Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio
No artigo inaugural desta coluna1, apresentamos algumas indagações que cercam a criação de um mercado de segunda mão de obras em formato digital sob o ponto de vista do direito da propriedade intelectual. Depois de obter livros, faixas musicais e aplicativos via internet, poderíamos, genericamente, passá-los adiante, como nos permite o instituto da exaustão2 de direitos no mundo offline, ou estaríamos presos a limitações que afastam a aplicação do instituto?
Propusemo-nos abordar a questão sob três enfoques. O primeiro, de caráter mais econômico, já explorado no texto exordial, identificava características instrínsecas desses bens digitais3 que gerariam um severo desequilíbrio caso a sistemática da exaustão ou esgotamento de direitos lhes fosse aplicada sem adaptações. Já neste segundo texto, enfrentaremos, sem proposta sistemática de estudo, temas jurídicos relacionados ao regramento do instituto e sua aplicação para o caso proposto, deixando para o terceiro e último texto do tema inicial da coluna PI Migalhas4 alguns comentários sobre julgados que contribuem para a identificação de tendências.
(ii) Aspectos relacionados à exaustão de direitos autorais sobre conteúdos digitais
(a) Tratados Internacionais
Constituindo-se em importante princípio do sistema, era de se esperar que o esgotamento estivesse estampado na Convenção de Berna, arcabouço seminal do tratamento internacional dos direitos autorais. Não há aí, entretanto, uma palavra sequer sobre o tema. Já o acordo TRIPS5 o menciona para esquivar-se de regulamentá-lo de maneira sistemática, trazendo entretanto disposições incidentais que promovem a retenção, pelos autores e produtores, do direito de permitir ou não o aluguel comercial de exemplares de programas de computador, obras cinematográficas e fonogramas6.
(b) Lei brasileira e interpretação (exaustão em geral)
Nossa lei de Direitos Autorais - LDA (Lei 9.610/98) padece da mesma ausência de regramento claro do tema. Não há dispositivo que textualmente confirme ou infirme a existência ampla da sistemática geral de exaustão de direitos nesta seara no país7. Há, sim, algumas janelas interpretativas, embora nenhuma delas de correção cristalina.
Observem-se o artigo 93, II, da LDA, que preserva para o produtor de fonogramas a faculdade de autorizar ou não a distribuição de exemplares da reprodução por meio de venda ou locação, e o artigo 2º, §5º da lei de Software (lei 9.609/98), que mantem com o titular o direito de permitir ou não o aluguel posterior à colocação do exemplar no mercado.
O resguardo desses direitos ao produtor de fonograma e ao titular de direito autoral de software constitui exceção ao que seria uma sistemática de exaustão de direitos. Se a regra geral determinasse que, depois de colocado o exemplar no mercado, romper-se-ia o vínculo entre o titular e os exemplares físicos que incorporam a obra, então uma regra que permite autorizar ou não o aluguel ou revenda desses exemplares constituiria, evidentemente, exceção ao sistema de exaustão.
Denis Borges Barbosa vê a existência dessa explícita exceção na lei como confirmação da presença genérica da regra do esgotamento de direitos autorais para todos os demais casos8. Se a lei teve a cautela de excepcionar a exaustão para essas hipóteses, isso seria sinal da aplicabilidade do instituto como regra geral. Do contrário, a menção específica seria desnecessária, já que as regras dos artigos 11 e 14 do TRIPS se encontrariam plenamente abarcadas em um sistema que não alberga o esgotamento.
Essa interpretação é estritamente racional e plausível, mas entendemos ser indispensável a igual consideração de dois temas: a regra hermenêutica de interpretação restritiva das limitações a direitos, e a regra positivada de interpretação restritiva dos negócios jurídicos sobre direitos autorais. A primeira tem fundamento distante no princípio da reserva legal (CF, artigo 5º., inc. II); a segunda vem explícita no artigo 4º da LDA.
Quanto a esta última, analisemos o caso do software. Se é verdade que o uso de software no país será objeto de contrato de licença e que os negócios jurídicos sobre direito autoral se interpretam restritivamente9, um contrato de licença de uso não poderia ser interpretado como exaurindo para seu titular os direitos sobre a distribuição em razão da interpretação sistemática de um princípio restritivo de direitos. Parece-nos um passo demasiado largo para o regramento que temos posto.
