sinais distintivos e as marcas encontram-se vinculados intrinsecamente à honra objetiva da pessoa jurídica na medida em que, no decorrer de sua vida, convertem-se estes sinais em repositórios de referências e qualidades que lhe são diretamente relacionadas. Ao entrar em contato com determinado sinal distintivo, o indivíduo recupera na memória esse conjunto de características, boas ou ruins, que havia previamente atribuído a tal sinal, e passa a naturalmente transferir essas qualidades à pessoa jurídica representada pela marca ou sinal distintivo. Fácil, portanto, concluir que a denigrição de uma determinada marca, sinal ou de um produto ou serviço com ela assinalado tem repercussões diretas sobre a reputação, a honra objetiva da pessoa jurídica, ensejando-lhe direito a reparação moral.

(d) Para não dizer que não falei das flores – alguns comentários técnicos sobre o polêmico projeto

A proposta de lei 393/2011 contra a qual o Procure Saber e outros artistas se posicionaram prevê a inserção de um parágrafo no artigo 20 do Código Civil que apagaria a necessidade de autorização para biografias com fins comerciais ou denigritórias se o biografado for pessoa notória ou estiver envolvido em fato de interesse da coletividade. Assim ficaria o regramento da matéria se o PL fosse aprovado:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

§ 1° omissis

§ 2° A mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade.

§ 3° omissis

A maneira como se encontra redigido o parágrafo oferecerá, certamente, desafios aos seus intérpretes.

Embora o caput mencione os verbos divulgar, transmitir e publicar para casos diferentes, o parágrafo proposto menciona exclusivamente o núcleo divulgar. Foge-nos o propósito pelo qual o legislador escolheria termo vago quando poderia, de maneira mais técnica, ter utilizado as expressões publicação, transmissão ou distribuição, todos definidos na Lei de Direitos Autorais.

Outra questão que certamente será debatida será a indeterminação das dimensões do termo com finalidade biográfica. As imagens poderão, desvinculadas de qualquer texto, considerar-se com finalidade biográfica? Um documentário sobre a vida de Caetano Veloso prescindirá de qualquer autorização sua para usar suas imagens? A imagem que dispensará autorização é somente se obtida licitamente? Ou a ilicitude na obtenção das imagens derrotaria a primazia do interesse público expresso nesta norma?

O interesse da coletividade é de que tipo? A mera curiosidade de conhecer a vida do artista servirá como suficiente interesse da coletividade para justificar a ausência de autorização?

Já do ponto de vista mais sistemático, notamos duas questões. Primeiramente, a obra comprovadamente mentirosa e inverídica, ainda que dê ensejo a eventual reparação de danos, poderá continuar a circular? Ou a mentira evidente desconstituiria a finalidade biográfica e recolocaria a obra na posição anterior? Em segundo lugar, o fato de a divulgação não poder ser impedida significa, necessariamente, que ao biografado será vedado pleitear remuneração em juízo? Ou seja, se o interesse do biografado for simplesmente ser remunerado, terá ação que lhe resguarde?

Seria salutar que essas perguntas pudessem ser debatidas antes dos próximos movimentos legislativos. Aproveitando o centenário de Vinícius, digamos que sabemos muito bem o que é ter uma jaboticabeira no quintal.

__________

1São diversas as classificações dos direitos da personalidade. A doutrina nacional tem, exemplificativamente, em Rubens Limongi França, Carlos Alberto Bittar, Elimar Szaniawski e Claudio Luiz Bueno de Godoy exemplos de desenvolvimento substancioso dessa área de estudo.

2"A propriedade imaterial constitui-se, pois, em um termo genérico abrangente, que comporta tanto os bens e direitos da personalidade (direito à liberdade, inclusive à liberdade de expressão, de consciência, de imprensa, direito à privacidade e à intimidade) como os bens intelectuais, a propriedade derivada do esforço da inteligência humana, que inclui os direitos autorais..." (VIEGAS, Juliana L.B. Aspectos Legais de Contratação na Área da Propriedade Industrial in SANTOS, Manoel J. Pereira e JABUR, Wilson Pinheiro. Contratos de Propriedade Industrial e Novas Tecnologias, São Paulo: 2007, p.3.

3Importante excluir desse raciocínio as imagens capturadas sem nenhuma originalidade, requisito essencial para que uma determinada criação seja passível de proteção autoral. Assim, por exemplo, as câmeras de segurança que, sem nenhum olhar artístico, simplesmente capturam imagens para fins de vigilância não produzem material passível de proteção pela via de direito de autor. O mesmo dir-se-ia, por exemplo, das fotos mecanicamente realizadas por um satélite. A originalidade é justamente a vinculação entre obra e personalidade.

4Encontram-se positivados na lei 9610/1998, Título III, Capítulo II, arts. 24 e ss.

5Tratado seminal de harmonização dos direitos autorais, assinado em 1884. Verdade que a Revisão de Berlim de 1908 continha um embrião de direitos morais em seu nono artigo, que dizia que "With the exception of serial stories and tales, any newspaper article may be reproduced by another newspaper unless the reproduction thereof is expressly forbidden. Nevertheless, the source must be indicated". Mas foi a revisão de Roma de 1928 a que realmente discutiu sua inserção como sistema de direitos morais no no tratado a partir da proposta de diversas delegações e da criação de um grupo de trabalho para discutir a questão.

6Os dois trechos apresentados foram extraídos dos estudos dos anais da Revisão de Roma da Convenção de Berna de 1928 e traduzidos livremente pelos autores.

7Há extensa evolução histórica de denominações, classificações, e debates doutrinários que precedem o momento presente. A própria denominação "propriedade industrial" só se sustenta com algum desapego semântico, pelo mesmo motivo que fez evoluir a disciplina do "nome comercial" para "nome empresarial".

8Artigos 6, §4o. e artigo 39 da lei 9279/1996.

9Artigo 107 da lei 9279/1996.

10Sem prejuízo de estas características estéticas receberem proteção autônoma independentemente do direito marcário, como a proteção autoral da logomarca.

11Artigo 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.

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Colunista

Luciano Andrade Pinheiro é advogado. Graduado pela Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Autoral. Autor de artigos jurídicos. Palestrante. Perito judicial em propriedade intelectual. Foi assessor de técnica legislativa na Câmara dos Deputados, diretor adjunto da Escola Superior da Advocacia da OAB/DF e vice-presidente da Caixa de Assistência dos Advogados do Brasil/DF.