Olhares Interseccionais

A educação indígena e o eterno modo-colonização ativado

A revogação da lei 10.820/24 no Pará evidencia a luta indígena por uma educação diferenciada, contra a imposição eurocêntrica e o etnogenocídio.

10/3/2025

Iniciamos o ano de 2025 com mais uma luta para os povos indígenas, dessa vez situada no Estado do Pará: a lei 10.820/24, que pretendia alterar o regime de salários e gratificações dos professores estaduais e, de forma indireta, atingiria os estudantes indígenas, pois os professores que ministram nas comunidades indígenas (e recebem gratificações extras para tanto), não teriam mais o mesmo estímulo, prejudicando, assim, a educação indígena especializada, ficando como alternativa aulas à distância para todos os indígenas (e demais populações tradicionais) do Estado.

Após intensa mobilização de indígenas e educadores, a lei foi revogada. Mas o que podemos compreender desse episódio: o eurocentrismo na educação continua a impactar as comunidades indígenas, dificultando a transmissão, entre gerações, de suas tradições, mesmo após o banimento da tese integracionista pela CF/88. E mais: percebe-se que subsiste o desrespeito à multiplicidade cultural dos diferentes povos e da consulta prévia, livre e informada sobre as ações que causem impactos diretos ou indiretos à população indígena.

A educação desempenha um papel fundamental na preservação da cultura e das línguas dos povos indígenas. No entanto, histórica e estruturalmente, a educação escolarizada no Brasil esteve a serviço de uma lógica colonialista, que buscava integrar esses povos a uma sociedade nacional homogênea, marginalizando suas formas próprias de conhecimento. Afinal, até hoje podemos encontrar a informação (romantizada) nos livros didáticos sobre o “descobrimento do Brasil” pelos portugueses, que aqui chegaram e encontraram pessoas que designaram de “índios”.

Poderia escrever sobre a data 19 de abril, “Dia do Índio” e a forma como é “comemorada” pela maioria das escolas no Brasil, mas isso seria assunto para uma próxima coluna. Só convém incluir um parêntese para adiantar que essa data foi resignificada pelos povos indígenas, considerando-a como o Dia dos Povos Indígenas rememorarem suas lutas e propagarem sua diversidade cultural. 

Pois bem. Retornando sobre a educação.

A colonização impôs um modelo de ensino voltado para a aculturação dos povos originários, reprimindo seus saberes e idiomas. Essa política reflete o que sociólogo peruano Aníbal Quijano, em a “Colonialidade do saber e pensamento eurocêntrico” definiu como "colonialidade do saber", no qual o conhecimento europeu é considerado superior e o conhecimento indígena é marginalizado.

No Brasil, Ailton Krenak, em sua obra “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, menciona que “a máquina estatal atua para desfazer as formas de organização das nossas sociedades, buscando uma integração entre essas populações e o conjunto da sociedade brasileira”. Neste contexto, a educação escolarizada generalizada tem sido utilizada como ferramenta de destruição da identidade indígena, ou seja, a imposição de um sistema educacional padronizado ignora a diversidade epistemológica dos povos indígenas, retirando deles o direito de produzir conhecimento de forma autônoma e adaptada às suas realidades.

A educação indígena precisa ser conduzida de forma diferenciada, respeitando as especificidades culturais e linguísticas de cada povo. Esse foi o apelo dos indígenas que se manifestaram contra a lei paraense (mencionada no início). O ensino bilíngue e a valorização dos conhecimentos tradicionais são fundamentais para garantir a continuidade da cultura indígena. 

A pesquisadora indígena Geni Núñez, no seu artigo “Perspectivas indígenas antirracistas sobre o etnogenocídio: contribuições para o reflorestamento do imaginário”, destaca que a perseguição às línguas indígenas faz parte de um processo de etnogenocídio, que compromete a transmissão dos saberes tradicionais e ameaça a existência das línguas originária.

Nesse contexto, atualmente, a comunidade indígena está atenta e luta contra a imposição de métodos ocidentais de ensino, que menospreze a participação ativa da coletividade indígena na formulação de currículos, pois percebe “na pele” o que ocorreu em recente passado quando houve um ensino colonialista que enfraqueceu a transmissão cultural e levou à extinção de muitas línguas originárias.

É importante mencionar que o Estado do Pará será sede, em novembro deste ano, da COP30 - 30ª Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas da ONU, um evento de grande relevância internacional no qual os líderes mundiais, cientistas, organizações não governamentais e representantes da sociedade civil discutem sobre o meio ambiente e sobre as ações para combater as mudanças do clima (o que é indissociável aos direitos indígenas). Portanto, é perceptível a contradição entre a realização de um evento global que discute a proteção da Amazônia e a adoção de uma política educacional que fragiliza os direitos educacionais dos povos originários e mitiga a perpetuação da multidiversidade cultural e linguística.

A educação indígena deve ser promovida de forma diferenciada, bilíngue e adaptada às realidades socioculturais de cada povo. Como defendido pela luta indígena, a educação deve ser um instrumento de fortalecimento das identidades indígenas, não de sua dissolução em um modelo homogêneo e excludente.

Por fim, finalizo com os ensinamentos da pesquisadora Geni Núñez, que ao ser indagada “O que é etnogenocídio e quais os eixos que o formam?”, assim respondeu: 

“Destruir nossas culturas, línguas e modos de vida é também destruir nossos povos. Apagar nossas identidades singulares e particulares de cada povo é como tentar implementar o “índio genérico” que não existe senão como produto do olhar do colonizador. Por isso separar o etnocídio do genocídio, separar humano e animal, natureza e cultura e as demais separações binaristas, são violências ontológicas contra nossos povos. Por isso, proponho o termo etnogenocídio, como forma de integrar essas dimensões. Alguns eixos dessa violência são a negação de nossas multiplicidades, através da identificação de nossos povos pelo fenótipo estereotipado, ao invés de reconhecerem nossas identidades coletivas, a inversão colonial de nos chamar de invasores, o roubo de nossos territórios, a produção do empobrecimento, da fome, da violência policial, religiosa etc”.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.