Outro tema que parece importante é o fato de serviços online permitirem a celebração do contrato diretamente entre usuário e autor (titular dos direitos autorais).
(c) Obras em formato digital x software
Outro tema que poderá gerar alguma dificuldade, inclusive com implicações tributárias, é a definição ampla de software que nos oferece a Lei 9.609/98. Seu artigo primeiro traz a seguinte definição: "Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados".
Ao pé da letra, a definição parece acobertar qualquer arquivo eletrônico.
De outro lado, temos que as obras intelectuais protegidas pela LDA podem se encontrar fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, sendo absolutamente inquestionável que não perdem sua qualidade de obra no momento em que se digitalizam.
Fugindo da definição escorregadia, busquemos compreender se a digitalização da obra atrairia a aplicação da lei de software. Entendemos que não. Não deixam de ser obras literárias, artísticas ou científicas no momento em que se digitalizam, e se forem criadas diretamente por vias computacionais isso tampouco lhes retira o caráter que é requisito da lei autoral para conferir-lhes proteção.
Alguma dúvida poderia haver quanto a programas de computador, como jogos eletrônicos, que incorporam obras audiovisuais e literárias. Não deixam de ser programas de computador na sua completude, gozando da proteção específica. Mantem-se, entretanto, a proteção autoral autônoma das obras audiovisuais e literárias que lhe foram incorporadas.
Apps em geral, portanto, inclusive games, são programas de computador, e obedecem ao regramento da Lei 9.609/98, independentemente de eventual proteção autônoma das criações artísticas que se lhe forem incorporadas; e-books, faixas e vídeos em formato digital mantêm sua natureza de criação artística, apesar do formato digital.
(d) A análise para itens digitais
Nossa breve incursão neste tema revelou dificuldades e imprecisões jurídicas. Entretanto, parece-nos possível estabelecer alguns parâmetros para que formemos individualmente nossas convicções.
Para além da análise primordialmente econômica, de inviabilidade para o sistema de propriedade intelectual da aplicação da exaustão para a compra de conteúdo online, vejamos, à luz do ordenamento, se há conclusões possíveis.
Primeiramente, inexiste clara determinação normativa do sistema de exaustão de direitos para a seara autoral como existe para a LPI. Chegar-se-ia à sua existência ou por meio da constatação do costume de tratamento desses bens no mundo tangível, ou por meio de interpretações sempre questionáveis sob algum aspecto, o que não lhe dá força, ao nosso ver, para derrubar disposições contratuais em vigor.
Em segundo lugar, para o tema específico de fonogramas (e, por extensão, dos videofonogramas), parece-nos que resta clara a inaplicabilidade da exaustão, seja para os suportes tangíveis, seja para o ambiente eletrônico. Exegese do artigo 93, inciso II da LDA, que vai além da determinação do TRIPS, que previa unicamente a retenção, pelo produtor, do direito de autorizar ou não o aluguel posterior.
Por fim, para programas de computador, a lei de Software confere ao titular dos respectivos direitos autorais a faculdade de autorizar ou não a locação do exemplar licenciado. Exegese do artigo 2º, §5º da lei 9.609/98, cumprindo a regra determinada no acordo TRIPS. Não parece, entretanto, haver outros elementos que confirmem a exaustão no caso de licenciamento de uso, feito mediante contrato de licença e sujeito à regra da interpretação restritiva dos negócios sobre direitos autorais.
De modo geral, portanto, parece-nos não haver norma cogente no ordenamento que force a aplicação de um preceito geral de esgotamento de direitos para os bens digitais. Evidente, entretanto, que trata-se apenas de hipótese conclusiva, formada sobre conceitos extraídos de um ordenamento não totalmente adaptado para a realidade de hoje.
No próximo e derradeiro artigo desta primeira série de três, apanharemos alguns julgados nacionais e estrangeiros para ilustrar as tendências do judiciário no tratamento desses casos. Até breve!
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1Quero vender meus bits and bytes - Parte 1
2No artigo inicial, sintetizamos a conceituação do instituto da seguinte maneira: "[...] exaustão ou esgotamento de direitos, também denominado nos EUA de first-sale doctrine. Uma vez que o titular do direito tenha colocado no mercado determinado bem que de alguma forma incorpora seu direito intelectual, exaure-se o direito de controlar a posterior distribuição daquele suporte físico específico, retendo-se tão-somente o direito de controlar a nova reprodução da obra. O conceito, intuitivo para os bens tangíveis, permeia os direitos de propriedade intelectual como um todo, materializando, embora não sem limites, o princípio de livre circulação de bens e mercadorias".
3O leitor com uma mirada mais apurada pode ter-se incompatibilizado com a utilização livre de uns poucos termos não muito técnicos no primeiro texto. Evidente que não existe categoria denominada bens digitais no código civil, nem tampouco há uma realidade paralela denominada mundo eletrônico ou virtual. A despeito disso, esses termos servem como aforismos que nos permitem fazer referência a certos elementos ou conceitos de maneira concisa. A imprecisão técnica, sem abrir mão da competente transmissão do conceito, é preferida ao enfado verborrágico.
4Fossem os autores mais hábeis na arte, poderíamos estar diante de um assemelhado ao romance de folhetim, contendo eletrizantes (!) temas jurídicos. Ávidos migalheiros aguardariam, ansiosos, o fim da contagem regressiva do relógio que marca a disponibilização do exemplar diário na homepage deste poderoso rotativo, momento em que um silêncio impenetrável se estabeleceria em bancas jurídicas por todo o país, enquanto causídicos devorariam as aguardadas cenas do novo capítulo.
5Decreto 1355/94. Artigo 6: "Para os propósitos de solução de controvérsias no marco deste Acordo, e sem prejuízo do disposto nos Artigos 3 e 4, nada neste Acordo será utilizado para tratar da questão da exaustão dos direitos de propriedade intelectual".
6Artigo 11 - Um Membro conferirá aos autores e a seus sucessores legais, pelo menos no que diz respeito a programas de computador e obras cinematográficas, o direito de autorizar ou proibir o aluguel publico comercial dos originais ou das cópias de suas obras protegidas pelo direito do autor. Um Membro estará isento desta obrigação no que respeita a obras cinematográficas, a menos que esse aluguel tenha dado lugar a uma ampla copiagem dessa obras, que comprometa significativamente o direito exclusivo de reprodução conferido por um Membro aos autores e seus sucessores legais. Com relação aos programas de computador, esta obrigação não se aplica quando o programa em si não constitui o objeto essencial do aluguel. Artigo 14 (4) - As disposições do Artigo 11 relativas a programas de computador serão aplicadas mutatis mutandis aos produtores de fonogramas [omissis].
7A proposta legislativa submetida a consulta pública em 2010 pelo Ministério da Cultura, cujo substitutivo encontra-se, hoje, em processo de revisão no mesmo Ministério, trazia um dispositivo genérico com o seguinte texto: "Art. 30-A. Quando a distribuição for realizada pelo titular dos direitos da obra ou fonograma, ou com o seu consentimento, mediante venda, em qualquer Estado membro da Organização Mundial do Comércio, exaure-se o direito patrimonial de distribuição no território nacional do objeto da venda". Parecia, portanto, consagrar a doutrina da exaustão nacional de direitos, tal qual ocorre com a Lei de Propriedade industrial. Apesar disso, mantinha a exceção para os produtores de fonogramas.
8"Meu entendimento, de outro lado, é que tal disposição penal e civil, em sua especialidade, sublinha a inexistência de igual direito para as obras não corporificadas em fonogramas. Ou seja, para todos outros tipos de obra, inclusive as cartográficas ou fotográficas, a primeira alienação esgota os direitos do autor sobre o corpus mechanichum". Restrições ao uso do corpus mechanicum de obras intelectuais após a tradição: exaustão de direitos em direito autoral.
9Exegese dos artigos 9º. da lei 9.609/98 e 4º. da LDA.